Toda a gente o faz, mas ninguém o chama pelo nome. O lobby existe em Portugal, mas continua sem lei para o regular

14 nov 2022, 07:00
Aperto de mão (Armin Durgut/AP)

É uma realidade instituída e regulada nos Estados Unidos ou na União Europeia, mas continua por legislar cá, apesar de ter tido três projetos de lei aprovados há quase dois anos

Diogo Piedade tem dificuldade em explicar qual é o seu trabalho. Quando lhe perguntam a profissão diz, para simplificar, que faz lobby em Bruxelas. Mas é muito mais do que isso. Como lá, também em Portugal há quem dedique o seu dia a dia a tentar influenciar meios, organizações ou decisores, numa prática pouco conhecida, e que muitas vezes pode ser confundida com atividades criminais. Afinal, Diogo Piedade é lobista na área da Saúde Pública.

Uma atividade que o português reconhece não ser vista com bons olhos em Portugal. Por vezes nem é tanto a atividade em si, mas antes o termo que a designa: lobby. “Não é tanto a profissão em si, mas a prática. Só que uma coisa engloba a outra. Se existe lobby é porque existem lobistas”, explica.

João Simão, que há mais de 10 anos que estuda o fenómeno do lobby em Portugal, concorda com a visão de Diogo Piedade. O professor universitário na área de Comunicação fez a tese de doutoramento precisamente sobre a questão, e admite à CNN Portugal que “a atividade não é bem entendida pela sociedade”, ainda que “alguns partidos políticos e diferentes profissionais a entendam como importante”.

O especialista lembra que “existem agências e consultoras de comunicação que se assumem claramente como lobistas”, sendo responsáveis por grande parte da atividade que se faz na área em Portugal. Estas empresas trabalham a favor de grandes grupos como EDP, Galp ou outros, que atuam junto do mercado para tentar obter uma imagem favorável e fazerem passar a sua mensagem.

Mas não são apenas os grandes grupos económicos a utilizarem a prática de lobby em Portugal. As ordens profissionais, nomeadamente as dos Advogados e dos Médicos, os sindicatos ou até a DECO também tentam, à sua maneira, influenciar o jogo a seu favor.

Questionado sobre que tipo de setores ou áreas que entende serem mais propensos para exercer lobby, João Simão é taxativo: “na verdade, todos”. Isso porque “quando falamos em lobby falamos tão simplesmente em comunicação pensada de uma forma a influenciar ou persuadir face a um determinado assunto”. E esse assunto pode ser a última tecnologia médica, como defende Diogo Piedade em Bruxelas, ou a necessidade de fazer uma transição para uma determinada fonte de energia, por exemplo.

“Qualquer empresa em qualquer setor de atividade pode efetivamente ter uma estratégia de lobby junto dos decisores políticos (e não só)”, refere o professor universitário.

Tomemos, a título de exemplo, o caso supracitado da energia. Portugal está a fazer uma grande aposta para uma transição energética verde, motivando o fecho de centrais que utilizam combustíveis fósseis e promovendo mesmo a construção de um gasoduto que, no futuro, deverá transportar hidrogénio verde. Vários especialistas apontam que este não é o caminho a seguir, acusando o Governo de seguir uma lógica que aposta numa narrativa de transição verde, ao mesmo tempo que favorece interesses de empresas que trabalham na área.

“Na prática, fazer lobby é acionar mecanismos de defesa e de representação de interesses para influenciar diferentes atores políticos, em prol de decisões que afetam a comunidade no seu todo”, refere.

Em suma, diz João Simão, o entendimento do lobby em Portugal sofre com o facto de “termos uma democracia relativamente recente”, pelo que “ainda não houve a cultura política necessária para se debater a sério a atividade”.

“A expressão continua a ter uma conotação negativa porque não existe uma explicação cabal sobre o que é a atividade, o que leva à conotação negativa que aparece quando se fala em lobby. Quando na realidade o verdadeiro lobby, feito de forma ética e regulamentada, aumenta a transparência e não a opacidade os processos decisórios”, acrescenta.

Susana Coroado lembra que "em Portugal não há uma grande tradição de intermediários", mas aponta que a tentativa de influenciar políticas públicas ou decisões sempre existiu e continua a existir, até porque "os grupos de interesse sempre tiveram um acesso relativamente fácil aos poderes públicos e ao poder político através das redes de conhecimento que têm". E essas redes, explica a investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, vão desde chamadas diretas para os telemóveis dos ministros ou através de amigos, naquilo que a especialista define como um "lobby informal".

Isso acontece, diz a também membro da Associação Cívica Transparência e Integridade, que publicou um relatório sobre a matéria, através de associações comerciais, de produtores ou de outras organizações, que tentam influenciar a ação política através de grupos de interesse. E isso pode significar um lobby por parte do setor da energia, da saúde, ou de qualquer outra área da sociedade portuguesa.

Entre o legal e o ilegal

E é precisamente esta necessidade de regulamentação que todos apontam como urgente para o setor. É que a fronteira entre o lobby, uma atividade legal, e práticas ilícitas, como tráfico de influências ou corrupção, pode ser, por vezes, muito ténue.

Ainda em janeiro de 2021 o parlamento aprovou três projetos de lei diferentes para regulamentar a atividade de lobby em Portugal. Os diplomas de CDS, PS e PAN acabaram por ser vetados pelo Presidente da República, regressando assim à Assembleia da República, de onde ainda não saíram da discussão na especialidade. Pelo meio meteu-se a queda do governo e novas eleições, mas, quase dois anos depois, Portugal continua sem ter a atividade regulamentada.

João Simão não tem dúvidas: “o regime atual é insuficiente, porque a não regulamentação da atividade faz com que continue a ser uma atividade (e uma palavra) malvista e mal-entendida pela sociedade”. O professor universitário vê mesmo uma certa hipocrisia no meio, até porque “a atividade existe em Portugal” e isso é assumido, seja por quem a defende, seja por quem a critica.

Mas a dificuldade de encontrar uma solução, mesmo que três projetos de lei já tenham sido aprovados, também está ao nível político. O especialista refere que, quando investigava para a sua tese de doutoramento identificou “outro traço relevante da atividade em Portugal”: “basta a mudança de um líder partidário para um determinado partido mudar a sua posição sobre o tema”. E o mesmo se aplica às organizações que beneficiam da atividade, ou àquelas que a fazem, como as agências de comunicação. Por exemplo, um novo bastonário da Ordem dos Advogados pode dificultar ou promover o avanço da regulamentação.

Diogo Piedade concorda com João Simão na importância de se criar, o quanto antes, uma legislação, o que lhe parece “óbvio” e essencial na realidade portuguesa, que está distante da realidade europeia: “olhemos para os países da União Europeia e para a própria União Europeia”.

“É a lei que dá as bases para a dita transparência. Não havendo lei a obrigatoriedade de transparência é diferente e isso dá aso a todas as dúvidas que se podem levantar daí. Não havendo transparência, há lugar a dúvida. E havendo lugar a dúvida pode haver a tal suspeição em relação à atividade”, termina, pedindo que, quando existir, a regulamentação seja aplicada de uma forma equilibrada.

Ainda assim, João Simão garante que “é fácil estabelecer fronteiras” entre o lobby e atividades ilegais, mas diz que, para isso, a regulamentação é crucial, uma vez que, sem ela, “pode levar a que essa barreira seja mais difícil de traçar”. “Havendo regras e regulamentação, a atividade de lobby nada tem de ilegal ou de obscuro”, vinca.

“Esta linha que separa só é fina porque não há regulamentação. Obviamente que pode existir lobby sem estar regulamentado, mas é como em tudo na vida, há bons e maus profissionais, e existindo maus profissionais que vão para o campo da ilegalidade, obviamente isso denigre a atividade”, conclui.

Ainda sobre a necessidade de legislação, diz o professor universitário que o essencial é que os diplomas se foquem em três pontos fundamentais: definição clara do que é e não é lobby; definição clara de quem pode fazer lobby e existência de códigos de conduta para a prática da atividade. Tudo porque “sem regulamentação é difícil regular uma prática que existe, mas para as quais não há regras”.

“Não vejo perigos na atividade em si, mas sim na forma como ela é desempenhada sem estar regulamentada, o que significa que não há regras estabelecidas, logo muitas práticas em vez de transparentes são mais ocultas”, refere.

Já Susana Coroado diz à CNN Portugal que essa linha entre o legal e o ilegal depende dos casos, optando por fazer a distinção pela forma como os serviços chegam: "um lobista oferece os seus serviços de representação e tem contactos, que exerce em nome de pessoas que têm mais dificuldades de aceder aos poderes políticos", como pequenas e médias empresas que "não têm o telefone do ministro".

"O que oferecem é a representação e a garantia da defesa dos interesses junto do poder político", explica, traçando uma diferença para o tráfico de influências, em que a pessoa já garante que vai conseguir mesmo exercer a influência pretendida pelo cliente.

Admitindo que esta diferença possa não ser totalmente entendida pela sociedade, a investigadora afirma que é por isso que se torna tão premente estabelecer uma regulação da atividade, sobretudo pela necessidade de transparência, nomeadamente entre os poderes públicos e os interesses organizados, sejam eles defendidos através de intermediários ou não.

"É extremamente importante que as instituições políticas publiquem as reuniões que têm e quem é que os políticos ouviram", vinca, assinalando que "é perfeitamente legítimo que os grupos de interesse apresentem os seus argumentos", que podem ser importantes para o próprio poder político.

E era isso que previa o projeto de lei do PAN, que criou a Entidade para a Transparência, organismo a cargo do Tribunal Constitucional que "tem como atribuição a apreciação e fiscalização da declaração única de rendimentos, património e interesses dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, adiante designada por declaração única", de acordo com a Procuradoria-Geral da República.

Essa lei foi então adiada, e Susana Coroado prevê "não haverá regulação tão depressa nesta legislatura", ainda que seja importante que isso ocorra.

É tudo lobby

Se Diogo Piedade se define simplesmente como um lobista, há muitas outras expressões para fugir a esse rótulo, e que são usadas preferencialmente em Portugal. Profissional de relações públicas, de relações governamentais ou até de política (no sentido de criar políticas) são algumas das expressões que também significam a atividade de lobby.

É tudo isso que Diogo Piedade faz em Bruxelas, cidade que diz estar “muito habituada a este tipo de atividade”, e onde todos se assumem como lobistas sem problemas: “é uma cidade onde toda a gente conhece alguém que faz lobby, acaba por ser uma coisa relativamente simples de explicar às pessoas”.

“Trabalho em política de saúde, mas também sou responsável pela parte governamental, comunicação e relações públicas. Para quem quer que seja, em Portugal, explicar aquilo que faço, é mais fácil dizer que sou lobista, sinto-me perfeitamente à vontade em dizê-lo”, refere o português.

Em Portugal são as agências de comunicação quem tem a maior parte da responsabilidade do lobby feito. Ainda que muitas não o digam preto no branco, Susana Coroado identifica estas organizações como as mais importantes na prática da atividade, distinguindo depois as sociedades de advogados, que diz que "fazem lobby pelos seus clientes", mesmo que não gostem de assumir que o fazem.

"Muitos advogados conhecidos dizem que concordam com a regulação, mas caso haja regulação não podem estar incluídos na prática", sublinha a especialista.

Susana Coroado reconhece que grande parte das pessoas foge à expressão "lobby", mas garante que, mesmo que se dê o nome que se quiser, este tipo de atividade existe em Portugal: "é a defesa de interesses, é a representação de interesses".

Lobby a três dimensões

Mais do que em Portugal ou na Europa, quando falamos em lobby pode existir a tendência de pensarmos nos Estados Unidos. Lá esta atividade é mais “selvagem”, como diz Diogo Piedade, que sublinha a importância de distinguir as práticas tidas no outro lado do Atlântico.

Armas, tabaco ou indústria petrolífera são apenas algumas das indústrias que têm forte peso político, sabendo-se que a Associação Nacional de Armas dos Estados Unidos movimenta todos os anos milhões de euros para campanhas políticas. Em 2016, por exemplo, doaram milhões de euros para a campanha presidencial de Donald Trump.

Diogo Piedade classifica esta atividade como muito mais “agressiva e menos transparente”, nomeadamente de indústrias com “conotação negativa”. O português percebe que o lobby que chega dos Estados Unidos não seja bem-visto, mas traça uma realidade diferente no cenário europeu, onde “existe uma maior obrigatoriedade de transparência”.

“Nos Estados Unidos é muito mais agressivo, é menos transparente”, afirma.

Sobre a União Europeia, e ao contrário do que acontece em Portugal, destaca a regulamentação da atividade, não apenas para os profissionais, mas também para as organizações e a forma como elas interagem com os serviços públicos.

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