A menina do Sabugal que ajudou o Nun’Álvares a fazer história contra o Benfica

Ricardo Jorge Castro , Entrevista no Pavilhão do Grupo Nun'Álvares, Fafe
1 mar 2022, 09:08

Em menos de 24 horas, Cátia Morgado conquistou a Taça da Liga feminina de futsal e foi convocada para o Europeu. Internacional portuguesa de 32 anos marcou golão para um título que fez o clube de Fafe quebrar uma sequência incrível das águias na modalidade

«Mais longe e mais alto» é uma rubrica do Maisfutebol que olha para atletas e modalidades além do futebol. Histórias de esforço, superação, de sucessos e dificuldades.

«Ganhar a Taça da Liga e no dia seguinte ser convocada para a seleção, para o Europeu, é brutal. É fora do normal, para mim é um sonho.»

As palavras soam a primeira vez. Mas isso só se aplica mesmo ao título de domingo.

Troféu inédito para ela. Histórico para um Nun’Álvares que quebrou a notável hegemonia do Benfica de 110 jogos oficiais em provas nacionais sem derrotas. De um clube que vencera todos os títulos em Portugal no feminino desde 2016/2017.

De resto, Cátia Morgado está longe de ser novata nestas andanças. 

São 32 anos na certidão. Um título de campeã nacional em 2015 pela Novasemente. Ainda 84 internacionalizações e 27 golos na seleção. Quatro anos de Sporting, onde só faltou um título. E nova chamada ao Europeu, depois de 2019. Agora, mais uma taça no palmarés, ao segundo ano no clube de Fafe, apostado em equilibrar forças com o Benfica: não é por acaso que é o mais representado na convocatória para o Europeu. Resumindo: Cátia Morgado é uma das jogadoras mais experientes no panorama feminino português. Como Ana Azevedo, Ana Catarina ou Carla Vanessa, que antes já deram aqui a sua voz. Mas ainda, por exemplo, Inês Fernandes, Sara Ferreira ou Pisko.

No domingo, em Loulé, Morgado presenteou qualquer adepto com o momento da final. Um chapéu perfeito à melhor do mundo. Decisivo para um título marcante. Como é que se faz?

«Também advém do conhecimento que já tenho da Ana Catarina. É rápida a sair-se, mas também um bocadinho mais baixa. Eu sabia que se tivesse de distância sobre ela, que conseguia picar a bola. Eu até andava com alguma falta de confiança. Quando vi o golo disse: nem parecia eu há um ou dois jogos. Foi marcante, por ser numa final, por tudo. E à guarda-redes que foi... tenho grande respeito pela Ana Catarina», conta.

No final, a festa. Uma viagem de quase sete horas de Loulé a Fafe… até levar a Taça para casa. Acordar com ela. «Eu tinha dito que se algum dia ganhássemos uma taça que tinha de vir para minha casa». E brinca. «Tentei logo fugir com ela mas ainda tinha de ir no autocarro (risos). Mas consegui. Agradeço à direção do Nun’Álvares. Tirar uma foto com ela e olhar para ela de manhã, ser campeã da Taça da Liga… espetacular», aponta.

O feito contra o Benfica tem curiosidades. Afinal, o último desaire encarnado, em maio de 2018, foi contra o Sporting… que tinha Morgado e outra atual colega de equipa, a internacional Taninha, que até marcou nesse jogo. «Ela veio logo ter comigo: somos sempre as duas que conseguimos bater o Benfica (risos). Aconteceu, calhou, o Benfica também perdeu dois grandes valores [ndr: Fifó e Janice], mas é consequência das apostas das equipas. O Nun’Álvares decidiu apostar mais, penso que o Novasemente também tem apostado, fez uma grande meia-final com o Benfica, por três segundos não foi a penáltis. Mas tem a ver com os clubes apostarem mais e é isso que vai levar à quebra de hegemonia do Benfica e até à de outras equipas e acho que devem continuar a acreditar. O Benfica ganhava tudo, limpava tudo e as equipas já sabiam: vamos levar umas quantas ‘batatas’, não sabíamos era de duas, três ou quatro. Conseguimos quebrar isso. Há equipas que conseguem ganhar e agora é continuar, ver se os clubes começam a acordar e a apostar no feminino. Nota-se que praticamos bom futsal», defende.

Do Sabugal para a quadra, partida no futebol e optometria pelo meio

Morgado cresceu na freguesia de Vila Boa, no concelho do Sabugal. Desde que se conhece, só se lembra de preferir a bola às bonecas e de jogar com o irmão que «tem quase 40 anos» mas ainda é guarda-redes nos distritais da AF Guarda.

«As bonecas até ficavam nas caixas, desde que me lembro era sempre com a bola no pé e com o meu irmão. E se calhar também tenho o jeito», admite. E até tem.

Foi aí o início de um percurso impensável, mas com sentido de realização. «O futsal é o meu grande amor e neste momento só quero saber disso. Este ano apostei tudo, fiz all in também por causa da idade e da disponibilidade física e psicológica», revela.

Um all in que teve a primeira cartada aos 13 anos, quando ingressou no Sporting da terra, o de Sabugal, no futebol de sete. Era avançada - e talvez isso também explique os mais de 30 golos por época nos últimos anos. Aí já «jogava na escola com os rapazes». «Até me chamavam Ronaldo e eu não gostava porque ele era brasileiro e eu queria que me chamassem Figo». No Sabugal foram quatro anos até que o fim da equipa a levou até ao Guarda 2000. Chegou a ganhar um interassociações pela AF Guarda, numa equipa que tinha Ana Borges, do Sporting.

O futsal vem depois. «Um mero acaso», conta. Morgado ingressou na Universidade da Beira Interior (UBI) em 2007. No primeiro ano entrou em desporto, treinava futsal na Covilhã e ia jogar futebol ao Guarda. No segundo ano, mudou para optometria… e no desporto passou a ter só olhos para o futsal.

Cátia Morgado festeja com Carla Vanessa golo ante o Benfica na final da Taça da Liga de futsal (Luís Forra/Lusa)

Estávamos em 2008 e Morgado era convidada para a AD Fundão, onde foi treinada pelo ex-Benfica Joel Rocha, agora no Sp. Braga/AAUM, que também a treinou na AD Estação, onde esteve até 2011… esse ano memorável: fez a primeira internacionalização por Portugal, brilhou no Europeu universitário na Finlândia onde foi MVP e melhor marcadora e acabou com um convite para jogar em Espanha, no Poio Pescamar, «onde podia ter aproveitado melhor». «Não correu tão bem porque foi culpa minha e ainda bem, consegui crescer e perceber os erros. Também eram da 2.ª Divisão, estavam a lutar para subir e ficámos a meio da tabela».

Na volta a Portugal, três anos de Novasemente culminaram com o título nacional em 2015. Seguiu-se um ano no Restauradores Avintenses e quatro no Sporting, até à viagem para Fafe, onde nada conhecia, mas onde já gosta de estar e é uma das capitãs, a seguir a Liana e Loira.

No meio disto, a optometria, agora de lado, mas outrora de exigência para conciliar tudo: mais complicado quando estava no Novasemente, menos difícil já no Sporting. Em 2021/2022, a aposta é só mesmo o futsal, para quem não esquece as raízes e vai sempre que pode a casa. Para ver os pais e o cão «Morgas». Afinal, é preciso «aliviar a cabeça». Porque há, depois da Taça da Liga, um campeonato e uma Taça de Portugal em mente, mas também um Europeu à porta». Exigência.

«A 20.ª ou 30.ª vez na seleção é como se fosse a primeira»

Lembram-se das palavras que soavam a primeira vez e não o são?

É assim que Morgado se sente quando vai à seleção. Dentro de uma semana, troca a camisola do Nun’Álvares para vestir mais uma vez a das quinas para preparar o Europeu, perdido na edição de estreia em 2019 para a Espanha. «Sendo em casa e no mesmo sítio, em Gondomar, é para ver se conseguimos dar a volta. Ir à seleção é o top do top. A convocatória, apesar de ser a 20.ª ou a 30.ª, é como se fosse a primeira», garante.

Ainda que, no meio disto, permaneçam questões no ar sobre o formato. É que o conflito Ucrânia-Rússia pode pôr em causa a participação de duas das quatro seleções. «Nós já estávamos a preparar este Europeu desde o ano passado e agora poder haver a possibilidade de ser adiado mais uma vez não é agradável», considera.

O olhar à formação, as melhorias no feminino e a parte mental

Aproveitámos esta viagem ao mundo do futsal com Cátia Morgado para perceber como vê que o futsal no feminino possa melhorar em Portugal, vice-campeão europeu e país com um dos mais equilibrados campeonatos até ao momento, pelo menos nos últimos cinco anos. A base, diz, é mesmo a base. A formação.

«É começar com boa formação, bons treinadores para a formação, não qualquer pessoa. Depois, apostar na parte sénior. Cada vez mais as equipas apostam, há dispêndio maior de recursos, neste caso económicos, mas é por aí. Por exemplo, o Nun’Álvares fez uma aposta e teve agora frutos e acho que deve haver mais equipas. Não é: “Há o Benfica, o Benfica é superior, então deixamo-nos estar”. Não, não pode pensar-se assim. Vamos tentar. Mas sem dúvida que tem de começar na formação. Nas escolas. Depois, as equipas têm de manter as miúdas, porque levam o amor à camisola, como acontece com a Loira e a Liana. Elas amam a camisola. Eu estou cá há duas épocas e já começo a gostar, claro que sim. É apostar na formação e partir daí, que é o que o Benfica também faz. Vai buscar miúdas, mantêm-nas e hoje estão no top nacional. Aconteceu com a Fifó, a Janice, foram buscar a Raquel [Santos] ainda muito jovem, a Leninha… estão a fazer uma grande aposta nas miúdas. Claro que o Benfica se calhar consegue mais jogadoras por causa do nome, mas acho que as equipas como o Nun’Álvares conseguiriam, o próprio Vermoim, o Novasemente… ir buscar miúdas, apostar e tentar mantê-las e depois, se necessário, ir buscar mais uma ou outra peça. Acho que é por aí», considera.

Cátia Morgado na seleção nacional (ao meio, na fila de baixo). É uma das 15 convocadas para o Europeu feminino, a disputar em março (FPF)

Por outro lado, e num ano, como disse, de all in, Morgado acredita que a parte mental «é mais importante do que a física». «Às vezes temos um toquezinho e se estivermos bem mentalmente, esquecemos o toquezinho e estamos focadas no objetivo. Acho que cada vez é mais importante essa parte e as pessoas não têm essa noção. Infelizmente só comecei a ter há pouco tempo. Se calhar tinha rendido mais nos anos anteriores. Como me apercebi? Desde que tivemos o psicólogo na seleção e tive contacto com ele, o professor Jorge Silvério. Neste momento até ligo bastante a meditações e sinto que cada vez é mais importante: controlar concentração, ansiedade. Às vezes estamos dois minutos em campo e já estamos a pedir para sair. Mas porquê? É por estar cansada? Não. É porque não conseguimos controlar a ansiedade. E isso é a parte mental, não a física. E trabalha-se. Se calhar tem de trabalhar-se tanto ou mais do que a parte física. Temos o exemplo da final do Europeu [de 2019]: acho que estivemos demasiado ansiosas e a Espanha veio com confiança e estávamos ali ansiosas, nervosas. Foi a parte mental e ainda hoje falo com o professor Silvério: o segredo vai estar em si, este ano não é a parte física, vai ter de levar connosco. E ele ri-se. Mas é verdade, sempre que posso, falo com ele. Temos a seleção masculina como exemplo. Conseguiram virar, mais ainda com uma seleção muito jovem, com o Tomás Paçó ou o Zicky que foi considerado melhor jogador - e ele diz que pode agradecer bastante ao psicólogo dele», partilha.

Por fim, até onde pode ir a menina que cresceu no Sabugal a jogar entre os rapazes na escola? Uma resposta até esperada, mas sem pensar muito no futuro.

«Até quando as pernas derem. Eu já disse: vou deixar de jogar quando as miúdas correrem mais do que eu. Em tom de brincadeira, mas a sério. Desde que vim para o Nun’Álvares deixei de pensar no futuro, porque eu pensava que ia ficar no Sporting até quase ao final da minha carreira e não. Se vou para o estrangeiro ou não, é consoante as oportunidades. Se calhar até pode ser, Itália ou Espanha, gostava de experimentar outra vez o campeonato espanhol visto que estive na 2.ª Divisão, mas se não experimentar não é por aí».

Para já, teremos Cátia Morgado por aí, numa qualquer quadra de norte a sul.

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