Não apenas o discurso de Lídia Jorge, mas a forma como foi politicamente instrumentalizado, mostram que a Europa, e não apenas Portugal, enfrenta um desafio identitário tremendo. Não é de agora, mas agora é uma urgência.
Podemos dizer que a ideia de nação e de identidade nacional é um processo construído, fruto de uma seleção de memórias sociais. Historiadores da memória, como Halbwachs ou Ranger e Hobsbawn, mostram isso mesmo, ao afirmarem a história como uma seleção política por parte de um grupo social tendo por base a memória. Nesse sentido, a memória coletiva é um ato intencional – há um querer coletivo de escolher o que lembrar e o que esquecer –, uma bussola determinada sobre quem escolhemos ser.
A memória é, portanto, um ativo para a ideia de «nação», um artifício ideológico que se manuseia quando os Estado europeus fixam as suas fronteiras. Para criar união é preciso criar um sentimento de pertença e, para tal, é preciso um herói fundador, um mito fundacional e marcadores temporais que estabelecem a memória.
É assim que nasce o «nacionalismo cultural», a necessidade de uma memória comum e uma sensação de falência perante fluxos migratórios do século XIX, alimentando a nostalgia de tempos gloriosos.
A história europeia desde o século XIX mostra-nos que os nacionalismos tanto construíram pertença como exclusão, estando na base de ideais de hostilidade étnica, religiosa, racial e cultural. Para que haja um «nós» é preciso que haja um «eles». Esse sentimento tão primário quanto poderoso esteve ligado ao modo como se procedeu ao colonialismo, à forma como a desconfiança vizinha conduziu à I Guerra Mundial, e ao facto de que a ideologia da pureza identitária, profundamente enraizada em mitos nacionalistas e raciais, esteve na base das políticas de exclusão e extermínio do regime nazi, culminando no Holocausto.
É neste caldeirão que se encontra o discurso de Lídia Jorge e a forma como foi instrumentalizado – nós somos fruto de encontros que contradizem a memória coletiva e o orgulho nacional; temos uma memória histórica profundamente inventada desde a monarquia e explorada ad nauseam pelo Estado Novo, e uma autoestima que se baseia num colonialismo benemérito.
Ora, o facto de que o discurso de Lídia Jorge levou à rejeição por parte de várias figuras da direita radical e à desinformação, com a produção de imagens falsas sobre uma passagem que não existiu no seu discurso – em que supostamente somos convidados a aceitar a nossa extinção –, é uma lição sobre a urgência de repensar o que é a «nação» e a identidade nacional, e consequentemente o que é a identidade europeia.
Estamos, neste momento, presos entre duas narrativas, uma com mais força do que a outra – a nacionalista que ganhou tração com a direita radical populista e iliberal, assente na premissa da identidade biológica, cultural e religiosa da Europa, que alimenta o pânico moral face à imigração; e uma multiculturalista e progressista que parte da premissa de que as comunidades nacionais têm pouco ou nenhum direito à sua identidade coletiva.
Continuarmos o caminho de uma Europa de inclusão, de direitos humanos e de pluralidade é incompatível com qualquer destas visões. É verdade que a multiculturalista é praticamente “chão que já deu uva”, e que é o iliberalismo nativista que hoje toma a dianteira para acabar com o projeto europeu. Mas ambas continuam a fazer estragos.
Fica, no entanto, a pergunta: na era dos iliberalismos há tempo para pensar em nacionalismos inclusivos?