25 de abril: Os alvos preferidos da censura e uma lição que 48 anos depois ainda não foi aprendida: “As democracias não geram mundos higiénicos.”

25 abr 2022, 07:00
Os censores eram, no fundo, funcionários com uma “mentalidade burocrática”, descreve Pacheco Pereira. Foto: Teresa Abecasis

Para além do discurso político, toda e qualquer forma de comunicação foi controlada durante 48 anos pela censura. O objetivo era impedir qualquer perturbação na vida pública. Estas “perturbações” fazem parte da democracia, mas ainda há quem não queira (ou não possa) confrontar os seus medos. E são cada vez mais.

O Estado Novo tinha poucos anos quando o edifício do Diário de Notícias foi inaugurado, em 1940. No átrio principal, Almada Negreiros pintou um icónico painel de 54 metros de comprimento com um mapa do mundo onde figuras mitológicas se misturam com ícones regionais – como os gémeos do Zodíaco ou a Torre Eiffel de Paris. 

Mais de 60 anos depois, o regime mudou, o país acaba de contar mais dias em democracia do que aqueles que viveu em ditadura, há 48 anos. O Diário de Notícias já não vive na avenida central de Lisboa e o seu amplo átrio espera que uma grande marca de roupa se interesse por ele. Mas nem tudo foi alterado: os frescos de Almada Negreiros mantêm-se.

É sob o olhar do Grande Planisfério de Almada Negreiros – e também das Quatro Alegorias a Portugal e à Imprensa – que por estes dias está instalada a exposição “Proibido por Inconveniente”, onde se podem ver cerca de duas centenas de despachos da censura que durante o período da ditadura manteve um controlo apertado sobre as mais variadas publicações - desde a mais óbvia, à imprensa e à literatura política, à mais subtil, que visava toda as outras formas de comunicação – desde a ficção à música, passando pelo cinema e pelo teatro. 

A documentação é emprestada pelo Arquivo Ephemera, de José Pacheco Pereira. Em duas semanas, a exposição foi vista por mais de 4.800 pessoas e pode ser visitada até esta quarta-feira. 

O historiador percorre pela enésima vez as mesas da exposição e repete a história de um período de que se lembra bem – ele próprio foi alvo da censura quando sugeriu trocar “todo o sol de António Nobre”, um poeta nacionalista, “por uma só ode de Ricardo Reis”, o heterónimo pagão de Fernando Pessoa. Cerca de 30 pessoas seguem, atentas, os seus passos. Algumas, também têm memória do período da ditadura, outras, só a conhecem do que ouviram contar. 

Pacheco Pereira divide os alvos da censura em três grandes grupos. 

O primeiro eram as mulheres, fossem elas as protagonistas da literatura ou as próprias escritoras. As mulheres deviam ser umas senhoras e, por isso, estavam sempre sob a lente de um “critério moral”. 

Foto: Teresa Abecasis

"A inconveniência do livro é mais grave por ser mais desenvolvido, mais obsceno, mais pornográfico, mais escatológico na linguagem, e, fundamentalmente panegeirístico da luxúria, alheia a precupações de moral e de sexos, numa promiscuidade infrene em que entram homossexuais masculinos e femininos." Despacho de censura sobre o livro "Pigalle", escrito por Nita Clímaco. Proibido em 19/08/1965

Foto: Teresa Abecasis

"Com pretensão a obra realista, relata casos amorais e até amores incestuosos, com descrição de imoralidades doentias, como poderá verificar-se pela leitura das passagens constantes das páginas: 45-47-71 a 73-83-84-92-99-100-107-109-110-118-139-146-162-178-180-187-202-215-216-217-221." Despacho de censura sobre o livro Famintos, de Carmen de Figueiredo. Proibido em 13/02/1952

O segundo alvo preferencial dos censores era “tudo o que fosse contra a igreja”, de que é exemplo o escritor Tomás da Fonseca. 

Foto: Teresa Abecasis

"Mas além desta má intenção de que a obra enforma, julgo dever apontar como demolidor e iconoclasta, o conto «Santo Amaro, o Imprevidente» (pág. 199 a 220) e imorais e depravados os contos «Tio Pedro, o Coitadinho» (pág. 71 a 106) e «Norberto, o bom ladrão» (pág. 223 a 269) notando especialmente neste último conto uma descabelada troça e achincalhamento dos princípios católicos, a página 246." Despacho sobre o livro Agiológio Rústico , de Tomás da Fonseca. Proibido em 17/03/1958

O último grupo é protagonizado por um só escritor, José Vilhena, “o protótipo de tudo o que a censura detestava”, descreve o historiador.  Um dos seus livros é Julieta das Minhocas, conta, sublinhando “a nobreza do título”. Os mais velhos do grupo que segue Pacheco Pereira reconhecem o autor. 

José Vilhena foi um dos alvos preferidos da censura porque foi também um dos que mais a desafiou. Desde 1956 e até 1974, o ano da queda do fim da ditadura, publicou 77 livros. Nos anos seguintes, escreveu apenas três livros, acabando por se dedicar à publicação de uma revista satírica que se tornou também conhecida, a Gaiola aberta. 

Os livros de Vilhena juntavam “conteúdo político e social, conteúdo antirreligioso e conteúdo erótico”, descreve Pacheco Pereira em entrevista à CNN Portugal.  

Outros títulos dos seus livros são, por exemplo, Dói-me Aqui, Love Story, A Vaca Borralheira ou A Olho Nu. As capas dos livros eram desenhos do autor com mulheres jovens com pouca ou nenhuma roupa, onde as curvas dos seus corpos eram bem acentuadas. Os homens retratados por Vilhena, por outro lado, tinham quase sempre um ar velho, mesquinho, e um olhar guloso perante as mulheres. Por vezes, a ligação deles às autoridades e à elite é assumida, vestem a farda da polícia, os casacos pretos compridos e os chapéus associados aos agentes da PIDE, ou os fatos de gala da alta burguesia. 

“Tudo o que ele escrevia mostrava uma completa falta de respeito para com as autoridades e era isso que evidentemente punha a censura a subir pelas paredes acima”. Se houve autores que se esforçavam por disfarçar o conteúdo dos seus livros, Vilhena não foi um deles. Ele provocava deliberadamente e o seu estilo deu-lhe fama não só entre os censores, mas também criou um público fiel que procurava e esgotava os seus livros no mercado alternativo. “Aqui na exposição, aparece muita gente a dizer que ainda tem livros do Vilhena”, conta Pacheco Pereira. 

Capa do livro "A Olho Nu", de 1958. Imagem cedida por Luís Vilhena
Manual de Etiqueta, publicado em 1959. Imagem cedida por Luís Vilhena
Tenha Maneiras, publicado em 1966.  Imagem cedida por Luís Vilhena

Para além do tom provocador, os livros de José Vilhena tinham implícita uma crítica à sociedade. No interior de Julieta das Minhocas, veem-se “fotografias dos bairros da lata”. As mulheres retratadas pelo autor, em muitos casos prostituas, “tinham origem socialmente pobre e era a pobreza e a miséria e a exclusão que muitas vezes as empurrava para a prostituição em particular”. Os homens, pelo contrário, “os poderosos”, eram “bispos, padres, senhorios ricos de lisboa, capitalistas, governantes e os censores”, todo eles “ridicularizados pela presença perturbadora de figuras femininas. 

Há um desenho de José Vilhena que retrata um censor a olhar através de um óculo para uma televisão onde está a passar um espetáculo de coristas a dançar com pouca roupa. "A gente percebe que o que o Vilhena quer dizer é que há aqui esta duplicidade dos censores, que no fundo se excitavam com o que viam, mas não gostavam e iam proibir”, descreve Pacheco Pereira. 

"O Censor" visto por José Vilhena. Foto: Teresa Abecasis

Fintar os censores mas não a censura 

José Vilhena esteve preso três vezes e foi muitas mais vezes chamado à PIDE “para lhe darem uma lição de moral”, conta o sobrinho, Luís Vilhena, à CNN Portugal. José, conta Luís, era uma “pessoa reservada”, o que provocava sempre alguma “desilusão” entre os amigos do sobrinho que ficavam sempre muito curiosos por conhecer o famoso José Vilhena. 

Nas suas conversas com as autoridades, o polivalente escritor, ilustrador, paginador, distribuidor - José Vilhena tratava de quase tudo nas suas publicações, menos a impressão – conseguia encontrar algum humor. “Um dos escritórios era ali no Saldanha, e lá estava o indivíduo da PIDE a tentar convencê-lo de que não havia prostituição em Portugal. Ele sabia que do outro lado da rua havia um bordel e divertia-se com isso. Achava graça.” 

Era uma pessoa que estava “bem com a vida”. Levava com humor a relação com a censura. Os seus livros, apesar de proibidos, eram populares e o autor conseguiu “viver bem” apenas das suas publicações, que eram vendidas clandestinamente nas tabacarias e na livraria Barata, em Lisboa. A certa altura, descobriu até uma forma de fintar os censores e evitar a chatice da prisão: “quando havia uma publicação, saía de casa uma semana ou quinze dias, ia para casa de amigos ou para um hotel.” Quando voltava, já a sua detenção não era prioridade das autoridades. 

José Vilhena e o sobrinho, Luís, em 1956, ano em que inicia a publicação dos seus livros. Fotografia do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR

Vilhena era bem conhecido pelos censores. A sua prolífica publicação – chegou a lançar nove livros em 1971 – obrigava-os a ler com frequência os seus textos e, inevitavelmente, a proibi-los. As narrativas por vezes repetiam-se, com algumas variações. Os livros eram vendidos durante um ou dois meses até serem recolhidos. Mais tarde, podiam voltar a circular. 

Num despacho de 31 de Dezembro 1965 sobre o Humor Parisiense, o “leitor” Joaquim Palhares revela a familiaridade com o autor. “O incorrigível e manhoso «Vilhena» não quis deixar acabar este ano de 1965 a público mais uma das suas publicações deletérias que por artes ocultas circulam sempre a despeito das proibições que sobre elas incidem”. 

Seis meses depois, o mesmo “leitor” escreve sobre O Beijo: “Publicação de uma audácia inconcebível, mesmo para quem já conhece todas as obras anteriores do autor, que chega a um ponto tal que nela se pode considerar que a pornografia é o mal menor.” Joaquim Palhares descreve um “cinismo sádico e subversivo de toda a moral social, seja ela cristã ou agnóstica” e uma “investida de insinuações de ordem política contra as instituições e os princípios em que se fundamenta o Governo e a Nação”.

Imagem do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR

"Posto hoje à venda, segundo creio, não encontro neste livro uma única página que possa ser autorizável." Despacho de censura sobre o livro Humor Parisiense, de José Vilhena. Proibido em 31/12/1965

Imagem do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR

"Portanto, a "proibição" é o mínimo que posso propôr acerca dete livro, pois que o autor que também é editor, as firmas distribuidoras e impressora mereciam todos ser punidos com as mais severas disposições cominadas na lei da Imprensa." Despacho de censura sobre o livro O beijo, de José Vilhena. Proibido em 04/06/1966

Imagem do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR

"A linguagem é a mais baixa possível e as personagens não chegam a ser imorais: são positivamente amorais." Despacho de censura sobre o livro Julieta das Minhocas, de José Vilhena. Proibido em 29/09/1970

Depois do 25 de Abril, José Vilhena dedicou-se à publicação de revistas satíricas, sendo a mais conhecida A Gaiola aberta, “um quinzenário de mau humor e maldizer", como estava escrito na capa. Mas não deixou de ser polémico nem popular. “A Gaiola aberta é um fenómeno editorial. Toda a gente lia aquilo. Desde os deputados da Assembleia da República até ao contínuo. Não tinha só a crítica da época, como tinha aquele picante”, conta Luís Vilhena. 

Um “picante” que chegou a valer-lhe alguns processos em tribunal. Vilhena, sempre no papel de escritor-ilustrador-fotógrafo-paginador-editor, colocava os rostos de figuras públicas em corpos nus. Fazia umas “fotomontagens desagradáveis”, algumas até “pouco recomendáveis”, descreve o sobrinho, que não deixa de descrever a publicação como “libertadora”. José era herdeiro de uma tradição humorística presente em publicações como o francês Le Canard enchaîné, ou a britânico Punch. “Ele ocupou um espaço que não existia em Portugal e que deixou de existir depois.” 

Luís e José Vilhena nasceram exatamente no mesmo dia, com 36 anos de diferença. O sobrinho foi próximo do tio até à morte dele, com 88 anos, em outubro de 2015. Herdou os desenhos originais do autor e assumiu como missão divulgar a obra de José, que apesar de ter sido popular, considera que continua a ser um “autor maldito” que suscita algumas reservas entre os mais conservadores. "A obra dele está muito atual relativamente às controvérsias que hoje existem à volta do humor, do que se pode dizer ou não, se há limites ou não. O limite é diferente para cada uma das pessoas."

Depois destes anos todos, José Vilhena continua a pregar partidas e a surpreender novas gerações. “Alguns amigos meus, quando os pais ou os tios morrem e eles têm que desmontar a casa, descobrem sempre uma coleção qualquer da Gaiola aberta escondida. Estão lá atrás de outros livros, não estão à frente.”

Capa do primeiro número da revista Gaiola Aberta, publicado no dia 15 de maio de 1974. Imagem do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR
Página da revista Gaiola Aberta de 15 de dezembro de 1974. Imagem do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR
Capa da revista Gaiola Aberta de 1 de Julho de 1977. Imagem do arquivo pessoal de Luís Vilhena/DR

O último dia de trabalho dos censores 

No dia 25 de Abril de 1974, muitos censores, não percebendo a dimensão da revolução em curso, foram trabalhar e chegaram a exigir as provas aos jornais. Eram, no fundo, funcionários com uma “mentalidade burocrática”, descreve Pacheco Pereira. “De um modo geral não eram pessoas cultas, eram normalmente coronéis reformados, alguns funcionários, que eram leitores. Eram pessoas que não tinham uma cultura especial, a não ser esta cultura do respeito e do respeitinho, que essa sim é que funcionava.” 

Foto: Teresa Abecasis

"Há cenas de amor e de relações carnais; mas são descritas com tanta perfeição que lhe tiram a intenção pornográfica, que, aliás, pode afirmar-se, torna este livro susceptível de ser lido por toda a gente incluindo senhoras. Não vejo pois incoveniente na divulgação deste, pelo que é de autorizar." Despacho de censura sobre o livro Novos Contos da Montanha, de Miguel Torga. Autorizado a circular em 26/03/1951

Foto: Teresa Abecasis

"Esta obrinha de um dos próceres do surrealismo português parece-me absolutamente inaceitável, isto é: francamente censurável (digna da mais severa censura) não só pela irreverência em matérias religiosas ou de fé, como pela chocante intromissão satírico-política no tema filosófico-moral que o A. se propôs." Despacho sobre o livro Um auto para Jerusalem, de Mário Cesariny. Proibido em 15/03/1965

Alguns militares que ajudaram na revolução tinham sido também funcionários da censura “para ganhar alguns tostões” extra. O controlo de todo o discurso publicado nas suas mais diversas formas começou pouco depois do golpe militar de 28 de maio de 1926 e durou até ao dia 24 de abril de 1974. Foram 48 anos de supressão da liberdade de expressão de uma forma tão abrangente que se tornou num caso único na Europa. É essa singularidade que se pretende realçar na exposição “Proibido por Inconveniente”, na galeria do antigo edifício do Diário de Notícias, em Lisboa. 

“A palavra inconveniente é aquela que melhor caracteriza o conjunto da censura”, explica o historiador que é também comissário da mostra. "É inconveniente que se diga que uma rapariga fugiu de casa dos pais, é inconveniente que se diga que houve um acidente em que morreram dezenas de pessoas num comboio. É inconveniente que se diga que o filho do senhor ministro arranjaram lugares exatamente por cunhas. Tudo isso era inconveniente porque tudo isso mostrava como é que funcionava o tecido da sociedade num regime de ditadura. E embora isso também exista em democracia, a verdade é que a ditadura protegia este tipo de práticas.” 

E hoje em dia, 48 anos depois do fim do Estado Novo, estamos livres da censura? De uma “discricionária” e “do Estado” com a dimensão da que funcionou durante os anos da ditadura, sim, começa por sublinhar Pacheco Pereira, mas há outros “impulsos censórios” tanto à esquerda como à direita de que são exemplo alguns movimentos nos Estados Unidos para retirar alguns livros das bibliotecas escolares por falarem de racismo ou de questões de identidade de género, por exemplo, e também uma “ditadura do politicamente coreto”, que proíbe o uso de certas palavras. 

Estes impulsos estão a crescer e não é só lá fora, em Portugal também. E isso é algo que nos deve preocupar, alerta Pacheco Pereira, que dá o exemplo de algumas universidades onde não vê liberdade para escrever teses contrárias às dos professores que coordenam as áreas ou dos médicos que não desafiam os seus diretores com receio de sofrerem represálias. “É uma sociedade pequena. Todos nós somos primos uns dos outros, os bens são escassos e a democracia e a liberdade são difíceis de ter”. 

São lições que ainda precisam de ser aprendidas. A liberdade precisa de ser aprendida, conquistada e defendida. “As democracias não geram mundos higiénicos. As democracias convivem e têm de conviver com aquilo de que eu não gosto e que acho repelente, desde que não seja ilegal. E temos medo de discutir essas coisas. O prolongamento desta exposição sobre a censura é exatamente uma discussão sobre os mecanismos de censura atual, que são muito diferentes, mas que estão a crescer na sociedade.” 

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