Quem representa médicos, enfermeiros, professores, polícias ou oficiais de justiça não acompanha o otimismo do primeiro-ministro. Todos falam em medidas insuficientes e pedem que se faça mais. Só os guardas prisionais falam em volte-face relativamente ao passado
Luís Montenegro acredita que a situação do país este ano “é muito melhor do que era o ano passado”, na saúde e noutros setores, destacando os acordos alcançados com professores, polícias, oficiais de justiça, guardas prisionais e as negociações com médicos e enfermeiros. Mas os representantes de todos estes setores dizem que ainda há muito a fazer, e alguns deles não veem qualquer mudança em comparação com o ano passado.
O líder do PSD aproveitou a tradicional Festa do Pontal, no Algarve, onde falou pela primeira vez como chefe do Executivo, para mostrar como está a investir na “transformação estratégica e estrutural de Portugal”. “Nestes quatro meses, fizemos um acordo com os professores, fizemos um acordo com os polícias, fizemos um acordo com os oficiais de justiça, com os guardas prisionais. Estamos a construir entendimentos com os médicos e com os enfermeiros”, destacou.
Na saúde, aliás “a situação este ano é muito melhor do que era no ano passado”, assumiu, argumentando com o facto de terem sido operados “mais de 20 mil doentes oncológicos” ao longo destes quatro meses, bem como os esforços para resolver as dificuldades de acesso a serviços de urgência de ginecologia e obstetrícia, nomeadamente com a criação da linha SOS Grávida.
Uma declaração que Nuno Santos Rodrigues, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), contraria, salientando que o setor da saúde é “altamente complexo”, não sendo possível “alterar tudo ao mesmo tempo”. “Seria estranho que, num setor tão complexo, e que precisa de medidas tão estruturais como a saúde, de repente estivesse muito melhor do que no ano passado”, argumenta.
Segundo o médico, é certo que as listas de espera para cirurgia oncológica estão “certamente mais reduzidas, o que é positivo”. “Mas a verdade é que, relativamente a outras áreas o mesmo não acontece”, ressalva, apontando dois exemplos “muito concretos onde a situação do SNS não está melhor”, desde logo “o sistemático e inaudito encerramento de inúmeras urgências de ginecologia e obstetrícia, deixando vastas faixas do território nacional sem qualquer tipo de resposta”.
Além disso, acrescenta, “a grande maioria” dos concursos para recém-especialistas ainda não terminaram. “Alguns abriram esta sexta-feira, a 16 de agosto, mais de quatro meses depois de os médicos terem terminado a especialidade, sendo que o ano passado em junho estavam todos colocados”, sublinha.
Assim, além dos esforços que já têm sido feitos, Nuno Santos Rodrigues defende que ainda “é necessário alterar várias questões”, começando desde logo por “manter e atrair mais médicos para o SNS”. “É necessário que o Governo apresente um projeto para garantir que os médicos permaneçam no SNS. Um projeto que passa não só pela valorização salarial, que é essencial, mas também pela aposta na progressão na carreira médica, que reflita a evolução e diferenciação técnica, bem como um forte apoio à formação”, e que assente numa “maior autonomia dos profissionais e flexibilidade nos horários”, diz, acrescentando que, desta forma, o Governo conseguiria “diminuir os gastos com prestadores de serviços” - “só no primeiro semestre, o Estado gastou mais de 100 milhões de euros nestes serviços”, diz -, bem como o número de horas extraordinárias (uma reivindicação dos médicos, que, segundo o dirigente, só neste primeiro semestre, “fizeram mais de três milhões de horas extraordinárias”).
Por outro lado, a valorização salarial dos médicos e da carreira profissional permitiria “aumentar o acesso nos Cuidados de Saúde Primários”, isto numa altura em que “continuamos com mais de 1,5 milhões de utentes sem médico de família”, bem como o acesso a consultas e cirurgias nos hospitais.
Mas há outras questões a ter em conta e que ainda não têm resposta, diz Nuno Santos Rodrigues, como a necessidade de investimento em infraestruturas e equipamentos, sublinhando que muitas vezes a ausência destes equipamentos “leva a atrasos nos diagnósticos e à deslocação de doentes a outras unidades de saúde sociais e privadas, com o consequente aumento de custos.” É por isso que “os médicos que queiram praticar a medicina mais moderna e mais eficiente têm muitas vezes de abandonar o SNS por ausência de equipamentos adequados”, observa.
Ainda no âmbito da saúde, é necessária uma maior “aposta na prevenção”, assente em programas de prevenção da doença e promoção da saúde. “Só assim o Estado conseguirá evitar custos com doenças e manter-se financeiramente saudável”, argumenta o médico, acrescentando que o orçamento da saúde aloca “menos de 2%” na prevenção”.
Montenegro “está aquém da realidade do setor da saúde”
Mas não são só os médicos que estão descontentes. Também os enfermeiros criticam a ausência de respostas por parte do Governo e dizem mesmo que as declarações do primeiro-ministro mostram que “está um pouco aquém da realidade do setor da saúde”.
Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), entende que “não há, neste momento, nenhuma razão para se afirmar que, no que diz respeito aos enfermeiros, a situação está melhor”. “Pelo contrário, todos os problemas têm vindo a agravar-se”, diz, criticando o facto de o programa de emergência da saúde apresentado pelo Governo se resumir apenas “ao tratamento da doença e de recuperação de listas de espera, nomeadamente as listas de espera oncológicas”. “Em termos de promoção da saúde, de prevenção da doença, não há nada efetivado, nem sequer há um plano sobre a forma como vai ser realizado”, lamenta. O mesmo acontece na valorização da carreira dos profissionais de saúde, diz, salientando que, “para um Governo que assumia como prioritário valorizar os enfermeiros”, as propostas apresentadas no âmbito das negociações com o Ministério da Saúde são “quase inadmissíveis”.
Depois da greve nacional convocada a 2 de agosto, o SEP fez um pré-aviso de greve para os dias 20 e 21 de setembro, depois de não terem alcançado acordo com o Governo quanto à revisão da tabela salarial, alargamento da dedicação plena e antecipação da idade da reforma, medidas que têm vindo a reivindicar e que continuam sem resposta. “Se não se concretizar efetivamente a valorização da grelha salarial dos enfermeiros, o processo de luta irá continuar”, promete Guadalupe Simões.
“Neste momento, continuamos exatamente da mesma forma como estávamos há um ano, há dois ou há três. Ou seja, temos uma grelha salarial que não se adequa às competências e responsabilidades dos enfermeiros e que o Governo se comprometeu em alterar, mas a proposta apresentada não foi no sentido de atingir esse objetivo. São milhares de horas que estão em dívida aos enfermeiros e que continuam por pagar. Os retroativos aos enfermeiros com contrato individual de trabalho, continuam por pagar desde 2018. Continuam a não existir medidas que permitam a retenção de enfermeiros, nomeadamente nos hospitais, razão pela qual eles continuam a pedir exoneração. E, portanto, aquilo que os profissionais sentem no dia-a-dia de trabalho é que as coisas não estão melhores do que no ano passado”, resume.
Na Educação, o país também “não está melhor”
No discurso que marcou a Festa do Pontal, Luís Montenegro assumiu que o Governo está a trabalhar para “valorizar a escola, motivar os professores” e garantir a “qualidade” e “exigência do ensino”. Mas, para Cristina Mota, da Missão Escola Pública, não é bem assim. Nos últimos quatro meses, “existem de facto mudanças” no setor da educação, desde logo “na postura do atual ministro da Educação [Fernando Alexandre] face ao anterior ministro, João Costa”. “O discurso [de Fernando Alexandre] para com os professores é muito mais aberto ao diálogo e parece-nos de facto querer encontrar respostas para os problemas e, acima de tudo, considera que existem problemas e torna-os públicos, e isso é bastante importante”, concretiza.
Apesar desta maior abertura para o diálogo, as propostas que têm vindo a ser anunciadas não convencem os professores. “As medidas que têm sido apresentadas não nos parecem suficientes. Portanto, quando o nosso primeiro-ministro diz que o país está melhor, entendemos que não está melhor no que diz respeito à Educação, até porque ainda não teve lugar qualquer medida em concreto”, diz.
Entre as medidas anunciadas, Cristina Mota destaca a recuperação do tempo de serviço congelado dos professores, uma reivindicação há muito esperada pelo setor, e que se inicia em 1 de setembro de 2024, com 25%, e depois 25% em cada dia 1 de julho dos anos seguintes até 2027. Mas, segundo a professora, a execução deste processo “já está a apresentar alguns constrangimentos, pois o período para as escolas atualizarem os dados foi curto, o que faz com que, quando os professores acedem à plataforma, verifiquem que existem vários problemas”. Assim, Cristina Mota duvida que venha mesmo a ter início no prazo previsto.
Ainda que esta seja “uma medida importante”, nem que seja por ser “uma das reivindicações mais antigas” dos professores, “os problemas da escola pública não se resumem à recuperação do tempo de serviço”, diz a professora, lembrando que esta medida “não vai ter qualquer consequência em milhares de professores”, nomeadamente aqueles que começaram a dar aulas em 2018 e que já não tiveram tempo de serviço congelado, bem como os professores do décimo escalão.
Cristina Mota antecipa mais um ano letivo com o mesmo problema da falta de professores, uma vez que são esperados este ano mais 20 mil alunos no ensino básico e secundário, e o reforço de apenas 1.200 professores, indica, referindo-se aos 200 professores aposentados que regressam à atividade e aos 1.000 que vão adiar a reforma e que contam, para tal, com um incentivo de até 750 euros mensais brutos, no âmbito do plano do Governo para reduzir o número de alunos sem aulas.
O novo estatuto de diretor também é motivo de preocupação para os professores, indica Cristina Mota: “É uma medida que vai criar muita instabilidade nas escolas. Vale lembrar que foi justamente o aumento de poder das direções e a municipalização que, em dezembro de 2022, despontou toda a luta que se arrastou até agora.”
Os professores acreditam que este novo estatuto, cujos detalhes ainda não são conhecidos, “vai criar uma divisão dentro das escolas”, antecipando-se um aumento do poder dos diretores na gestão das escolas.
Oficiais da Justiça falam em acordo "de boa-fé"
Os oficiais de justiça rejeitam a ideia de que bastou chegar a um acordo que prevê a melhoria das condições do Suplemento de Recuperação Processual para se assumir que a situação nos tribunais já está resolvida. Afinal, o acordo alcançado foi "um acordo de boa-fé" da parte dos oficiais de justiça, ressalva António Marçal, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ).
"O que nós fizemos com o Dr. Rita Júdice foi fazer um acordo que permitisse alcançar uma solução para tornar a Justiça mais ágil e mais célere. Falta agora que o Governo concretize efetivamente aquilo que ficou pré-acordado, que é negociar o estatuto que permite dotar os tribunais e os serviços do Ministério Público com os meios necessários", declara António Marçal, referindo-se ao acordo que estabelece, entre outros, o aumento de 10% do Suplemento de Recuperação Processual para 13,5% da retribuição base e cujo pagamento passa agora para os 12 meses, ao contrário dos atuais 11 meses.
Este regime destina-se aos trabalhadores em fase inicial de carreira e para todos aqueles que têm avaliação de desempenho positiva. Mas este aumento não é suficiente, aponta o dirigente: "Se não houver um aumento substancial do valor de ingresso, não vai haver ninguém para concorrer para as comarcas onde fazem falta, nomeadamente em Lisboa e em Faro, onde o valor das rendas e da alimentação consomem 100% do vencimento de ingresso que é dado."
A falta de recursos humanos tem debilitado os serviços dos tribunais a cada dia que passa, lamenta António Marçal. "Até ao final do ano, vão aposentar-se cerca de 500 oficiais de justiça. Quando sair o resultado do concurso de recrutamento pela Autoridade Tributária, vão sair mais algumas dezenas de funcionários judiciais. Ou seja, a cada mês que passa, faltam mais meios humanos nos tribunais", resume.
Ora, "sem recursos humanos, pode haver investimento em computadores, pode haver investimentos em novos programas, mas sem que haja quem opere essa maquinaria, isto não anda", critica.
Problemas dos polícias “não se resolvem com um estalar de dedos”
O primeiro-ministro também mencionou o acordo alcançado com os polícias para um aumento de 300 euros do subsídio de risco e disse que o Governo está a trabalhar para ter “polícias motivados na rua”. Mas os agentes da PSP e da GNR estão longe de estar motivados, segundo Bruno Pereira, presidente do Sindicato Nacional de Oficiais de Polícias. Apesar do acordo alcançado com o Governo quanto ao subsídio de risco, o dirigente assinala que a medida nem sequer foi materializada, estando previsto que o valor do suplemento seja pago com retroativos “ainda durante o presente mês de agosto”.
Mesmo assim, diz, as dificuldades no setor não se resolvem “com um estalar de dedos”. “Há muito mais a fazer”, observa, apontando para a falta de recursos na PSP, numa altura em que vários militares estão a ser “deslocados” para cumprir novas competências na polícia, como é o caso da nova unidade da PSP para controlo das fronteiras, para a qual serão alocados 1.600 polícias. Para o dirigente, os problemas no setor começam logo com este “modelo obsoleto, arcaico e ortodoxo” de organização da estrutura da polícia, que “consome recursos necessários para conseguir assegurar a primeira e segunda linha de reação”.
“Há cada vez mais polícias a sair. Os concursos de recrutamento têm vagas manifestamente insuficientes para completar o quadro e permitir que outros, que já tenham adquirido o tempo para poder sair, também o possam fazer depois de mais de 36 anos de serviço. Portanto, temos aqui problemas sérios e estruturais. Temos de rever carreiras, temos de reorganizar e revisitar os demais suplementos, nomeadamente aqueles que são pagos por inerência de serviço, da prestação efetiva de serviços em turnos e em sistemas de rotação, nomeadamente turno e piquete, que estão por rever desde 2009. Estamos a falar de valores miseráveis e inalteráveis de 150 euros de turno”, resume.
Bruno Pereira insiste numa outra reivindicação dos polícias, que descreve como “uma velha discussão” no setor: o encerramento de esquadras da PSP em Lisboa e no Porto. Apesar da resistência dos governos, nomeadamente do governo anterior, de António Costa, o dirigente assume que esta medida “é uma inevitabilidade”, argumentando que manter uma esquadra aberta “em cada esquina” já “não faz sentido aos dias de hoje”, não só porque, diz, ao contrário do que se possa pensar, “as esquadras não projetam segurança”, mas sim os polícias, mas também pelos recursos que consome sem que se justifique.
Guardas prisionais “satisfeitos” com “volta de 180 graus em relação ao governo PS”
Entre os vários setores destacados por Luís Montenegro como demonstrativos do sucesso deste Governo, os guardas prisionais são os que se assumem mais “satisfeitos” com as medidas que têm sido tomadas para o respetivo setor. Pelo menos, em comparação com o anterior Governo. “É uma volta de 180 graus comparada com o governo do PS, em que ninguém queria falar connosco e, neste momento, já vamos na 9.ª reunião com a senhora ministra da Justiça [Rita Júdice]”, sublinha Frederico Morais, do Sindicato Nacional Do Corpo Da Guarda Prisional (SNCGP).
Frederico Morais lembra que chegou a apelidar a ex-ministra Catarina Sarmento e Castro como “a ministra do Vou Fazer Acontecer”. “E nunca fez acontecer nada”, critica, comparando com as negociações em curso com a tutela. “Neste momento, já assinámos um acordo histórico para o Corpo da Guarda Prisional”, diz, referindo-se ao acordo sobre o aumento do suplemento por serviço em 300 euros.
“Foi o maior aumento dos últimos tempos, mas ainda há muito mais a fazer para valorizar a carreira”, indica, acrescentando que é nesse sentido que está a trabalhar com a tutela, estando previstas novas reuniões em setembro e janeiro sobre a revisão do sistema de avaliação da carreira e o aumento tabela remuneratória única (TRU), respetivamente. “O objetivo é aumentar os níveis de entrada da carreira e, por consequência, todos os outros níveis”, tornando-a mais “atrativa”, explica o dirigente.
Apesar da “urgência” da resposta a estas reivindicações, Frederico Morais assume que “sair sempre de uma reunião com outra já marcada é muito bom” e assinala que “há uma satisfação no Corpo da Guarda Prisional” com as negociações em curso.