Constitucionalista Jorge Reis Novais entende que aqueles que tentam impedir a regulamentação "são movidos por motivações ideológicas, religiosas e políticas". Por sua vez, José Manuel Pureza, signatário da carta que critica o atraso na regulamentação da lei da eutanásia, diz que Montenegro e o Governo de direita utilizam “perversamente” o Tribunal Constitucional para tentar “boicotar” o que a maioria aprovou na Assembleia
Parecia não ter volta atrás. No entanto, volvido um ano da publicação do diploma da eutanásia, que despenaliza a morte medicamente assistida, a lei nunca foi regulamentada. O prazo de regulamentação seria de três meses. Passaram mais de 400 dias — e passaram dois Governos.
Esta quinta-feira um grupo de 250 personalidades, da esquerda à direita e sociedade civil, apresentou uma Carta Aberta, revelada pelo jornal Público — intitulada “Regulamentar a lei da eutanásia é respeitar a democracia” —, em que se lembra que a lei foi aprovada “por cinco vezes” na Assembleia da República, “por larga maioria”, atravessou um “participado e criterioso” processo legislativo, além de ter passado no crivo do Tribunal Constitucional, pelo que não há, defendem, “razão para que a lei não seja seja regulamentada e aplicada”.
Os signatários, apontando baterias ao Governo PSD-CDS, consideram que a não regulamentação e, sobretudo, as declarações de “alguns titulares de cargos políticos” constituem “um inequívoco apelo ao incumprimento da lei”. Por outro lado, defendem que enviar sucessivamente pedidos de fiscalização ao Tribunal Constitucional — uma razão já invocada pelo primeiro-ministro para não decidir imediatamente pela regulamentação — não tem "um efeito suspensivo do dever de regulamentar”.
À CNN, o constitucionalista Jorge Reis Novais entende, na linha dos signatários, que o presente Governo “se socorre do [Tribunal] Constitucional para não fazer nada”. “ Ora, isso não faz nenhum sentido. O argumento não tem sentido. Porque se assim fosse, bastaria enviar as leis indefinidamente ao Constitucional para que se boicotassem todas as leis. Não faz sentido”, garante.
Ainda segundo Reis Novais, “a Constituição impede que pessoas sejam criminalizadas, penalizadas, por auxiliarem uma morte nesta circunstância”. Admitindo que esta posição, pessoal, não seja consensual entre constitucionalistas, e lembrando que “também houve juízes do Tribunal Constitucional que são contra”, a verdade é que “o assunto foi discutido, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se, levantou objeções e as objeções foram todas ultrapassadas”. Assim sendo, e passados “todos os crivos”, estando a lei já aprovada e promulgada, “nada a deve travar”, argumenta.
“Naturalmente, há quem seja contra a lei, contra a despenalização [da morte medicamente assistida], e é evidente que vão fazer de tudo — movidos por motivações ideológicas, religiosas, políticas — para impedir que a lei entre em vigor”, lamenta.
O dirigente bloquista José Manuel Pureza, signatário da Carta Aberta e antigo vice-presidente da Assembleia da República, não hesita em apontar os responsáveis pela não regulamentação: “O culpado é só um: o órgão de soberania que é o Governo, seja o atual, seja o anterior”. Ainda assim, Pureza, e mesmo repartindo culpas, vê-as de maneira diferente. “Anteriormente houve, no mínimo, uma situação de negligência. Negligência sem justificação. Já na presente legislatura somaram-se as declarações, os pronunciamentos por parte de decisores políticos a contestar ativamente a regulamentação. Já não é só negligência; é estratégia. O Governo PSD-CDS simplesmente não quer cumprir a lei”, acusa.
Jorge Reis Novais diz também que o anterior Governo “surpreendente e incompreensivelmente alinhou nesta tentativa de impedir que a lei entrasse em vigor”, o que faz do Partido Socialista “responsável por omissão”. “Quanto ao Governo PSD-CDS, que é contra a lei — ao contrário do que acontece na sociedade, onde há uma maioria clara a favor —, tem arranjado pretextos, nada surpreendentes, para impedir esta regulamentação. Portanto, acabou por ser uma ‘santa aliança’, do anterior Governo e deste atual, que impede que a lei se cumpra”, considera o constitucionalista.
Esperando que não se continue a utilizar “perversamente” o Tribunal Constitucional para “boicotar as leis”, uma vez que tal posição “é lesiva do Estado de direito”, José Manuel Pureza antecipa um cenário além da regulamentação. “Em abstrato, pode sempre haver uma iniciativa legislativa para reverter esta lei. No entanto, depois de tudo o que se passou, da aprovação reiterada por uma maioria — à esquerda e à direita —, não será de antecipar que se retroceda. Seria cínico alguém propor regressar à situação de penalização. Portanto, os agentes políticos vão apostar tudo numa paralisia enquanto conseguirem”, acredita.
Uma crença que é também a de Jorge Reis Novais: “É sempre possível, na Assembleia da República, os partidos que são contra apresentarem iniciativas legislativas nesse sentido, no sentido de alterar a lei.”
E nesta situação de impasse, que papel tem agora o Presidente da República? Nenhum. Embora José Manuel Pureza espera que sirva de exemplo ao Governo. “Esta carta [aberta] não teve Marcelo Rebelo de Sousa como destinatário; o foco era o Governo. O Presidente da República, é sabido, tem uma posição contrária, já se pronunciou e promulgou o diploma. O seu papel está cumprido. Terminou. Vetou quando entendeu vetar, acabou por conformar-se e cumpriu o que são os deveres constitucionais de um Presidente. Portanto, só esperamos [signatários] que também o Governo se conforme.”