"Lula, sem instrução, dava prestígio internacional ao Brasil. Bolsonaro é um troglodita". Entrevista ao biógrafo de Lula da Silva

28 set 2022, 22:00
Lula da Silva e Jair Bolsonaro (AP Photos)

O jornalista Fernando Morais acompanhou Lula da Silva durante anos e lançou recentemente o livro "Lula, Volume 1 - Biografia". Numa altura em que o ex-presidente lidera as sondagens para as eleições de domingo de forma clara, Fernando Morais conversou com a CNN Portugal sobre as origens, as influências, os efeitos da Lava Jato e até a prisão de Lula. Sem esquecer o atual presidente, Bolsonaro, que acusa de aumentar "o risco" de Lula "ser vítima de um atentado"

Porquê apenas ao fim deste tempo surge a primeira biografia de Lula?

Fernando Morais: Se for fazer o levantamento da quantidade de livros que existem sobre o Lula, é uma infinidade, mais de uma centena, quer brasileiros, quer estrangeiros. Mas nenhum deles com o objetivo de fazer uma biografia. A maioria é focada em determinados aspetos da sua vida: ou o Lula operário ou o Lula político. Esta biografia tem características especiais, embora tenha sido autorizada, ele não leu os originais. A autorização, na verdade, foram várias contribuições que ele deu ao longo destes dez anos em que estive ao lado dele, ouvindo, perguntando, viajando pelo mundo com ele. Quando comecei a trabalhar com ele tinha acabado de deixar a presidência, recebia convites, inclusive de Portugal, no aniversário da Revolução dos Cravos, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa. Essas viagens foram muito produtivas porque dentro de aviões não há secretária, funcionários ou visitas. Há uma maior proximidade e a possibilidade de falar. E ele não dorme muito nos aviões. Lembro-me de um voo do Brasil para Nova Deli. Foram 23 horas, com uma escala em Luanda para reabastecimento. Se eu for ver ao gravador, é capaz de ter dado umas 20 horas de depoimento. É uma biografia que tem essa vantagem sobre a enorme quantidade de trabalhos sobre ele, e uma outra peculiaridade que é o facto que, embora tenhamos relações fraternas e cordiais há mais de 40 anos, eu não sou do PT. Pelo contrário, cheguei a ser adversário ferrenho do PT quando era deputado. Fui publicamente contra a fundação do PT porque acreditava que a formação de um partido romperia a frente democrática de luta contra a ditadura, e que isso prejudicaria o avanço das forças democráticas. A história acabou por provar que o Lula tinha razão e não eu. A criação do PT não atrasou a redemocratização do Brasil. Tive o privilégio de poder conviver com ele sem ter as obrigações que um militante do PT teria. O beneficiário desse privilégio casual que eu tive é o leitor.

Como é que se deu essa aproximação a Lula da Silva?

Nos anos 70, eu era um jovem deputado, não tinha 30 anos ainda, e ele era um operário como qualquer outro, até começar a atuar no sindicato e a fazer uma carreira política interna no mundo sindical. Ele tinha muitos preconceitos com a política convencional, via com muita prudência, para dizer o mínimo, a proximidade de políticos. Apesar disso, havia um pequeno grupo de deputados que, durante as greves, ia para a região do ABC (a região industrial de São Paulo), onde as paralisações eram mais fortes. Íamos para testemunhar ou tentar impedir a violência da polícia contra os grevistas, e foi nesse processo que eu acabei por me aproximar dele. Estava ao lado dele no dia em que o sindicato foi invadido pela polícia e foi colocado sob intervenção do Governo Federal. Há uma passagem saborosa, que envolve um outro ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso. Saímos para jantar perto do sindicato num barzinho muito simples. Fomos discutir um pouco a conjuntura política e o Fernando fez uma análise da situação política do Brasil, e ele achou que o general Figueiredo, o último ditador, não teria coragem de invadir o sindicato ou outra intervenção e, portanto, não fazia sentido nós, os deputados, ficarmos ali de plantão ao lado do Lula. Acabámos de jantar, o Fernando pega no seu carro e foi embora para São Paulo, e o Lula, que é muito desconfiado, disse para nós “olha, é melhor vocês ficarem porque eu temo que vá haver algum ato de violência do governo”. Subimos e fomos para a sala, ficámos a tomar uma cachacinha de cambuci, muito amarga, e a jogar às cartas. Por volta da uma da madrugada, ouvimos o barulho das hélices dos helicópteros e, quando olhámos pela janela, o sindicato estava cercado pela tropa de choque da Polícia Militar. Ao contrário da análise do Fernando Henrique, invadiram o sindicato, o Lula foi preso, passou 30 dias na prisão, ele e toda a direção do sindicato.

Também há outra passagem muito curiosa. Quando acabou a greve, todos os ex-dirigentes do sindicato ficaram desempregados, foram demitidos das suas empresas. Resolveram montar uma pequena metalúrgica, mas não tinham dinheiro. Receberam parte dos recursos do IF Metall, o Sindicato dos Metalúrgicos Suecos, mas ainda assim faltava dinheiro. E o Chico Buarque de Holanda, que tinha simpatia pela causa, completou com dinheiro do próprio bolso o que faltava para eles montarem a pequena oficina. E o Lula, sempre bem-humorado, até nos momentos mais dramáticos ligou para o Chico Buarque para lhe agradecer e disse “olha, Chico, temos um problema com essa doação que fez. Isso converte-te em patrão, vai ter de ir para o sindicato patronal (a FIESP)".

Quando se inicia o desmantelamento da ditadura militar, ele cria o PT. A gente não chega a romper ou a distanciar-se, mas tomámos rumos diferentes. Eu continuei na Frente Democrática, mas acompanhei à distância a carreira dele até chegar à presidência. Votei nele exceto numa ocasião, na primeira eleição, em que ele perde para o Fernando Collor. Na primeira volta, votei no Ulysses Guimarães, que era o candidato da Frente. Na segunda volta votei, naturalmente, no Lula. Até nas três eleições que ele perdeu, eu votei nele. Apesar de continuarmos a ter uma boa relação, a frequência dos nossos encontros diminuiu. Para ter uma ideia, nos oito anos em que ele foi presidente da república, estive duas ou três vezes no Palácio (do Planalto), ainda como jornalista. Desde o início tinha um plano para fazer uma história dele, ainda que não fosse uma biografia. Eu queria fazer o acompanhamento dos bastidores da presidência do Lula, mas ele não deixou. Quando foi reeleito voltei à carga e falei “presidente, agora é uma boa oportunidade, já viveu um mandato”. Ele disse não e eu desisti. Em 2011, poucos meses depois de passar o governo à presidente Dilma Rousseff, ligou-me a dizer que estava disposto a colaborar, então, comecei a trabalhar com ele. Durante o período em o que acompanhei, surge a crise política aqui no Brasil e acabei por ter um privilégio adicional de acompanhar a crise e o golpe que derrubou a Dilma ao lado dele, vendo tudo aquilo pelos olhos dele, que é algo que virá agora no segundo volume do livro. Acabei também por acompanhar a prisão, lá no sindicato, estava lá na véspera. Tive a oportunidade de presenciar os bastidores daquela tensão porque não se sabia se ele se iria entregar à polícia ou se resistiria, havia uma divisão clara na base sindical e nas alianças políticas dele até dentro do próprio PT. Também havia uma multidão gigantesca que dormia à porta do sindicato, montou barracas e gritava “Não se entrega! Lula não sai, polícia não entra!”, o que seria algo sem sentido e uma loucura. Havia uma corrente que defendia que ele se exilasse à embaixada portuguesa ou de algum país vizinho, mas ele recusou e disse: “Eu sou inocente, fugir e pedir asilo é reconhecer publicamente as acusações que me fazem. Eu não sou ladrão, não roubei e não permiti que roubassem. O que aconteceu foi feito à minha revelia sem que eu visse. Vou permitir que me prendam, vou transferir a responsabilidade para eles”.

Lula da Silva entrega-se à Polícia Federal, em abril de 2018.

Numa das visitas à prisão perguntei-lhe “como é que se sentiu na primeira noite, no momento em que apagou a luz da cela e foram todos embora? Rezou, insultou alguma autoridade, chorou, o que é que o senhor fez?” Ele disse-me que não tinha feito nada. “Nem tirei a roupa para dormir. Tirei os sapatos, escovei os dentes, caí na cama e dormi. Nem apaguei a luz. E dormi muito bem. E eu perguntei “como, se está numa situação tão dramática, de um ex-presidente da república condenado a nove anos de prisão?”. Ele respondeu que tinha a certeza que não passaria mais de uma semana na cadeia. “Em uma semana estarei nas ruas”. Ele achava que iria sair ou por razões políticas ou por razões jurídicas. Era um engano dele, achava que iria ficar uma semana e ficou 580 dias.

Enquanto ele estava na cadeia houve dois momentos que o deixaram emocionalmente muito abalado: a morte do neto de sete anos e a morte de um querido irmão mais velho. A Justiça e o Sérgio Moro não queriam autorizar que ele fosse aos velórios. Não queriam que ele fosse enterrar o neto, que teve uma morte inesperada devido a um erro médico. Quando os hackers divulgaram as gravações dos procuradores públicos vimos coisas horrorosas. Na morte do menino, por exemplo, os advogados do Lula requereram autorização para que ele fosse a São Bernardo do Campo, com escolta e sem nenhum privilégio, para assistir ao velório. Nas gravações divulgadas, um dos procurados dá uma gargalhada quando vê o pedido do Lula e diz o seguinte: “O malandro tá querendo passear!”. Uma barbaridade e desumanidade. Sai do universo político para entrar na tragédia humana do sujeito.

Depois de 18 meses preso, o Supremo Tribunal Federal anulou a condenação de Lula porque consideraram que tinha sido julgado por um tribunal que não tinha jurisdição e que o juiz Sérgio Moro era parcial...

Há, indiscutivelmente, uma influência clara das elites brasileiras contra o Lula. É um país que tem uma enorme dificuldade de lidar com o fenómeno Lula: um camarada que veio do Nordeste de ‘pau-de-arara’ (camião adaptado ao transporte de passageiros), analfabeto, sem um dedo, que perdeu a trabalhar na oficina, e com ideias progressistas. Lula nunca foi um revolucionário, ele mesmo diz isso, mas mesmo assim não se suportava alguém como ele. Além das injustiças praticadas contra ele, que depois foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal, havia uma verdadeira guerra dos meios de comunicação contra ele. O tratamento dado ao Lula foi algo inacreditável. Se falar com um estrangeiro ele vai ficar escandalizado com o facto de, num país de 210 milhões de habitantes, a informação que todos recebem vir de cinco famílias, as cinco que controlam os meios de comunicação. Sou jornalista há 60 anos e nunca vi, no Brasil ou no exterior, uma guerra como a que foi montada pelos meios de comunicação contra ele.

Considera que foi uma campanha deliberada e não uma simples guerra pelas audiências, então?

Foi uma campanha deliberada e que não acabou ainda. Depois de tudo ser denunciado são um pouco mais cuidadosos no tratamento ao Lula, mas são declaradamente contra a eleição dele. A sorte é que eles se envergonham de dizer que apoiam alguém como Bolsonaro, que é um selvagem, um sujeito primitivo. Não faz sentido apoiar, mesmo que seja um jornal ou uma televisão conservadora. Estraga a sua biografia apoiar alguém como o Bolsonaro, mas, ainda assim, fizeram um esforço muito grande pela tal “terceira via”, nem Bolsonaro nem Lula. E não deu certo. Saiu uma sondagem que mostra que o Lula está a milímetros de ganhar na primeira volta. Neste caso, a sondagem foi da TVGlobo, que foi obrigada a dar em manchete que o Lula está com 45% dos votos válidos, está na iminência de poder ganhar logo na primeira volta.

Foi a Operação Lava Jato que espoletou o regresso de Lula à política?

Quando a Dilma terminou o primeiro mandato, em 2014, houve um movimento muito grande dentro do PT para que ele fosse o candidato. Já quando ele estava para terminar o segundo mandato, um deputado do PT, ex-metalúrgico e colega dele de luta, apresentou um projeto de revisão constitucional que permitia que ele fosse candidato a um terceiro mandato. Lula desautorizou publicamente, disse que não se ia mexer na Constituição. Em 2014 já não precisaria de fazer nenhuma alteração, a lei permite, mas ele garantiu que não iria forçar a Dilma a abrir mão da tentativa de reeleição, só seria candidato se Dilma quisesse abdicar. Isso não chegou a criar nenhum atrito entre os dois, pelo contrário, tratou de forma delicada a sua sucessora.

Se olharmos com distância vemos que o golpe não era contra a Dilma. A Dilma era um obstáculo para o objetivo final deles que era impedir o Lula legalmente, pois eles não queriam um golpe de Estado como os que estávamos acostumados, especialmente aqui na América Latina, com tanques nas ruas. Era um golpe de Estado constitucional porque se dá um processo de impeachment. Teoricamente está dentro da lei, mas eles não queriam a Dilma. O alvo não era a Dilma, o alvo era o Lula. Era impedir que ele voltasse a ser candidato pelo temor de que ele pudesse avançar as transformações que ele iniciou no primeiro mandato.

Como é que seria o Brasil atualmente se Lula não tivesse sido preso em 2018?

Há alguns dados que são aterradores. O Lula conseguiu retirar da situação de miséria 40 milhões de brasileiros. São quatro ‘Portugais’ que estavam abaixo da linha da miséria e que passaram a ter três refeições por dia, sobretudo com o projeto do Bolsa Família. Não só retirou essas pessoas da miséria como reativou a economia. Ainda que o Bolsa Família fosse um valor modesto para as necessidades de uma família, acaba por ser uma corrente de transmissão que acaba por atingir a economia toda. A indústria automóvel nunca tinha vendido tantos automóveis, sobretudo os baratos. Havia milhões de pessoas que nunca tinham visto o interior de um avião, como os nordestinos que foram para o Sul, que no verão visitam sempre as suas famílias. Passaram a viajar de avião, era uma loucura fazer quatro ou cinco mil quilómetros de autocarro. Tudo isso desapareceu, já com o Michel Temer, o ‘intermediário’, ‘o postiço’, e depois consolidado com o programa ultraliberal imposto pelo Bolsonaro.

Você pergunta o que seria do Brasil se o Lula não tivesse sido acusado e preso; seguramente não se veria o que ontem à noite eu vi. Fazia muito frio aqui em São Paulo, estava a voltar de casa do consultório médico, onde fui tratar das sequelas da covid e passei debaixo de um viaduto. Fazia um frio infernal, 11 ou 12 graus, e havia muita humidade. Debaixo do viaduto, famílias inteiras em barracas de nylon morando ali. Houve noites em que se chegou aos 3 graus. Se pegar num carro e andar pelo centro da cidade, sobretudo o centro velho, é algo inacreditável. Um país tão rico, com recursos naturais tão abundantes. Seria inaceitável para um governo como o do Lula. O Brasil teve uma perda muito grande também na questão internacional. Com Bolsonaro, o Brasil converteu-se num pária. Lembra muito, guardadas as distâncias, a África do Sul do apartheid que, para além do protesto internacional, começou a ser alvo de sanções, que se foi isolando. É esse o caminho que o Brasil percorrerá se o Lula não ganhar a eleição.

Deve imaginar a vergonha para nós, brasileiros, quando veio cá Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente de Portugal, celebrar os 200 anos de independência do Brasil. No palanque, no dia de desfile, o Bolsonaro, ao lado do Presidente de Portugal, começa a gritar para a população uma obscenidade, uma palavra que não se diz dentro de uma casa, que um pai não fala diante dos filhos. O Presidente de Portugal comportou-se de uma maneira digníssima, a impressão que deu é que fingiu que não ouviu. Isto que ele fez cara-a-cara com o Presidente de Portugal, que é vergonhoso para nós, saiu no mundo inteiro. Este tipo de comportamento é permanente nele, faz isso com pessoas modestas e com chefes de Estado. É curioso que o Lula, que era analfabeto e não tinha nenhuma instrução ou cultura, tenha tido o prestígio internacional que teve, e Bolsonaro que, bem ou mal, chegou a capitão do Exército e tem o Curso da Academia do Estado-Maior, quase equivalente a um curso superior, é assim. É inacreditável e surpreendente que as Forças Armadas estejam caladas diante disso. Bolsonaro está a fazer pior à imagem das Forças Armadas do Brasil que a própria ditadura militar, que foi sanguinária, matou e torturou milhares de pessoas. Hoje, internacionalmente, a condenação do governo Bolsonaro é infinitamente maior que na época da ditadura, embora ele tenha sido eleito de maneira democrática.

Agora, porque é que a população vai escolher um troglodita para ser presidente no século XXI? Por educação de má qualidade, falta de educação formal. A pessoa não consegue distinguir o óbvio, não conseguiram perceber, sobretudo a população pobre, o que me surpreendeu. Que os ricos tenham votado nele é natural.

Bolsonaro está a ser empurrado por um negócio horroroso que está a tomar conta da política brasileira, a chamada força política evangélica, as igrejas pentecostais ou neopentecostais. Se formos ao Congresso Nacional e vermos a lista de pastores de várias igrejas… é um comércio. Outro dia vi que entre os homens mais ricos do Brasil, com uma fortuna de 10 ou 12 mil milhões de dólares, está o bispo Edir Macedo da IURD. O papel que as igrejas pentecostais jogaram na estigmatização e demonização do Lula foi muito grande. Descobri aos poucos que eles se expandiram de uma maneira inacreditável pelo mundo inteiro. Tiveram problemas em Angola, em Portugal, com um caso célebre. São casas de comércio, não pagam impostos, têm uma rede de televisão, e isso contribuiu muito para a eleição do Bolsonaro. A esperança que nós temos é que a pressão da opinião pública sobre estas igrejas ajude a afundar o Bolsonaro.

 

Ao longo do livro são muitas as referências a cardeais, bispos e padres católicos que estavam ao lado de Lula. Porque é que no Brasil há tendência para os católicos se posicionarem mais à esquerda?

Isso começa na criação do PT. O quilómetro zero nesse processo de avanço da Igreja começa em Medellín, na Colômbia, com um concílio em que se inicia a política de opção preferencial pelos pobres, que no Brasil foi recebida por alguns cardeais da alta hierarquia, como o caso do cardeal de São Paulo. D. Paulo Arns, de quem fui muito amigo. Por ordem dele, fui num grupo retirar uma presa política da Argentina, uma garota, hoje embaixadora do país no México, que estava condenada à morte.

Cada vez mais me convenço que os dois Papas que antecederam o Papa Francisco (João Paulo II e Bento XVI) são muito responsáveis, pessoalmente, pelo avanço do neopentecostalismo de direita. Esses dois papas degolaram as lideranças da Igreja progressista, ligada à teologia da libertação. Aqui em São Paulo a primeira medida tomada pelo João Paulo II foi dividir a prelazia em várias partes, para tirar o poder do cardeal D. Paulo, e começou a transferir os bispos progressistas. D. Angélico Bernardo, no dia em que o Lula foi preso, oficiou um ato religioso e multiconfessional na porta do Sindicato, com um representante da comunidade judaica, um da comunidade islamita e por aí. Foi publicamente admoestado pelo atual cardeal, que é extremamente conservador. Havia cardeais como o D. Paulo, como o Dom Hélder Câmara, que a ditadura proibía inclusive de publicar o nome, tínhamos de fazer uma ginástica para publicar algo dele, dizer que era uma citação do Le Monde ou do The Guardian.

Essa Igreja [ligada aos pobres] está desaparecendo. Teve um papel semelhante na Argentina quando o Papa Francisco ainda era o cardeal Bergoglio. Ele tem um trabalho social na Argentina que eu fui visitar, junto com a equipa do Oliver Stone. Fomos à Argentina falar com a Cristina [Kirchner] e com o Alberto [Fernández] um pouco antes das eleições, e tivemos a oportunidade de ver que a Igreja na Argentina está a jogar um papel semelhante ao que a Igreja brasileira jogou na época das greves, da reorganização dos trabalhadores, no chamado “novo sindicalismo”. O Lula deve muito do apoio que recebeu às Comunidades Eclesiásticas de Base (CEB), que são os padres espalhados por todos os cantos do Brasil que pregavam a transformação, a melhoria de salários e das condições de trabalho. Isso desapareceu com esses dois Papas. Tenho esperança no Francisco, que de alguma maneira já está a fazer isso. Acabou de nomear um cardeal de origem alemã para a região da Amazónia que é um militante ambientalista. Não é que tenha tendências, é um militante ambientalista colocado lá pelo Papa Francisco para cuidar da tragédia dos indígenas brasileiros e da salvação da Natureza.

Mas há uma curiosidade: ao mesmo tempo que há um trabalho social significativo na Argentina, que é uma herança deixada pelo Papa Francisco, as igrejas pentecostais brasileiras já estão a tentar cercar os movimentos sociais argentinos. Falei com um jovem economista, uma espécie de assessor do Papa, e perguntei como estava a relação comercial entre o Brasil e Argentina. “Nos últimos anos vocês têm exportado para a Argentina automóveis e igrejas evangélicas”, disse ele. Estão a tomar o país para se vacinarem contra o resultado do trabalho social do Papa Francisco. No Brasil é muito claro o papel da Igreja comprometida com as conferências de Puebla e Medellín quando houve a inflexão para… eu não vou dizer para a esquerda, é errado dizer isso…

Para os pobres?

Exato, para o comprometimento com os pobres. Quando a Igreja abandona os movimentos sociais, a partir do trabalho desses dois Papas, entram os pentecostais, o bispo Macedo. “Desde que você pingue aqui alguns reais, Jesus vai resolver todos os seus problemas”. Para as pessoas sem base educacional elementar é uma armadilha na qual caem com muita facilidade. Para nós, hoje no Brasil, é uma tragédia política e social, um mal que está a ser feito aos brasileiros que agrava a situação dos brasileiros pobres e os miseráveis, que são os frequentadores dos templos evangélicos. Há exceções, no entanto. Algumas igrejas, pouquíssimas, caminham noutra direção. Lembro-me, por exemplo, que quando o presidente Hugo Chávez foi candidato pela primeira vez, fui a Caracas com o João Pedro Stedile, líder do Movimento dos Sem Terra (MST), e com o Ariovaldo Ramos, que é pastor de uma igreja pentecostal progressista, comprometida com o povo. É injusto generalizar, mas as exceções são muito poucas.

Lula da Silva e Dilma Rousseff (AP)

Falou há pouco de uma sondagem da Globo, que dava 45% para o Lula, mas 33% para o Bolsonaro. É um terço do eleitorado. Como é que olha para este número, depois de todas as polémicas e de uma gestão controversa da pandemia? Como é que Bolsonaro mantém esse número significativo? Tem a ver com essa influência da religião?

A religião tem um papel muito grande nessa votação que elegeu o Bolsonaro. Há muita influência da igreja e também de uma coisa que não podemos ter vergonha de reconhecer: o que aconteceu serviu para revelar que a percentagem de pessoas ultraconservadoras no Brasil é muito grande. Agora o Supremo Tribunal resolveu agir contra empresários, 15 dos mais ricos do Brasil, que estão a financiar um golpe de Estado a pensar na expectativa do Lula ganhar as eleições. É uma elite muito atrasada, bruta, extremamente egoísta, sem nenhum sentido de generosidade. Os quatro maiores bancos privados brasileiros têm em média, por trimestre, 2,5 a três mil milhões de dólares de lucro. Não vai um tostão para financiamento a juros subsidiados, para a casa própria, para a compra de eletrodomésticos, para poder ter luz em casa, que seria algo que geraria progresso. Seriam alguns ‘Portugais’ a entrar no mercado consumidor para comprar comida, em primeiro lugar, e depois comprar roupa e um automóvel, o mais barato, mas compram.

O dinheiro da Caixa Económica, para subsidiar os mais pobres, foi tirado de gastos absolutamente irresponsáveis ao longo do tempo, durante a ditadura militar e mesmo antes, que o Lula começou a corrigir e que eu tenho a expectativa, ainda que não seja do PT, que ele possa dar continuidade a isso.

Um dos aspetos que salta à vista ao lermos o livro é que, em jovem, Lula não era muito dado ao sindicalismo nem era um partidário de esquerda. A “doutrinação” dele não foi pelos estudos, nem pelos livros, foi pela experiência de vida. Isso é um ponto que joga a favor dele quando aborda as pessoas?

“Eu sou um de vocês”. É isso. Veio para São Paulo de ‘pau-de-arara’, como a maioria dos nordestinos, para trabalhar como mão-de-obra barata. Viveu tudo isso. Perdeu um dedo a trabalhar num torno, durante uma madrugada, que nem precisava de ser amputado se tivesse um tratamento médico minimamente razoável para os trabalhadores. Parte do dedo ficou ligada, mas o médico decidiu cortar tudo.

Ele não precisa de ensaiar discursos, seja para um comício em praça pública no Brasil, seja para dirigentes da Federação das Indústrias da Alemanha. Fui com ele lá, a convite das grandes indústrias alemãs. O que ele disse para os grandes industriais foi o mesmo que diz no palanque aqui no Brasil. Ele sabe o que é passar fome, sabe o que é morar numa casa de dois quartos com 27 pessoas, com uma única casa-de-banho, a de um bar, onde os bêbados iam urinar. A família dele tinha de usar a casa-de-banho que era usada pelos alcoólatras, que vomitavam ali. Ele não está a fazer teatro, isso é muito claro na capacidade de sedução que tem das grandes massas. Fala com naturalidade e as pessoas percebem. Citando um exemplo concreto, o Carlos Slim, o milionário mexicano, tem um programa que dá mil bolsas de estudos de um ano para os melhores alunos que saírem do segundo grau do ensino público. No fim do curso de um ano, que é de preparação para a universidade, há uma votação entre os alunos para escolher três convidados para irem falar para eles. No ano em que o Lula foi convidado, foi também o Tony Blair e o Pep Guardiola. Lula levou com ele dois assessores, a quem pediu que preparassem um discurso porque ele achava que era meio solene, era um auditório gigantesco cheio de gente. Os dois assessores passaram a noite no hotel e acordaram-me de madrugada para os ajudar. Terminaram já de dia, não dormiram. Lula chegou ao evento com o discurso de 15 ou 20 páginas. Chegou, pôs o discurso em cima da mesa e não leu uma única linha do que tinha sido escrito. Foi de improviso e é assim que ele é mais autêntico. Um texto escrito tira muita da “impressão digital”, dos traços pessoais dele. O facto de ele falar com essa sinceridade e espontaneidade vem da vida dele, isso ajuda muito na sedução da população brasileira e ajudou muito nos dois governos dele.

Há uma citação no livro que é a seguinte: “Tenho 72 anos do ponto de vista biológico, energia de 30 e tesão de 20”. 

Ele é um tipo inacreditável, brinca muito a dizer que vai viver 130 anos. Acabou de se casar com uma mulher de 50 anos, uma socióloga, está muito feliz com o casamento. Como a maioria dos brasileiros, sobretudo os nordestinos, vangloria-se muito da sua capacidade masculina. Quando ele diz que tem tesão de 20 anos, é uma expressão de duplo sentido: é o tesão pela vida, pelo trabalho, e o tesão que nós conhecemos dos dicionários. É um tipo fascinante. Como jornalista digo sempre que escrever um livro sobre o Lula é um presente para o autor. Não importa o que pense dele, pode ser adversário que, como jornalista, vai-se encantar com a personagem.

Ao longo do livro são mencionadas várias pessoas que têm grande influência na vida de Lula. Quem é a mais importante para a pessoa que é? É a mãe, de quem adotou aquela ideia de dividir o dinheiro por todos de acordo com a necessidade? Será Fidel Castro, que o convenceu a não desistir? O irmão Chico, que o convidou para o Sindicato?

Sem nenhuma dúvida, sem que isso represente qualquer desapreço pelo “frei” Chico e pelo Fidel, com todo o respeito pela sua memória, acho que foi a mãe dele, a Dona Lindu, que ensinou, na prática, o que é caráter. Se olharmos para a família dele, e isso ninguém mencionou nos processos, não há um único dos filhos da Dona Lindu que tenha transgredido as leis da sociedade, não há nenhum deles que tenha sido preso por roubar, brigar ou qualquer outra coisa. É uma família de gente honrada, e isso deve-se à mão de ferro com a qual a família era conduzida pela mãe, que era contra a violência. Separa-se do marido por causa disso, por causa da excessiva violência física do marido sobre os filhos. Nunca deu uma “tapa” nos filhos.

As pessoas perguntavam ao Lula que corrente económica ele adotou para fazer a transformação do Bolsa Família. Ele dizia que a corrente económica não é de economista, mas sim da mãe, a quem os filhos entregavam integralmente o salário e ela juntava e redistribuía, independentemente do que cada tivesse contribuído. Redistribuía de acordo com a necessidade. As pessoas diziam que isso era marxismo puro, mas se se falasse de Marx com ela nem saberia quem era. Os pobres passaram a fazer parte do Orçamento, deixaram de ser um problema para a economia para ser a solução porque passaram a consumir, a desenvolver o Brasil.

Lula da Silva e Fidel Castro em 2003 (AP)

O clima político brasileiro é muito tenso. Os bolsonaristas são acérrimos defensores do atual presidente. Teme que possa acontecer um atentado  contra Lula da Silva?

O risco é evidente que existe. Vimos há poucas semanas, na Argentina, um sujeito chegar com a pistola a centímetros do rosto da vice-presidente Cristina Kirchner. O Lula é um péssimo político para os escoltas porque ele se põe no meio do povo. Por lei, todos os ex-presidentes do Brasil têm direito a uma escolta oficial de oito representantes do Exército. Tem a mesma equipa desde a presidência, são muito próximos. Nesta eleição, por causa deste clima de ódio implantado pelo Bolsonaro e pelos seus seguidores, o Supremo Tribunal aumentou essa escolta para 24 agentes, todos escolhidos por ele. Ainda assim, o risco de ser vítima de um atentado é muito grande. Não falo de uma grande conspiração envolvendo instituições, falo de um maluco como o sujeito que matou o John Lennon, um desequilibrado que queira virar notícia de jornal. Esse tipo de gente está a ser levada por um negócio do próprio presidente da república que é o ódio, a violência. Até há dois anos só as Forças Armadas e as forças policiais tinham acesso a armas de fogo. Um civil, para conseguir comprar e registar uma arma de fogo legalmente, tinha de passar por uma burocracia brutal. Tinha de ir à Polícia Federal preencher documentos e faziam um levantamento da vida até então. Se tivesse algum incidente com a polícia anteriormente não recebia a autorização para comprar a arma. Se a polícia parasse a pessoa na rua com arma, mas sem autorização das Forças Armadas, ela era presa. Atualmente, por iniciativa do Bolsonaro, qualquer pessoa pode comprar três armas de fogo e até 300 munições. Isso aumenta o risco que haja uma tentativa de violência contra o Lula. Ele é desobediente em relação à segurança. Por vezes fiquei preocupado com ele, estava no palco, mas não aguentava e descia para ao pé da plateia, a abraçar as pessoas. O risco existe, mas ele prefere não se preocupar com isso, é um problema da segurança. Mas não permite que o impeçam de se meter junto do povo.

Mesmo com a segurança já tentaram atacá-lo, na caravana que ele fez para o Rio Grande do Sul, uma região onde o Bolsonaro tem muitos votos e vai vencer. O autocarro onde ele seguia foi atingido por um disparo de carabina, que nunca se soube quem fez. Ter de ter cuidado.

A primeira sucessão de Lula não correu bem, Dilma Rousseff acabou por não se impor. Tem medo de que, com uma segunda saída de cena, haja um vazio na esquerda e não exista um sucessor imediato?

É uma das contradições da política. Lembro-me que nos encontros do Lula com o presidente Chávez na Venezuela ele repetia sempre: “Lula, pense na sua sucessão. Todos nós vamos morrer um dia”. Aqui no Brasil, quando o Lula foi eleito pela primeira vez, dizia-se que tinha três sucessores naturais: o Luiz Gushiken, o Zé Dirceu e o António Palocci. Palocci foi preso por corrupção, está a cumprir pena em casa. O Zé Dirceu está na iminência de ser condenado, neste caso por um processo injusto. O Gushiken morreu de cancro. Se olharmos para o horizonte da esquerda e do PT, vamos encontrar quadros qualificados. O PT, ao longo da sua existência, com todos os defeitos que tem, estimulou o surgimento de quadros políticos técnicos de qualidade, pessoas com formação nas melhores universidades do mundo. Mas são pessoas que, do ponto de vista eleitoral, não têm densidade ou têm uma densidade muito localizada numa região do Brasil. O ex-governador da Bahia Jaques Wagner, um sujeito extremamente interessante, que diz o que pensa, seria um grande presidente da república. Mas ele é um personagem baiano, no máximo nordestino. O antigo governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra certamente teria uma votação grande no Sul, mas não sei se convenceria os nordestinos. Vimos um fenómeno semelhante com o Fernando Haddad, um excelente quadro político que foi um bom prefeito de São Paulo. Quando foi candidato a presidente [em 2018], as pessoas não votaram nele, mas sim no candidato do Lula. Muita gente, sobretudo das classes mais populares, chamava-o “Andrade”.

É um problema. Suponho que o Lula terá agora uma preocupação maior com essa questão da sucessão. A esquerda tem quadros qualificados, mesmo alguns à esquerda do PT, mas que não são populares. O Lula junta as duas coisas, é progressista e admirado pela população.

Como definiria o Lula em poucas palavras?

Aqui no Brasil sempre tive a convicção de que o político mais importante que o país teve desde a independência foi Getúlio Vargas. Hoje estou convencido de que é o Lula. Eu dou uma frase: o Lula é o mais importante fenómeno político que eu conheci em 60 anos de jornalismo. É preciso ver à distância para julgar com mais isenção, acho que as minhas netas vão fazer uma avaliação mais correta do que a minha. Mas estou convencido que o Lula vai entrar na História como uma personagem mais importante do que foi Getúlio Vargas.

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