ENTREVISTA || António Ng Kuok Cheong tem 67 anos. O nome próprio – que não usa – é uma herança do tempo em que Macau foi administrado por Portugal. Diz algumas palavras em português, mas é em inglês que conversa com a CNN Portugal. "A generalidade dos residentes sabe o que se passa, mas para eles se o governo continua a distribuir dinheiro à população, então, está tudo bem"
Durante mais de 30 anos foi deputado da Assembleia Legislativa, eleito sempre por sufrágio universal. Era uma das vozes mais ativas do campo pró-democracia, até ser impedido de se candidatar ao hemiciclo, em 2021. António Ng Kuok Cheong, conta-nos agora que é raro ser contactado para ser entrevistado. Dedicou grande parte da sua vida à luta pela democracia. Em 1992 fundou a Associação Novo Macau, mas antes tinha feito parte da União para o Desenvolvimento Democrático. Esteve três décadas na Assembleia Legislativa a defender o que hoje é indefensável na China.
Quando é que decide entrar na cena política?
De abril a junho de 1989 viveram-se momentos importantes na China. Eu defendia o povo chinês. Lutei e manifestei-me pela democracia. Mas era gerente no Banco da China e percebi que as minhas convicções políticas iam ser um problema para o meu trabalho.
Um dia, o meu chefe arranjou um jornalista de um jornal de Macau muito famoso para ir ao meu escritório fazer-me perguntas sobre alguns problemas sociais. No dia seguinte publicaram uma notícia a dizer que “Ng Kuok Cheong tinha saído da União Democrática de Macau por vontade própria”. Foi uma novidade para mim. Decidi demitir-me.
O que é que a União para o Desenvolvimento Democrático fazia nessa altura?
Politicamente e de forma pública aconselhávamos e insistíamos para que os líderes da China refletissem no que tinha acontecido a 4 de junho de 1989, e que pedissem desculpa e fizessem alguma coisa pela democracia no país. Mas sabemos que Macau é um sítio muito pequeno, temos poucos recursos. Não conseguimos mudar o rumo da China, mas podemos fazer mais por esta sociedade, mesmo em termos de democratização.
Foi assim que fundou a Associação Novo Macau, em 1992. Como olha para todos estes anos que passaram, principalmente desde 1999?
Macau mudou completamente. Não, necessariamente, para pior. Foi criado o sistema de segurança social, disponibilizada educação pública gratuita para todos, e criado um sistema de saúde. E como Macau enriqueceu, houve um forte investimento nestas áreas.
A nível económico, basta ver os números. Temos um ótimo PIB por causa da indústria do jogo, e também porque a China permitiu à população que viesse para Macau jogar. Ficámos muito ricos, muito rapidamente.
Politicamente, depois de 1999, muitas associações chinesas enriqueceram, por causa dos subsídios do governo. O maior problema, nessa altura, foi a corrupção. O governo tinha muito dinheiro para gastar e as empresas chinesas tinham relações muito próximas com os gabinetes do executivo.
Entre 1999 e 2018 acreditei que éramos livres. Fazíamos pedidos ao governo central para refletir sobre o 4 de junho. Em Macau podíamos criticar o governo e discutir qualquer questão política. Nessa altura, até chegávamos a enviar documentos com denúncias e dados para o governo central, sobre Macau. Tínhamos sempre uma resposta do governo central.
As coisas mudaram. Quando foi o ponto de viragem?
Em 2021 fui desqualificado das eleições legislativas. Pelo que sei, foi uma ordem do governo central, na China. O regime quis acabar com os problemas em Hong Kong, na sequência dos protestos pró-democracia.
Na verdade, percebemos logo em 2013 ou 2015 que a China estava a caminhar numa nova direção. Xi Jinping preparava um novo rumo para o país. Antes de Xi Jinping (chegar à liderança) a China estava mais aberta ao capitalismo e interessada em enriquecer. No entanto, alguma resistência da própria comunidade internacional terá feito Xi Jinping repensar o modelo. Decidiu que economicamente a China ia aderir ao capitalismo, mas não politicamente.
Depois dessa desqualificação, em 2021, a sociedade civil deixou de poder tomar iniciativas que criticassem o governo.
Vemos que essa pressão se sente no dia a dia. As pessoas têm medo de falar?
Alguns amigos que têm visões mais revolucionárias e democráticas, os mais jovens, decidiram sair de Macau. Alguns foram para o Reino unido, outros para Taiwan (mas poucos).
A generalidade dos residentes sabe o que se passa, mas para eles se o governo continua a distribuir dinheiro à população, então, está tudo bem. Querem que o governo mantenha o bem-estar social.
Isso desilude-o?
Não. Também penso que o sistema democrático é apenas uma de várias questões que têm de ser pensadas. Como a educação, a saúde, por exemplo. Sei que o povo de Macau vai lutar por estas questões.
Não se vislumbra uma melhoria do sistema político a curto prazo. As pessoas em Macau, como eu, não conseguem mudar nada na China. No entanto, devemos continuar com este ideal de democracia.
Há alguma esperança de um futuro mais democrático em Macau?
Espero que Macau tenha um dia um novo poder e novas vozes. A nova geração tem um nível académico muito elevado. Mas, claro, precisa de tempo para consolidar uma posição social. Eu vou continuar a dar a minha opinião sobre Macau. E sei que o problema não é só a China. Todo o mundo está a enfrentar problemas graves. São precisas novas vozes no mundo.
Disse que vai continuar a expressar as suas opiniões. Que não vai ficar em silêncio. Sente-se livre?
Se ajudar algumas pessoas publicamente, num caso que critique o governo, sei que elas terão problemas. Por isso, continuo a seguir alguns casos, mas não publicamente.
Não é um ambiente muito bom. Mas sei que não sou o único a passar por isto. Muitas pessoas enfrentam dificuldades. Na vida há sempre dificuldades, e acreditamos que um dia essas dificuldades serão ultrapassadas.
Alguma vez pensou em desistir das suas convicções políticas?
Podia mudar radicalmente as minhas convicções políticas, e tentar outra vez voltar à Assembleia Legislativa. Mas se o fizesse, estaria a desistir completamente de mim mesmo.