O namoro que vai dar casamento por trás do regresso do Casa Pia à Liga

21 mai 2022, 09:18
Casa Pia sobe à Liga

A história da parceria que liga o passado e o presente de um clube centenário

O Casa Pia Atlético Clube nasceu em Lisboa há mais de cem anos, associado a uma instituição fundada em 1780. Tem uma longa e marcante história no desporto e na sociedade portuguesa. Agora festeja a chegada à Liga, que aconteceu depois de juntar esse passado a um presente que passa pela bem atual lógica de uma parceria, no caso dos «Gansos» com um investidor norte-americano. Esse percurso que alicerçou o clube na caminhada até ao primeiro escalão começou há menos de dois anos e foi um namoro «perfeito» que vai dar agora em casamento. A imagem é de Carlos Simões, o diretor que esteve na origem da ligação ao empresário norte-americano Robert Platek.

Vamos recuar até 2019. No final dessa época, o Casa Pia subia à II Liga, a primeira vez nas competições profissionais para o clube fundado em 1920 por antigos alunos casapianos e que tinha como grande marco uma única presença na Liga oitenta anos antes, em 1938/39. Vítor Franco, presidente desde 2006, liderava um clube em progressão. A época foi agitada, com uma batalha na justiça desportiva em torno de Rúben Amorim e da falta de habilitações do agora treinador do Sporting. Apesar de tudo o Casa Pia subiu e enfrentou a época na II Liga disposto a preservar a identidade de clube amador. Mas as exigências eram outras.

A temporada 2019/20 foi difícil, por muitas razões. Quando a pandemia paralisou o futebol, em março de 2020, o Casa Pia tinha 11 pontos somados em 24 jornadas. A Liga de clubes suspendeu o campeonato, dando como definitiva a classificação na altura, o que significava a despromoção do Casa Pia. O clube acabou por ser readmitido, depois da exclusão de V. Setúbal e D. Aves, mas estava numa encruzilhada.

«Alugar a montra»

«Passámos grandes dificuldades, tanto a nível financeiro como desportivo. Terminámos a época com 11 pontos, derivado também da falta de conhecimento e experiência nas Ligas profissionais. Foi com muita dificuldade que começámos e terminámos essa época. Após o término houve a incerteza se ficávamos ou não na II Liga», recorda Carlos Simões, que chegou ao clube precisamente em 2019, para trabalhar na área do marketing e patrocínios. «Estávamos a passar dificuldades e tivemos que alugar a montra a nível desportivo, é a imagem mais adequada.»

«Alugar a montra», explica, passava por encontrar «um investidor que ajudasse o Casa Pia a crescer e a profissionalizar mais a vertente desportiva». Não foi uma decisão fácil, antes de mais para Vítor Franco, que sempre resistiu à ideia de associar os «Gansos» a um investidor. «O próprio presidente era resistente a isso. Exatamente por isso é que montámos este tipo de negócio, diferente de todos os outros, para ver se o namoro corria bem e avaliar», explica Carlos Simões: «Eu fiquei com a pasta. Tive quatro potenciais investidores. Um português, brasileiros, colombianos e americanos. Eu estou ligado ao futebol há 20 anos, fui sondando o mercado e falando com amigos, a explicar que o que tinha era um negócio diferente. Porque nós não queríamos vender. Queríamos, lá está, alugar a montra.»

É aqui que surge o nome de Robert Platek. O empresário norte-americano é parceiro do grupo MSD, uma firma de investimento privado que gere o património de Michael Dell, o fundador da gigante de informática e tecnologia Dell. O Casa Pia foi o seu primeiro investimento no futebol. É uma aposta a título particular da família Platek, que depois disso já avançou para mais dois clubes: o Sønderjysk Elitesport, na Dinamarca, e ainda o Spezia, da Serie A italiana, de que o empresário se tornou proprietário em fevereiro de 2021. Deverá alargar em breve o portfolio com mais dois clubes, noutros países.

«O contacto surgiu através de um grande amigo, que me disse que tinha acesso a um grupo americano que queria investir em Portugal», conta Carlos Simões: «Foi uma sorte. Acertámos na mouche. Muito provavelmente, o melhor investidor que algum clube podia ter, tanto a nível de ambição desportiva como de crescimento do clube. A partir daí tudo começa a ser mais fácil.»

A diferença na «vertente social» do Casa Pia

O diretor do Casa Pia acredita que foram a história e identidade do clube que atraíram para o projeto Robert Platek, cujo trabalho, através da fundação Dell e da sua própria família, tem também uma componente social. «O que lhes chamou a atenção não foi só o futebol, foi a vertente social, unir a vertente social com a desportiva. Quando falei em Casa Pia, eles fizeram a associação: o colégio tem um clube de futebol. Quando lhes disse que era um clube da II Liga ainda ficaram mais espantados. Expliquei que isto é o Casa Pia Atlético Clube, a Casa Pia de Lisboa é outra coisa, mas temos um protocolo assinado e uma relação muito estreita. E eles mandaram uma pessoa a Portugal para avaliar.»

O clube mantém até hoje essa relação formal com a Casa Pia de Lisboa, que passa antes de mais, explica Carlos Simões, pelo acesso dos alunos da instituição à prática de desporto. «Temos à volta de 400 a 500 atletas em várias modalidades e têm acesso direto. Sendo alunos da Casa Pia, podem usá-lo a título gratuito.» Passa também, diz, por parcerias com patrocinadores que proporcionam, por exemplo, estágios a jovens casapianos quando terminam a formação. «Quando negociámos patrocínios, mais do que o dinheiro, que não é muito importante neste momento, a questão foi o que podíamos fazer para ajudar as crianças da Casa Pia de Lisboa», diz: «Isto é mesmo um clube diferente. Não representamos um bairro, uma cidade. Representamos uma instituição que tem cerca de 250 anos. Não é simplesmente um clube de futebol.»

De volta à parceria com Robert Platek. Ela avançou logo na preparação da temporada 2020/21, com a designação de um representante por parte do investidor, Tiago Lopes, a contratação do treinador Filipe Martins, que conduziu a equipa ao longo desta caminhada, e a constituição do plantel, em contrarrelógio depois de toda a indefinição dos meses anteriores. A constituição da SDUQ, condição para as competições profissionais, foi aprovada em dezembro de 2020 em assembleia geral do clube.

 

«Preparados, ao fim de dois anos, para casar»

O acordo a que se chegou inicialmente com o investidor foi diferente do habitual, porque o Casa Pia não era uma SAD, portanto não houve numa primeira fase uma aquisição formal de capital. «Montámos este tipo de negócio diferente de todos os outros, acho que foi o primeiro em Portugal. Nós neste momento somos SDUQ, o que quer dizer que o futebol profissional é 100 por cento do clube», conta Carlos Simões. «Passámos muitas noites em claro, eu e o presidente, a tentar montar um negócio que fosse vantajoso para ambas as partes. Foi um casamento perfeito. Quando fui buscar o investidor disse: ‘Vamos namorar três anos e depois logo se vê se casamos ou não’. Neste momento estamos preparados, ao fim de dois anos, para casar.»

«Casar» é constituir uma SAD. «É óbvio que os investidores neste momento têm todo o direito de reclamar o sucesso. Chegou o momento», afirma o dirigente, acreditando que esse passo não vai alterar o equilíbrio que se verificou até aqui: «Neste momento só existe um Casa Pia. Existe um presidente do Casa Pia e um diretor executivo do futebol, o Tiago Lopes, que partilham o mesmo gabinete. Com a SAD será diferente obviamente ao nível de distribuição de quotas, mas em termos de execução vai ser igual.»

Têm sido muitos os exemplos em Portugal de casos em que as parcerias entre clubes e investidores não correram bem. Carlos Simões acredita que com o Casa Pia não há esse risco. «O Casa Pia é um clube rico. Reergueu-se das cinzas com este presidente, que tem 15 anos de mandato. Tem bastantes rendimentos para poder acompanhar o investidor, até no crescimento. A SAD há-de ter uma percentagem e o investidor outra. A diferença posso garantir que não será muita. O investidor quando veio não veio com esse pensamento. Veio sempre com o pensamento positivo para fazer crescer e elevar o nome do Casa Pia, não só a nível nacional.»

«O primeiro clube deste grupo chama-se Casa Pia Atlético Clube. Neste momento têm mais dois e com a probabilidade em muito curto espaço de tempo de terem mais dois. Isto no fundo é a casa-mãe, foi aqui que começou. O investidor não veio para cá para vender no imediato», insiste: «Não sei se daqui a 10, ou 15, ou 20 anos, pensa: ‘Já tenho isto e isto, vou fazer um bolo e vou vender’. Isso não podemos saber. Sei que eles estão cá para durar. Não precisam de dinheiro para viver.»

Robert Platek ainda não visitou o clube. «No meio da pandemia, e como entretanto adquiriu o Spezia, não teve oportunidade. Mas está para breve», diz Carlos Simões. Não assistiu à festa da subida da equipa, que chegou um ano mais cedo do que o previsto. Depois de ter terminado a II Liga em nono lugar na temporada 2020/21, este ano o Casa Pia andou sempre lá por cima e festejou mesmo na última jornada, com a vitória por 5-1 em casa do Leixões. Agora, em Pina Manique ainda se está em «modo de festa». Depois de uma temporada com um orçamento ligeiramente abaixo dos dois milhões de euros, as decisões relativas a 2022/23 serão tomadas nos próximos dias.

Das obras em Pina Manique ao envolvimento dos casapianos

Mas já se trabalha nisso. Desde logo nas obras do estádio. Antes de conversar com o Maisfutebol, Carlos Simões teve uma reunião técnica com o arquiteto para planear os trabalhos de recuperação do Estádio de Pina Manique de modo a poder receber jogos da Liga. «Não quero que o tempo seja nosso adversário. Vamos ter de sair daqui, mas queríamos regressar o mais breve possível», diz. O Casa Pia vai começar a época no Jamor e a meta é voltar a Pina Manique no final do ano. «Penso que quando acabar o Mundial vamos regressar a casa», diz.

A estratégia do Casa Pia passa também por crescer a nível de sócios. Para isso, vai procurar tirar partido da história e «pescar» no extenso universo de antigos casapianos. «Na época passada tínhamos cerca de 300 ou 400 sócios. Neste momento são cerca de mil. Temos o objetivo de triplicar até ao fim da época. Estamos a fazer algo diferente para os casapianos, que estão a começar a aderir», afirma Carlos Simões. «Queremos captar os antigos alunos. Nós recebemos mensagens de parabéns da Austrália, Luxemburgo, da Bélgica, dos EUA… A nível mundial, estamos a falar em cerca de 300 mil ex-alunos», nota, sorrindo: «Podíamos quase dizer que éramos a quarta potência nacional.»

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