Houve espaço para falar em Dante e para lembrar aos deputados que as mudanças podem ser feitas - afinal só depende deles
As escutas existem, mas não em demasia; a detenção de três pessoas durante 22 dias foi uma crença; o atraso na entrega do relatório de atividades do Ministério Público foi culpa da greve dos funcionários judiciais. Bem ao seu estilo, Lucília Gago defendeu a Procuradoria-Geral da República em todas as decisões polémicas dos últimos anos, durante uma audiência no Parlamento há muito aguardada.
Críticas e problemas, também há, mas por causa da falta de magistrados e de funcionários judiciais, cuja greve agravou situações de um modo que ainda nem é conhecido.
A lei está bem
Em Portugal há 10.553 com os telefones sob escuta por causa de investigações criminais. O número foi avançado pela própria procuradora-geral da República, que defendeu toda a utilização de escutas por parte do Ministério Público.
O problema, e que foi referido pelos deputados, centra-se, sobretudo, nas escutas longas, nomeadamente em casos como o de João Galamba, que foi ouvido durante mais de quatro anos no âmbito da Operação Influencer.
Como noutras questões que não funcionaram tão bem, Lucília Gago garantiu que são situações “excecionais”, falando especificamente sobre as escutas “longas”.
De resto, e traçando um cenário comparativo, a responsável disse mesmo que há menos cinco mil escutas hoje em relação a 2015. “Tendo em conta o RASI, desde 2011, verificamos que o número de interseções telefónicas conheceu o auge em 2015. Desde então tem vindo a decrescer”, afirmou.
“Um eventual excesso no que respeita a interseções telefónicas pode ser suscitado no contexto do próprio excesso”, acrescentou, sublinhando que este meio nunca ultrapassou os 2,5% do total de investigações em curso, referindo mesmo que em 2023 essa percentagem foi de 1,5%.
Por isso mesmo, e em toque de remate à defesa que antes fez, Lucília Gago reiterou que “a lei está bem. O Ministério Público recorre a escutas quando percebe que elas são essenciais”. A alternativa existe, lembrou a procuradora-geral da República, e passa pelo "legislador" - que é como quem diz que passa pelas pessoas que lhe faziam perguntas no Parlamento -, mas essa alternativa pode vir a fazer "soçobrar" algumas investigações.
“Essas situações em que as escutas demoraram tempo longo são absolutamente excecionais e é porque se reconhece a necessidade para as finalidades do inquérito”, vincou.
De resto, e respondendo de forma subentendida a uma questão sobre o segredo de justiça, até por aí Lucília Gago vê necessidade de escutas: “Se se pretende efetivamente perseguir e punir os responsáveis pela violação do segredo de justiça, então temos de aceitar os meios intrusivos de obtenção de prova, como as escutas telefónicas”.
Detidos 22 dias
A detenção de três pessoas durante um período de 22 dias, para depois saírem todos em liberdade, foi um caso que mereceu as mais altas críticas, até porque se excedeu, em muito, o tempo legal para este período.
Mais uma vez, esta foi uma situação "excecional". Lucília Gago chegou mesmo a utilizar a expressão "crença" para se referir à ideia de que a detenção excedeu os limites.
"Foi apontado como sendo imputável ao Ministério Público a permanência excessiva aquando de uma detenção em ato prévio e depois aguardando interrogatório judicial. Os excessos de que estão crentes foram situações excecionais", explicou.
Um esforço "quase dantesco"
A procuradora-geral da República negou ter-se recusado a prestar esclarecimentos ao Parlamento, ao lembrar que foi a quarta vez que foi ouvida, e desvalorizou o atraso na divulgação do relatório de atividade do Ministério Público.
Em audição na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a propósito da apresentação do relatório de 2023 do Ministério Público e na sequência de vários processos mediáticos que agitaram a sociedade, Lucília Gago reiterou a sua “total recetividade” ao convite para estar na Assembleia da República e rejeitou que tivesse pedido o adiamento da audição.
“Esta é a quarta vez desde o início do meu mandato que me encontro a ser ouvida na Assembleia da República, correspondendo a solicitações. Em 2019, no âmbito da comissão parlamentar de inquérito de Tancos; em junho do mesmo ano, no âmbito de uma audição sobre crianças e jovens; e em 2021 numa audição sobre a diretiva dos poderes hierárquicos em processo penal”, frisou.
Lucília Gago desvalorizou também o facto de o relatório do Ministério Público só ter sido publicamente divulgado em agosto, quando o prazo previsto é 31 de maio, ao lembrar atrasos no mandato da sua antecessora, Joana Marques Vidal.
“Em setembro de 2018, antes de iniciar o meu mandato, foram divulgados três relatórios, reportados aos anos 2017, 2015-16 e 2015-14. Relativamente ao meu mandato, os relatórios foram sequenciais e tudo foi rigorosamente cumprido, salvo o momento de apresentação”, observou.
Afirmou que o relatório tem sido todos os anos publicitado e sublinhou que esta é “a primeira vez que um procurador-geral da República é questionado sobre o tema”.
Já sobre as razões do atraso no relatório, a procuradora-geral da República apontou o envio retardado de alguns dados por comarcas do MP e as greves dos funcionários judiciais, apesar de reconhecer a “justeza das reivindicações” dos seus profissionais.
Ao nível da prestação de contas, Lucília Gago invocou também o aumento dos inspetores e da atividade inspetiva durante o seu mandato, ao notar que existe atualmente “uma verificação mais apertada”.
“Os magistrados do Ministério Público fazem um enorme esforço, por vezes dantesco, para levar por diante a sua missão, não obstante a falta de meios”, assegurou.
De resto, esse esforço acontece apesar da diminuição de 12 magistrados, o que "leva à insuficiência" de profissionais. Em paralelo a isso, as greves de funcionários judiciais também prejudicam o funcionamento do sistema.
“A greve de funcionários judiciais tem malefícios que só daqui a algum tempo é que serão medidos. Há uma falta de 400 funcionários judiciais. Se as condições dos funcionários judiciais continuarem, é certo que podemos abrir concursos, que eles acabarão por não permanecer nesse desempenho”, disse.