Primeiro-ministro considera uma invenção achar-se que é obrigatório demitir quem tem responsabilidade política em algo grave - como no caso das mortes por alegados atrasos do INEM. Num passado recente, o PSD exigiu a demissão de Marta Temido após a morte de uma grávida e um atual ministro (Pinto Luz) escreveu inclusivamente palavras violentas sobre o sucedido. E Marcelo, que papel terá em tudo isto?
O primeiro-ministro abriu a porta ao apuramento de “responsabilidades políticas” quanto às 11 mortes ocorridas durante a greve do INEM. Ainda assim, afasta a hipótese de que essa responsabilidade possa resultar em demissões no Governo - e quem exige isso está a inventar "um conceito novo, esse conceito não existe", afirmou o primeiro-ministro durante a CNN International Summit. Para os especialistas ouvidos pela CNN Portugal, esta posição de Luís Montenegro revela “falta de coerência” quando se compara com antigas posições tomadas pelos sociais-democratas quando não estavam no Governo.
“Eu acho que Luís Montenegro quereria dizer que a responsabilização política não deve necessariamente levar a demissões. Isso é verdade, embora seja muito difícil de aplicar neste caso em concreto do INEM. De facto, face à questão da greve, e das expectativas políticas que foram criadas pelo próprio primeiro-ministro, é difícil de acreditar que nada podia ter sido feito para minimizar algo que foi muito grave. Este parece ser um caso de escola de responsabilização política”, defende o politólogo Pedro Silveira.
No verão de 2022, os sociais-democratas, então na oposição e liderados por Luís Montenegro, exigiram a demissão da então ministra da Saúde Marta Temido após o caso de uma grávida de 31 semanas que morreu de paragem cardiorrespiratória durante uma transferência de ambulância do Hospital de Santa Maria para o São Francisco Xavier , em Lisboa, porque não existiam vagas. O então líder da banca parlamentar do PSD, Paulo Mota Pinto, questionava o então primeiro-ministro António Costa sobre “o que é que será mais preciso” acontecer para que seja reconhecida a “responsabilidade política da ministra da Saúde” e a “substitua por incapacidade de gestão ou de promover reformas que mantenham o nível do SNS”.
Uma declaração ainda mais dura publicada no site do PSD surgiu do atual ministro do Estado e das Infraestruturas, Miguel Pinto Luz. Nesse comunicado, Pinto Luz criticava o “caos” criado nas urgências de obstetrícia “pela mão de Marta Temido”. “Infelizmente, foi preciso que morresse uma mãe que não teve acesso às urgências no maior hospital do país para que a ministra resolvesse sair”, escreveu.
Outro caso aconteceu em 2023, quando Montenegro pediu a demissão imediata do ministro das Infraestruturas de António Costa, João Galamba, após a audição do ministro na comissão de inquérito à TAP, definindo a situação como sendo “um pântano político”.
Para os especialistas ouvidos pela CNN Portugal, estas posições denotam uma “incoerência” do partido - que aplica “dois pesos e duas medidas”, dependendo da posição política que ocupa. “Há um discurso do PSD na oposição e um discurso no poder. Há, no partido, uma praxis política de pedir demissões e, muitas vezes, por algo com menos consequências do que estas. Parece que Montenegro quer evitar uma crise política a todo o custo. Dá a impressão de que agora estamos à espera da culpa e não da responsabilidade política. Começa a ser tarde. Uma vida já era demais, 11 é um número gigantesco que exigia essa responsabilidade política. Parece que a ministra está presa ao cargo”, diz o politólogo João Pacheco.
"A gravidade deste caso do INEM é superior ao que envolveu Marta Temido"
No início do mês, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) abriu um inquérito aos casos de mortes associadas a alegados atrasos no atendimento devido à greve dos técnicos dos serviços de emergência pré-hospitalar. Para o politólogo Pedro Silveira, a “única desculpa” do primeiro-ministro para não responsabilizar politicamente a ministra é o facto de este inquérito ainda estar a decorrer. No entanto, a investigação “não vai imputar responsabilidade política a ninguém” - apenas vai trazer para cima da mesa mais factos ligados a este caso, afirma.
“O inquérito vai trazer para cima da mesa mais factos, mas o primeiro-ministro pode ter conhecimento desses factos ao falar com a ministra. Montenegro está em condições de fazer um juízo de responsabilização política da ministra e da secretária de Estado. A gravidade deste caso é muito superior ao caso da Marta Temido. O assumir de responsabilidades de Montenegro é muito inócuo. Leva ao quê? A um pedido de desculpa?”, questiona Pedro Silveira.
Para a comentadora da CNN Portugal Anabela Neves, a decisão de demitir um ministro” não depende exclusivamente de uma decisão do chefe do Governo”, defendendo que os titulares do cargo podem entender tomar essa decisão de sua própria vontade, uma vez que entendem que “o cargo exige essa responsabilidade e as consequências”.
O caso mais emblemático na política portuguesa é o do ministro socialista Jorge Coelho, que apresentou a demissão em 2001 depois do colapso da ponte Hintze Ribeiro, em Castelo de Paiva, que resultou na morte de 59 pessoas. Apesar de o ministro do Equipamento Social não ter responsabilidade direta na manutenção da ponte, decidiu assumir a responsabilidade política pelo sucedido considerando que, como membro do Governo, era seu dever responder pela tragédia.
“O argumento 'demitir porquê se fica tudo na mesma?' é um argumento muito fraco. A responsabilidade política tem uma componente simbólica muito importante. A responsabilidade política não serve para resolver problemas, mas serve para novos começos”, defende Pedro Silveira.
Marcelo já pediu a demissão de ministros. E agora quer responsabilidades, "doa a quem doer"
Tudo isto acontece sobre o olhar atento de Marcelo Rebelo de Sousa. O presidente da República não hesitou em exigir responsabilidade políticas a vários ministros, incluindo Constança Urbano de Sousa, ministra da Administração Interna, devido aos incêndios que causaram mais de uma centena de mortos em Portugal em 2017. Após os incêndios, Marcelo proferiu duras palavras num discurso onde pedia “um novo ciclo” e ações concretas para enfrentar desafios de prevenção e resposta a incêndios. E também pediu mais tarde a cabeça de João Galamba, por exemplo.
Quanto ao caso do INEM, o Presidente da República já sublinhou que é necessário apurar os factos acerca da resposta do INEM, levando a que se tirem responsabilidades políticas “doa a quem doer”, expressão que também utilizou acerca do caso Tancos. "Tem de ser apurado porque é que aconteceu, quem é que devia ter feito e não fez, quem é que fez mas fez mal a nível administrativo e a nível político. E, havendo apuramento de factos e havendo que também detetar responsabilidades, que sejam assumidas", afirmou.
Sobre isto, Anabela Neves lembra que “Presidente da República já teve atitudes com um carácter bastante influenciador do desfecho em relação aos governos anteriores de António Costa". "Neste caso, numa primeira fase foi menos claro e isso levou à suspeição de que estava a ser brando por ser um Governo da sua cor política. Mas reagiu sublinhando que têm de ser tiradas as consequências. Penso que Marcelo está atento e à espera para ver o que fará. Aqui não pode haver duas posições.”
Num painel na conferência que assinala o terceiro ano da CNN Portugal, Luís Montenegro foi questionado acerca do que faria enquanto líder da oposição em relação às 11 mortes ligadas à greve dos técnicos do INEM. Foi aí que respondeu que é preciso “apurar responsabilidades” e que era preciso “perceber o que é que tinha acontecido - e que é preciso corrigir” para “eventualmente” responsabilizar “quem fosse responsável” por isso. E vincou que uma coisa é “responsabilizar” e que outra é ser obrigatório demitir alguém. “Eu tenho de assumir a responsabilidade sobre aquilo que fazem os meus ministros, mas assumir responsabilidades não significa demitir-se, esse é um conceito novo, não existe. Não é porque se demite pessoas que a responsabilidade política é assumida e no dia seguinte está tudo bem - então o ministro seguinte vai demitir-se também porque a situação é igual?”