PJ e FBI desmantelam rede de lavagem de dinheiro para máfia russa. Os bastidores da operação

21 mar 2022, 07:58
Dinheiro

Tinha o nome de código QQAAZZ, trabalhava para a máfia russa e foi desmantelado pela Polícia Judiciária em colaboração com o FBI. Parte do grupo de criminosos que fazia lavagem de dinheiro em Portugal foi julgada e condenada em outubro de 2021. Pela primeira vez, a PJ e o FBI revelam à CNN Portugal os bastidores da operação policial que permitiu desmantelar esta importante rede internacional

O primeiro alerta foi dado por um banco: o titular de uma conta suspeita de atividades ilícitas estava a tentar levantar dinheiro vivo - quatro mil euros. Os agentes da PJ foram de imediato ao local sem imaginar que aquele seria o início de uma operação que iria conseguir apanhar um importante grupo criminoso que fazia branqueamento de capitais, estava ligado à máfia de leste e tinha como os principais clientes elementos da máfia russa.

“O QQAAZZ foi totalmente desmantelado”, garante Paulo Gonçalves, Inspetor-Chefe em Coordenação na Secção Central de Investigação da Criminalidade informática e Tecnológica da UNC3T, que conta todos os detalhes desta operação em que a Polícia Judiciária em colaboração com a FBI conseguiu travar esta rede que operava em vários países, mas tinha Portugal como palco principal:  aqui criaram 32 empresas, abriram 272 contas - em 15 instituições bancárias diferentes – e os elementos do grupo usaram 28 identidades falsas.

Tudo começou, recorda o agente da PJ, naquele dia, de janeiro de 2019, em que foram ao banco deter dois homens suspeitos.

“Tentaram resistir e tentarem fugir, isto logo ali nas imediações do banco”, conta, explicando que apesar disso, conseguiram “proceder à sua detenção”.  Nesse momento, explica, ninguém fazia ideia de quem eram. Mas por regra, sabe-se que são sempre, indivíduos de base de uma estrutura criminosa que são os que dão a cara (money mules). Neste caso, parte da chave da investigação, estaria em apurar “a sua identidade verdadeira."

Um dos passos decisivos foi os telefonemas constantes de alguém: “Quando os trouxemos, apercebemo-nos que havia alguém que estava constantemente a ligar-lhes”, diz o Inspetor-Chefe.  As autoridades perceberam que aquele contato seria de alguém colocado mais acima na estrutura criminosa e por isso era importante também chegar a essa pessoa.

“Como há indivíduos que colaboram connosco e dominam a língua russa, fizemos apelo a esse estratagema de entrar em comunicação com esse individuo”, explica. Depois criaram “um engodo que foi simular um encontro”,

“Quase que se deu uma perseguição. Tivemos que nos fazer passar por um Uber para apanhar o individuo. Tivemos de fazer alguma história de cobertura, improvisada no momento”, descreve o responsável da PJ, que continua: “também temos de ser atores, criativos, improvisar”.

E tal como nas primeiras duas detenções, não sabiam quem o suspeito era: “Íamos completamente às cegas, não sabíamos se tinha arma, se não tinha”. Depois “percebemos que além de ser letão também tinha nacionalidade bielorussa”. Apuraram ainda que “já tinha estado preso numa cadeia da União Soviética e que tinha cumprido pena”. Ou seja, resume: “era um individuo maduro e que impunha algum respeito”.

Entretanto, foram percebendo o que podia estar em causa e após as três detenções tentaram sensibilizar o tribunal para tudo o que podia estar em causa. Mas quando foram presentes a um juiz “ficaram com apresentação periódica”. “Os três foram-se embora”. Ou seja, fugiram de Portugal. Dois acabaram por ser extraditados e enfrentaram a justiça portuguesa. Estes dois e mais cinco elementos entretanto descobertos foram condenados em outubro a penas de prisão de efetivas entre três anos e seis meses e seis anos e seis meses. Seis eram naturais da Letónia e um da Geórgia. Sentaram-se no banco dos réus pelos crimes de associação criminosa, branqueamento de capitais e falsificação de documentos. 

O FBI e a colaboração internacional

Para a investigação, nota o inspetor-chefe, foi essencial a colaboração com o FBI e a Europol

A análise que ia sendo feita à documentação recolhida permitiu à PJ perceber que a atuação dos criminosos ia além-fronteiras. Foi partilhada, e pedida, informação à Europol. O FBI, que tem agentes de ligação em permanência junto desta entidade, rapidamente identificou um ponto de interesse de ambos os países. 

“Essa partilha de Informação gerou um alerta no FBI. Também eram indivíduos que estavam a investigar e pediram-nos a informação que tínhamos. Nós dissemos ‘temos isto’. Mas ‘isto’ era muita informação já recolhida, porque a maior parte das operações passavam por Portugal”, conta. “Ficaram admirados com o volume de informação que nós tínhamos, explica.

O FBI também já tinha informação sobre o grupo e várias vítimas de crimes. A PJ enviou, então, um elemento aos Estados Unidos: “Para partilhar informação, receber informação, criar sinergias. Foi assim que nasceu a coordenação conjunta da operação”. A Operação foi batizada de “2BaGoldMule”.

“O QQAAZZ estava a fornecer serviços de lavagem de dinheiro”

Do outro lado do Atlântico, a descoberta do QQAAZZ aconteceu no âmbito de uma investigação a uma organização cibercriminosa de grande dimensão.

“No departamento do FBI, de Pittsburgh, liderado pelo Ministério Público da Pensilvânia, tínhamos uma investigação relativa a uma organização cibercriminosa, que usava ghost malware. Olhando para os indícios e provas, percebemos que o grupo QQAAZZ estava a fornecer serviços de lavagem de dinheiro para essa organização”, explica à CNN Portugal a Agente Especial do FBI Samantha Shelnick.

Havia peças do puzzle espalhadas pelo continente europeu e americano e a colaboração da Europol também se revelou essencial, centralizando a partilhando informação, no desenrolar da investigação. 

Na altura, o FBI “não sabia” que Portugal era o centro das operações e até estranharam ver o nome do país em anúncios na darkweb, onde o QQAAZZ publicitava os serviços.

Mas havia referências a mais países: “Eles também anunciavam outros países como o Reino Unido, Espanha ou Alemanha.” 

“Com um trabalho mais fino percebemos que aquelas caras apareciam noutros passaportes, de outros casos. Com ajuda de analistas e perícia financeira, percebemos que isto era algo mais intrincado”. Juntaram vários processos e, de repente, uma sala ficou quase cheia de caixotes e papelada.

Da informação recolhida junto de todos os países envolvidos, e centralizada pela Europol, em poucos meses a operação foi montada. Havia vítimas norte-americanas, na Austrália, mas a maioria era da Europa. Foram identificadas mais 100 vítimas, mas terão sido mais.

“Tive que ter uma brigada inteira, o que não é normal, a trabalhar. Pessoas exclusivas a dedicar-se a essa análise de informação bancária”, recorda Paulo Gonçalves. Quanto ao dinheiro “foram apurados 10 milhões de euros. Seis milhões em Portugal, dois milhões nos Estados Unidos e o resto na Europa”.

“Mas o valor real é maior, disso eu não tenho dúvidas”, diz,

Grande parte dos suspeitos residia na Letónia e o papel desta polícia também foi fundamental para o sucesso da operação: “Os serviços na Letónia faziam quase tudo o que pedíamos. A operação também foi bem-sucedida porque eles também cumpriram o plano e foram eficazes”. Paulo Gonçalves confessa, todavia, que os achou um pouco frios: "São polícias duros, não sorriem".

Toda esta colaboração, nota por seu lado, a a Agente Especial do FBI permitiu que a operação fosse “um sucesso porque o grupo foi desmantelado”. (Leia aqui a entrevista exclusiva e completa da Agente especial do FBI, Samantha Shelnick).

“O cabecilha esteve em Portugal e foi investigado à parte"

No dia 23 de outubro de 2019, centenas de polícias, realizaram 40 buscas na Europa e na Austrália, em simultâneo. A nível europeu, a operação realizou-se na Letónia, Espanha, Reino Unido, Bulgária e Itália. Foram feitas 20 detenções. Sem contar com os três membros detidos em Portugal.

A possibilidade de fuga de um dos visados para a Rússia, precipitou uma parte da operação. Um dos suspeitos, que se encontrava já próximo da fronteira, foi detido pelas autoridades no dia 20 de outubro. A restante operação decorreu de acordo com o previsto e a Polícia Judiciária fez questão de estar na Letónia, no momento das detenções e das buscas. É algo pouco habitual de acontecer, mas a explicação é simples:

“Foi difícil convencer a direção, mas convencemos. Nós sabemos, andamos aqui há uns anos, tenho mais de 20 anos de policia. O momento da abordagem é crucial”, argumenta e explica: “Há coisas essenciais. O que vamos encontrar dentro de casa, porque encontramos sempre qualquer coisa e nós queríamos ser os primeiros a ver. Porque depois as coisas perdem-se nas cartas rogatórias, na transmissão da prova e a informação não é a mesma coisa. Não gosto que sejam outros a fazer e a dizer o que viram, porque isso já é uma interpretação deles. Prefiro ser eu a interpretar". Era importante ver os detalhes, garante: "Queríamos ver os telemóveis. Isso foi sagrado, os telemóveis foram todos analisados. E, depois, a conversa no momento da abordagem também é preciosa, porque é um momento emotivo e as pessoas falam mais”

Paulo Gonçalves, adianta que chegou a ser aberta uma investigação ao líder do grupo: “O cabecilha esteve em Portugal e foi investigado à parte, num outro processo que abrimos, para o investigarmos em exclusivo. No entanto, nunca conseguimos reunir prova suficiente e também não o conseguimos apanhar cá. Está na Rússia. Tem dupla nacionalidade: bielorussa e também georgiana.".

Porque atuaram em Portugal?

Ao contrário do FBI, que nunca se tinha cruzado com o nome de Portugal em grandes investigações ligadas ao cibercrime, a Polícia Judiciária sabe que o país é usado por estruturas criminosas especializadas em lavagem de dinheiro. E porquê Portugal? 

“Pode ter sido uma ideia deles (QQAAZZ), mas se foi, é uma ideia que vingou, porque temos muitas situações e vamos continuar a ter”, explica Paulo Gonçalves. Na verdade, a escolha pode “estar relacionada com o processo simples de abrir empresas e contas bancarias”.

E há outras razões: “Não podemos também esquecer que há comunidades próprias que se dedicam a isto e há partilha de informação. A este nível do branqueamento as coisas falam-se e sabem-se. Há uma grande partilha em fóruns ligados à criminalidade no submundo da internet, onde as informações e experiências são partilhadas. Às vezes, o sucesso de um tipo de crime num determinado país, leva a que isso seja espalhado e, depois, outros venham cometer crimes”

Apesar da operação do grupo ter sido maioritariamente em Portugal, também criou o mesmo esquema de empresas e contas bancárias em Espanha, Itália, e na República Checa.

Quando se fala em cibercrime e branqueamento de capitais, não existem fronteiras físicas e a colaboração entre polícias pode ser determinante no sucesso das investigações. Esta colaboração é desejada e necessária e a Europol pode ser uma ponte. 

“É importante porque os cibercriminosos não agem dentro de fronteiras, eles não são uma coisa física. Na verdade, o que há são as fronteiras dos países, com as quais temos de lidar e ultrapassar. Nações soberanas com as quais temos de trabalhar”, afirma Samantha Shelnick à CNN Portugal. 

A atuação em Portugal deste grupo, que segundo Paulo Gonçalves “prestava um serviço para a máfia russa” terá começado até antes de 2016. “Era uma estrutura muito profissionalizada”. A sua função era simplesmente ‘lavar’ dinheiro: “Os clientes é que eram cibercriminosos. Estes apenas faziam o branqueamento de capitais, que é um crime económico”.

O grupo era pago a peso de ouro: “Anunciavam o serviço em plataformas de comunicação na darkweb. Beneficiavam de 40%. É uma fatia muito grande… 40 a 50% do que branqueavam era para eles”, conta Paulo Gonçalves.

As autoridades não conseguiram chegar aos clientes, escondidos atrás das fronteiras russas, e também não chegaram à cúpula do QQAAZZ: “Há indivíduos que nós sabemos que são da cúpula e que estão na Rússia”. E, por isso, apesar de agora estarem parados, admite como possível que “mudem de nome” e “tentem renascer”.

 

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