Macau: 25 anos depois há ainda muito Portugal num cantinho da China

21 dez 2024, 22:00

CRÓNICA || Chloe sai todos os dias de casa para ir à Escola Portuguesa de Macau, onde as salas quase que não dão para todos os que querem entrar. É um pequeno traço da presença de séculos num território longíquo

Despedi-me duas vezes de Macau. A primeira foi há 25 anos. Era agosto. Quatro meses depois, assisti à transferência de poderes na televisão a partir da minha nova morada: Lisboa.  Mais tarde, já adulta, voltei a viver no oriente outra dezena de anos. Conheço o antes e o depois do dia 20 de dezembro de 1999.

Fui a Macau em setembro deste ano à procura do que resta de Portugal a oriente. Encontrei-o numa família chinesa. Chloe tem nove anos e é fluente em português e mandarim. É a única na família que aprendeu a língua de Camões. Receberam-me em casa numa tarde de domingo, na véspera do regresso às aulas. Na mesa de jantar, preparavam-se os manuais escolares para serem identificados. "Chloe 4.º C" - escrevia enquanto falava com a mãe em chinês.

“O pai da Chloe é músico e eu sou professora de yoga, não temos uma visão muito rígida para a vida. Por isso, pensámos em formas diferentes de viver para a Chloe,” disse-me a mãe. Li Li escolheu a Escola Portuguesa de Macau para a filha, que desde os três anos frequenta o ensino em língua portuguesa. Não é só uma questão linguística, mas também pela forma de pensar: “Quero que a Chloe tenha mais abertura, mais confiança e que seja independente”, conta.

Escola portuguesa na China

Também eu me sentei nas salas de aula da Escola Portuguesa de Macau (EPM).  As instalações foram inauguradas em 1998, na antiga Escola Comercial Pedro Nolasco, pouco antes da transferência de poderes. Estão iguais, com os mesmos azulejos portugueses azuis a revestir a fachada e parte interior do átrio.

São 09:00, Chloe veste uma saia azul-escura, um polo amarelo com o símbolo da escola do lado esquerdo. Veste-se como todos os outros alunos. São 780 no total, do 1.º ao 12.º anos e a escola começa a ficar pequena para tanta gente.

O número de estudantes quase que duplicou na última década. “A pressão é imensa. Este ano temos mais uma turma do 1.º ano”, afirma o diretor Acácio de Brito, que avisa que “deixámos de ter condições para mais alunos, neste momento já temos grandes dificuldades.”

Há mais alunos, mas menos portugueses. Acácio de Brito faz as contas e conclui: “Temos uma comunidade portuguesa menor, diminuiu nos últimos 25 anos. Por outro lado, temos um aumento da comunidade chinesa. E aí nós temos de valorar o ensino da língua portuguesa”.

Como todas as escolas portuguesas espalhadas pelo mundo, também a EPM segue o plano curricular de Portugal. As provas globais e nacionais são as mesmas, mas a preparação é outra e obriga a um esforço acrescido.

 “O desafio de ensinar português aqui é enorme. É diferente estar em Portugal, a estudar em Portugal, a ouvir falar português todos os dias, do que estar aqui, onde, na maior parte das vezes, só falam português na sala de aula”, realça a coordenadora do departamento de línguas, Paula Pinto.

Não é de estranhar. Um terço dos alunos da Escola Portuguesa de Macau tem nacionalidade chinesa e muitos não têm ligação a Portugal. “Sinto que estou a fazer um bocadinho o que os navegadores portugueses fizeram há 400 anos. Acho que estou a deixar um bocadinho do que somos, da nossa cultura e da nossa língua”, conclui a professora.

O português é, ainda, a par do chinês, língua oficial em Macau. É ensinado na EPM, no Instituto Português do Oriente mas também em dezenas de escolas públicas e privadas na cidade. Este ano, o governo da região contabilizou três mil alunos do ensino não superior a estudar a língua de Camões nas escolas da cidade.

Nos últimos anos a procura pelo ensino do português cresceu, mas isso não se reflete no número de falantes. Para a presidente da Casa de Portugal em Macau, Amélia António, o ensino “é insuficiente e tem tido poucos frutos”.

Mal se ouve falar português na cidade. Lê-se, sobretudo: no nome das ruas, das lojas, dos restaurantes. Há até cinco jornais em língua portuguesa, bem como uma rádio e uma televisão a emitir em português do extremo oriente.

Canal Macau

A emissora pública de rádio e televisão de Macau foi fundada há mais de 40 anos pelos portugueses. Atualmente, a Teledifusão de Macau (TDM) disponibiliza uma rádio e cinco canais de televisão em língua chinesa. Em português, estão no ar a Rádio Macau e o Canal Macau, de televisão.

Gilberto Lopes, diretor de Informação e Programas dos Canais Portugueses da TDM, explica que “nas negociações do gabinete de ligação conjunto, órgão de consulta entre Portugal e a China, ficou decidida a existência de emissões em língua portuguesa. Portanto, há uma obrigação, que está consagrada, de manter informação em português.”

Ao todo, na secção portuguesa e inglesa da TDM, trabalham 30 jornalistas. Nem todos são portugueses. Nos últimos anos, tem havido uma aposta cada vez maior em jornalistas chineses bilingues.

Hong Oi Sek tem 24 anos, está na TDM desde 2021. Estudou tradução em universidades de Macau e Portugal. Quando chegou à redação portuguesa do Canal Macau “só trabalhava como tradutora, mas queria deixar de ser só tradutora e ser uma jornalista verdadeira”.

Não demorou muito até conseguir. Além de repórter, Hong Oi Sek é, hoje, um dos rostos do Telejornal, o principal programa de notícias do canal português. Assume que nem sempre as críticas são positivas: “Há sempre comentários sobre a pronúncia. Porque em chinês não temos verbos com R ou L e em português existe.”

Liberdade ameaçada

No Consulado-geral de Portugal em Macau estão inscritas cerca de 150 mil pessoas, embora a esmagadora maioria seja de origem chinesa e não tenha ligações familiares a Portugal. Nos últimos anos, assistiu-se a uma saída de portugueses em grande escala, consequência das medidas de controlo da pandemia da covid-19 mas também da erosão da liberdade no território.

“Macau mudou drasticamente em vários aspetos. Nos últimos anos sente-se que nem sempre somos bem-vindos e não valorizam o contributo que temos a dar”, descreve Diana Massada, uma portuguesa que cresceu em Macau. É testemunha da mudança dos tempos.

Os protestos em Hong Kong, em 2019, fizeram soprar os ventos da censura e da repressão também no território que foi administrado por Portugal até ao final do século passado.

Diana Massada admite que a pressão se sente no dia-a-dia, tendo já moldado “um comportamento ou uma forma de estar minha”.

 “A partir do momento em que as pessoas se autocensuram, seja no Facebook, em locais públicos, nos jornais, seja onde for, é o momento em que entendemos que a liberdade não é como nós a entendemos”, lamenta.

Desde 2020, estão proibidas vigílias pelas vítimas do massacre de Tiananmen em Macau, e eventos como o  World Press Photo foram cancelados. Em 2021, os deputados do campo democrático foram afastados da corrida à Assembleia Legislativa. A pressão política acabaria por chegar aos órgãos de comunicação social portuguesa, um cenário que já se verificava na imprensa chinesa há vários anos.

Gilberto Lopes reconhece que “as coisas mudaram, como o mundo todo mudou”. O diretor de informação da TDM sublinha que “teve de haver uma adaptação daquilo que é a realidade”, mas garante que “os grandes assuntos continuam a ser discutidos”.

Críticas ao regime chinês têm pouco ou nenhum espaço no Telejornal ou nos programas de debate e entrevista no canal em português. O mesmo acontece na Rádio Macau e nos outros jornais em língua portuguesa. Se nos primeiros 15 anos após a transferência de poderes, a imprensa foi livre em Macau, agora vive amordaçada.

Não foi isto que ficou previsto quando, em 1987, Portugal e China assinaram a Declaração Conjunta. O documento determinava que Macau iria continuar a ser governado de forma autónoma, e que o modo de vida - incluindo os direitos e liberdades - se manteria por, pelo menos, meio século, até 20 de Dezembro de 2049.

Estamos agora precisamente a meio do período de transição determinado pelos dois lados. Muito mudou, mas muito ainda está para mudar.

“Não era preferível estarmos já integrados?”, questiona Diana Massada, para logo de seguida responder: “De certa forma diria que sim, porque sabemos com o que é que podemos contar. Enquanto aqui ainda é o faz que faz, é mas não é, há liberdade mas não tem, pode-se falar mas não convém”,  acrescenta com um sorriso carregado de ironia.  

No horizonte de Diana, o regresso a Portugal está  “mais perto do que pensava”.

Já eu volto a despedir-me de Macau, com a certeza de que a cidade onde nasci será outra quando a reencontrar. Provavelmente, maior em tamanho, mais rica e mais desenvolvida. Mas também mais opaca, e cada vez menos livre.

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