Os contratos, as notas e o banco que deu o alerta mas não parou o esquema: como Luís Filipe Vieira tirou 1,4 milhões em dinheiro vivo dos cofres do Benfica

1 mar 2023, 15:31
Luís Filipe Vieira

Acusação do processo Saco Azul do Benfica revela que plano de Vieira conseguiu tirar 2,2 milhões de euros das contas bancárias da Benfica SAD e Benfica Estádio, fazendo regressar ao clube 1,4 milhões em numerário através de um esquema de faturação falsa

"No verão de 2016, o arguido Luís Filipe Vieira, agindo na qualidade de presidente do conselho de administração das sociedades arguidas Benfica, SAD, e Benfica Estádio, S.A., em seu nome e no seu interesse coletivo, decidiu arranjar um plano com o fim de fazer sair dinheiro das contas bancárias da Benfica, SAD, e Benfica Estádio, S.A., sob a forma de pagamentos, e fazê-lo regressar à posse das mesmas, sob a forma de numerário". É assim que o despacho de acusação, a que a TVI/CNN Portugal teve acesso, descreve, em traços gerais, como começa o esquema na origem do processo Saco Azul do Benfica, que remonta a 2017 e investiga suspeitas sobre a utilização de verbas ligadas ao clube para pagamentos a terceiros.

O Ministério Público descreve que Vieira deu conhecimento do seu "plano" ao então diretor financeiro do Benfica Miguel Moreira - cargo que exerceu entre 2009 e 2021 - e este contribuiu para a criação de um esquema de faturação falsa que retirou 2,2 milhões de euros dos fundos das contas bancárias das sociedades Benfica SAD e Benfica Estádio. Terá sido o próprio Moreira a encontrar um cúmplice, o seu amigo José Bernardes, gerente da Questão Flexível, para colocar em marcha o plano de Vieira.

O despacho de acusação, com data de 27 de fevereiro, refere que o antigo presidente do Benfica, que deixou o cargo em 2021, criou uma "realidade económica fictícia/aparente" entre as entidades ligadas ao Benfica e a empresa Questão Flexível, que supostamente prestaria serviços de consultoria e assistência informática, apesar de ter como funcionários e sócios apenas José Bernardes e a sua mulher.

O documento revela ainda que Luís Filipe Vieira, antigo presidente do Benfica, vai responder por três crimes de fraude fiscal qualificada e 19 de falsificação de documento, bem como Domingos Soares de Oliveira, atual administrador da SAD encarnada, e também Miguel Moreira, o antigo diretor financeiro da SAD. Estes crimes são imputados em coautoria com a empresa Questão Flexível e o arguido José Bernardes; a SAD do Benfica, por sua vez, é acusada de dois crimes de fraude fiscal qualificada, enquanto a sociedade Benfica Estádio responderá por um crime de fraude fiscal e falsificação de documento. O procurador Hélder Branco dos Santos acusou ainda a empresa Questão Flexível dos mesmos crimes, sendo que José Bernardes, gerente desta sociedade, responde também por branqueamento de capitais.

O Ministério Público acusa ainda o gerente da CapInvest, José Raposo, como coautor com os arguidos Questão Flexível e José Bernardes de 15 crimes de falsificação de documento, implicando como cúmplice outro gerente, Paulo Silva, dos mesmos 15 crimes.

A indicação das notas a levantar

Na prática, e segundo a acusação, o presidente do clube encarnado terá aproveitado a "transformação digital" que estava a ser operada no universo do Benfica - nomeadamente nos sistemas utilizados para bilhética, compras online e quotas - e que foi implementada pela Mckinseylnternacional e pela Microsoft, legitimamente representada por outras empresas em Portugal - para justificar quatro contratos com a referida Questão Flexível que, entre 2016 e 2017, emitiu 23 faturas pagas pelo Benfica através de 19 transferências bancárias. 

Segundo o despacho de acusação, a Questão Flexível não dispunha de qualquer estrutura de pessoas e bens que pudesse afetar ao exercício de consultoria e assistência informática, que foram prestadas por outras empresas, e não há registo de que esta firma tenha subcontratado estes serviços. "O fim último da conduta das arguidas  Benfica, SAD, e Benfica Estádio, S.A., era a saída por transferência do dinheiro das suas contas bancárias, sob a forma de pagamento de serviços, e o seu retomo em numerário", lê-se na acusação. 

Para este fim, entra depois em ação José Raposo - alegadamente por intermédio de Paulo da Silva, amigo de José Bernardes - que detinha a CapInvest: no circuito de faturação falsa, a CapInvest surge como sociedade emitente de faturas em favor da Questão Flexível, que eram depois levantadas em numerário.  Ou seja, a Questão Flexível emitia uma fatura, que era paga pela Benfica SAD e, por sua vez, o gerente da Questão Flexível, José Bernardes, emitia um cheque em nome de José Raposo, descrito como "fornecedor". Era Raposo quem descontava os cheques em numerário, porque alegadamente tinha atividades em Dakar, no Senegal, fazendo regressar depois o dinheiro vivo ao Benfica. José Bernardes ficava com 11% sobre o valor líquido de cada fatura emitida, José Raposo cobrava uma comisão de 1,5%.

Antes de emitir o cheque, José Bernardes contactava por email a sua gestora de conta no Eurobic e indicava em quantas notas queria que fosse feito o pagamento. Num e-mail de 20 de fevereiro de 2017, por exemplo, perguntava-lhe se "se seria possível na próxima 4. ª feira dia 22/02 logo de manhã, o meu fornecedor da fatura em anexo efetuar um levantamento sobre o cheque Questão Flexível, Lda., no montante indicado na referida fatura. Caso seja possível, agradeço que o montante seja conforme indicado em baixo." Indicava depois, numa tabela, a quantidade e o valor das notas: 675 notas de 200 euros (valor 135.000,00); 10 notas de 100 euros (valor 1.000,00); 10 notas de 50 euros (valor 500,00); 1 nota de 10 euros (valor 10,00); 1 nota de 5 euros (valor 5,00); total 136,515,00.

O banco que deu o alerta mas não parou o esquema

A 3 de agosto de 2017, depois de uma transferência de 191.888,00 euros e outra de 54.120,00 euros, o esquema alegadamente imaginado por Vieira sofre um revés: "Em 03/08/2017 o banco Eurobic exerceu o dever de abstenção e, consequentemente, absteve-se de executar a operação solicitada pelo cliente e comunicou os factos às autoridades (UIF da PJ e DCIAP)", refere a acusação, negando o levantamento em numerário de mais 250 mil euros. 

Bernardes mostrou ao banco uma fatura da CapInvest sobre serviços informáticos prestados em Dakar mas, por suspeita de branqueamento de capitais, o banco alertou a referida Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária. Ainda assim, o esquema seguiu, agora num banco diferente, o Millenium BCP, de onde ainda terão sido levantados em dinheiro vivo mais de 350 mil euros. 

Entre 27 de dezembro de 2016 e 20 de dezembro de 2017, a Benfica SAD e a Benfica Estádio transferiram então para contas da Questão Flexível 2,2 milhões de euros, tendo revertido às mesmas sociedades, em numerário, um montante global de 1,4 milhões, que ficaram à disposição de Vieira e poderão ter sido utilizados para outros fins ilícitos, explica a acusação.

O documento refere ainda que os contratos assinados entre o Grupo Benfica e a Questões Flexíveis lesaram o Estado em IVA e IRC, na medida em que houve operações que foram simuladas e, por isso, os arguidos devem ser condenados solidariamente ao pagamento da quantia de 64.768,00 euros, a que acrescem juros moratórios à taxa legal de 4%, desde 19/12/2018 - data de entrega da última declaração.

“Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira e Miguel Moreira agiram com consciência e vontade, na base dessa decisão comum, de conjugar esforços e intentos, no sentido de angariar um terceiro que estivesse disposto a emitir faturas de favor às sociedades arguidas Benfica, SAD, e Benfica Estádio, S.A., com a finalidade de essas faturas, que sabiam não titular qualquer operação económica, servirem de base à saída, sob a forma de pagamento de serviço, de dinheiro das contas bancárias tituladas pelas duas sociedades, e obter o seu retomo em numerário, de modo a ser depois utilizado de forma não documentada”, conclui a acusação, que acrescenta que Vieira, Soares de Oliveira e Moreira estavam conscientes do desvalor ético-jurídico e da reprovação social da sua conduta mas que, ainda assim, avançaram com o seu plano. 

A SAD do Benfica confirmou entretanto, em comunicado enviado à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, que foi acusada de fraude fiscal e falsificação de documentos no âmbito do processo "Saco Azul". Na mesma nota, a sociedade encarnada refere que, por inerência, foram acusados também os membros do Conselho de Administração no mandato de 2016 a 2020, confirmando por isso a acusação a Domingos Soares de Oliveira, que se mantém em funções como co-CEO.

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