A incrível viagem de Nani: o menino que passava fome conquistou o Mundo

8 dez 2024, 23:55

A propósito do fim da carreira, o Maisfutebol recupera as histórias reveladas por Nani no verão de 2020, relatos que conjugam cicatrizes, fé e gratidão

Piruetas, golos, conquistas, dez clubes e a audácia de contrariar o destino através do futebol. Na noite deste domingo, três semanas depois de completar 38 anos, Nani anunciou o término da carreira profissional. Num percurso de quase 20 anos, a vida do avançado mudou na primavera de 2003, quando espreitou oportunidades na formação de Sporting e Benfica.

A propósito deste anúncio do antigo internacional português, o Maisfutebol recupera o texto escrito por Nani em julho de 2020, no «The Players Tribune», quando representava os norte-americanos do Orlando City. De coração aberto, e sem vergonha nas cicatrizes deixadas pela infância na Amadora, recorda os capítulos e desaventuras que o guiaram até ao estrelato.

Aos sete anos, a criança franzina – a mais nova de nove irmãos – morava com a família numa casa de madeira, construída pelo pai. No entanto, a água escorria pelo teto.

«Um dia, o meu pai economizou dinheiro suficiente para construir uma casa maior, com material adequado. Mas, antes de terminar [a obra], fez uma viagem a Cabo Verde, onde os meus pais nasceram. Achei que ele ficaria fora durante algumas semanas, mas passaram meses. Ele não voltou.»

«Ele tinha vários filhos em Cabo Verde, talvez os estivesse a visitar. Tudo o que sabia era que o amava demasiado para me zangar. Mas, a ausência do meu pai complicou a vida da minha mãe», relata.

Quando a mãe de Nani iniciou uma nova relação, o clã deixou a referida casa – por imposição do «novo homem» – vendo-se obrigado a partilhar um quarto, uma sala, uma cozinha e uma casa de banho. Por isso, Nani recorda as noites passadas no sofá.

«Era um chão cheio de buracos, ratos e lagartos. Eventualmente, os ratos e os lagartos tornaram-se habituais. Quando somos crianças, é incrível como nos adaptamos. Mas, há uma coisa à qual nunca nos habituamos: a fome.»

«Tentem sentir a boca seca, quando o estômago grita e a dor no corpo é tão grande que questionamos se algo está a cortar a pele, ou se aquela é uma condição à qual nos devemos habituar. A única coisa “boa” sobre a fome é que ela nos obriga a encontrar soluções», prossegue.

E assim foi. Na companhia do irmão Paulo Roberto, Nani – batizado com esta alcunha por uma irmã, que considerou o nome «fofo» – viajou até à «parte rica de Lisboa», para pedir comida. Para surpresa da criança de 10 anos, recebeu «pão, sopa e biscoitos», além de sorrisos e dinheiro.

«Oportunidade de uma vida» para o irmão

Neste quotidiano de sorte e azar nas ruas, certo dia uma anónima interpelou os dois irmãos, oferecendo uma «pizza quase fresca», uma sensação intacta na memória de Nani. Uma vez que se faziam acompanhar por uma bola, esta senhora pediu para os rapazes mostrarem alguns dotes. E Paulo Roberto não tardou a receber rasgados elogios.

«Ela disse: “Ouve, tenho um amigo que é jogador profissional”. Era Marco Aurélio [defesa brasileiro que passou pelo Sporting de ‘94 a ‘98], que conseguiu uma oportunidade para o Paulo treinar no Sporting. Nada mal! Era a oportunidade de uma vida.»

«Mas, o Paulo chegou ao treino atrasado…um mês!», relata.

De acordo com Nani, este irmão, apesar da valentia e qualidade futebolística, era indisciplinado e entregou-se a vários vícios. Por isso, também desperdiçou uma oportunidade no Sparta Roterdão, nos Países Baixos.

Naquele momento, aos 10 anos, Nani sentiu-se «escolhido por Deus» para sustentar a família, pela via do futebol. Até porque, relata, sentia-se na posse da «disciplina, dedicação e otimismo» que não reconhecia aos irmãos.

Do Real ao reencontro com o pai

Naquela fase, Nani já treinava no Real Massamá há três anos, mesmo sem dinheiro para comprar os bilhetes do comboio. Conforme reconhece, o futebol foi essencial para fintar os rumos seguidos por alguns amigos, da mesma idade, já na infância marcados pelo vício de fumar.

«Apanhava o comboio para o campo de treinos, mesmo sem bilhete. Sempre que os inspetores me apanhavam, diziam: “Ok, miúdo, não faças isso de novo”. Mas, no dia seguinte, eu repetiria. Mais tarde, os meus treinadores deram-me dinheiro para os bilhetes, e comida. Alguns colegas deram-me roupa e casa, uma vez por semana.»

Depois de deixar a «casa com os ratos e lagartos», Nani encontrou as condições para se dedicar ao seu vício, acordando às sete da manhã para correr e aperfeiçoar a técnica, fizesse chuva ou sol.

Para este percurso contribuiu Mustafa, um «velho de África» distinto no Bairro de Santa Filomena, na Amadora. Para Nani, Mustafa foi como um treinador, meticuloso em termos técnicos e psicológicos. E que sempre preferiu o nome à alcunha.

«Mustafa dizia às pessoas: “Esse garoto, o Luís? Ele não come, não bebe. Ele só está lá fora a treinar. Ele não se importa com mais nada”.»

Nani, pelo Real Massamá

Até que, com 16 anos, na primavera de 2003, o avançado recebeu uma oportunidade na formação do Sporting, depois de esporádicos testes no Benfica. E nunca colocou em causa a escolha pelos leões, até porque tinha lá amigos e conhecia o treinador. Assim, no verão, assinou contrato, iniciando um ciclo de quatro anos.

Esta oportunidade ajudou Nani, mais do que em termos desportivos, a dar o «salto» financeiro. Como tal, tomou a iniciativa de conhecer o paradeiro do pai, algures em Cabo Verde: «Descobri que teve alguns problemas com os documentos e nunca foi autorizado a regressar. Então, resolvi o assunto, para que ele me pudesse visitar. Foi muito importante para mim».

O pai de Nani faleceu em novembro deste ano, motivo importante para a decisão de encerrar a carreira profissional.

A estreia pelo Sporting e o desejo de Alex Ferguson

Para completar o sonho de ser «um superstar», Nani entregou-se à vida na academia do Sporting, sobretudo para aumentar a força e a resistência, além de aprimorar a técnica. Ao cabo de dois anos, fez a estreia pela equipa principal, em agosto de 2005, pela mão de José Peseiro.

Nani, em outubro de 2005, com 18 anos.

Escassos meses decorreram até vislumbrar o caminho para o estrangeiro: «A comunicação social apontou-me a alguns dos maiores clubes no Mundo. O meu agente, Jorge Mendes, anotou todos os clubes e apontou para o Manchester United. Disse: “Falei com Sir Alex. Ele quer construir-te da mesma forma que construiu o Cristiano [Ronaldo].”».

Ao rumar a Inglaterra no verão de 2007, a troco de 25.5 milhões de euros, Nani contou com a companhia de Anderson (ex-FC Porto). E, nos primeiros meses, a dupla foi acolhida na casa de Cristiano Ronaldo. Resultado: muita diversão, cumplicidade e «alergia à derrota».

Um ano volvido, o trio já havia celebrado a conquista da Premier League e da Champions.

A derradeira memória

Neste texto de 2020, escrito com emoção, até nostalgia, Nani revela ainda se sentir aquele menino que dormia com ratos e lagartos em redor, ou aquela criança que apareceu no primeiro treino pelo Real Massamá com sapatos de couro e uma camisa de botão.

«Sinto-me grato por tudo [o que aconteceu]. Foi um caminho muito longo, mas Deus planeou cada passo. Houve muitas coincidências para que tenha acontecido ao acaso», recorda.

Por fim, Nani relata uma derradeira história, quando, aos 12 anos, num torneio «comunitário», alinhou ao lado de Sabino – o melhor amigo, que o convidou a treinar no Real – e foi treinado por Mustafa. Depois de uma reviravolta «épica», de 2-9 para 16-12, uma rapariga aproximou-se de Nani e pediu um autógrafo.

«Miúda de sorte, daqui a alguns anos, aquela assinatura vai valer muito dinheiro», disse Mustafa. Todavia, remata Nani, o «velho» não acertou.

«Pela primeira vez, Mustafa estava errado. Eu tinha escrito “Luís”», termina.

Que bonita viagem, Nani

Para lá da figura de Nani, que concluiu a carreira profissional com um palmarés invejável, a vida de Luís Carlos de Almeida Cunha prossegue. Enquanto acompanha o crescimento da filha Catarina, de 2 anos, assim como as aventuras do filho Lucas Cunha e do sobrinho Leonardo Varela pelo Sporting, o antigo avançado terá muito a fazer no Sintrense, clube no qual decidiu investir, e na academia inaugurada no Seixal.

 

O menino franzino que encontrou no futebol a salvação, despontou no Real Massamá, anunciou-se no Sporting e viveu os mais prolíferos capítulos da carreira no Manchester United. Mas, esta foi também uma aventura de muitos fusos horários.

Além dos regressos a Alvalade (2014/15 e 2018/19), o antigo internacional português representou Fenerbahçe, Valência, Lazio, Orlando City, Venezia, Melbourne City (Austrália) e Adan Demirspor. Por fim, em julho, Nani regressou à cidade que o viu crescer, assinando pelo Estrela da Amadora.

Despede-se dos relvados um jogador que proporcionou aos portugueses muitos momentos de festa, como no Euro 2016, quando marcou a Islândia, Hungria e País de Gales. E sem esquecer a braçadeira que «herdou» de Cristiano Ronaldo na final do Stade de France, frente aos gauleses.

 

Para a posterioridade ficam os golos (154), as piruetas, as conquistas e os momentos de espetáculo. Mas, primeiro, fica a epopeia de um menino que ousou sonhar com um destino diferente. E venceu, a pulso. O futebol aplaude a derradeira substituição de um dos mais brilhantes avançados portugueses do século XXI.

«Lá vai o Nani, vai marcar um golo, vai dar um mortal, lá vai o Nani».

Relacionados

Sporting

Mais Sporting

Patrocinados