A liberdade não é permitir tudo: "É obrigatório proibir. Lutar pela Constituição é proibir o que é contra a Constituição"

24 out, 10:28
Dulce Maria Cardoso

O primeiro debate do ciclo "Uma ideia para a harmonia" foi ensombrado pela ameaça que a extrema-direita representa para a nossa democracia. A escritora Dulce Maria Cardoso e a historiadora Irene Flunser Pimentel defendem que é importante recuperar uma verdadeira cidadania, baseada mais na ação do que em palavras vazias

Quando vai às escolas falar com os jovens, a escritora Dulce Maria Cardoso costuma pedir-lhes desculpa. “Acho que, nós, mais velhos, temos obrigação de dizer: desculpem-nos por vos estarmos a deixar este mundo como está.” Nascida em 1964, a escritora cresceu ainda em ditadura e veio de Angola para Portugal após o 25 de Abril de 1974. “Os meus pais foram daquela geração disposta a sacrificar-se, a dar tudo para que os seus filhos pudessem estudar, para terem uma vida muito melhor”, conta. A geração de Dulce Maria Cardoso chegou à juventude sem guerra nem fome, com saúde pública, a oportunidade de ir para a universidade e uma democracia que prometia um futuro risonho a todos. No entanto, 50 anos depois da Revolução, a sua desilusão é visível. “Portanto, eu sou da primeira geração que estraga isto tudo.”

“A linguagem é sobrevalorizada e nós, humanos, temos esta ilusão de que, por dizermos as palavras, não é necessária ação. Achamos que o ato de nomear é suficiente, o que é errado, obviamente”, afirma a escritora. Talvez tenhamos passado muito tempo a apregoar a liberdade e a igualdade, mas será que efetivamente nos empenhamos na sua prática? - esta foi a questão que esteve no centro do primeiro debate do ciclo “Uma ideia para a harmonia”, que se realizou na quinta-feira à noite na Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, em Lisboa.

Na conversa, moderada pela jornalista Alexandra Carita, participou também a historiadora Irene Flunser Pimentel, “baby boomer” que cresceu a seguir à Segunda Guerra Mundial, com as imagens do Holocausto ainda muito presentes e a promessa da Sociedade das Nações de que não vamos deixar que isto se repita. A historiadora, que se dedica sobretudo ao período contemporâneo e é uma das grandes especialistas no Estado Novo, assume-se como “uma adepta das Luzes”, referindo-se ao Iluminismo. “O legado das Luzes é fundamental. É a partir daí que liberdade e igualdade se entrecruzam. É o momento da razão, da crítica e da autocrítica, do universalismo.” E este é um legado de que teve consciência ainda durante a juventude (tinha 24 anos a 25 de Abril de 1974): “Atuei contra o regime e lembro-me que tínhamos um medo muito grande, mas atuávamos. Achávamos que era uma questão ética. Eu sentia uma obrigação ética de lutar contra um regime absolutamente infame”, recorda.

Mas afinal o que é ser livre?

Para responder ao repto lançado pelo título do encontro - “Liberdade, Direitos Humanos, Igualdade: que princípios são estes?” - a autora de livros como “O Retorno” e “Eliete - A Vida Normal” começa por lembrar que os conceitos não são cristalizados, vão evoluindo. Aquilo a que no tempo da Revolução Francesa se chamava liberdade não é o mesmo que chamamos hoje. “As palavras já não querem dizer o mesmo, o tempo é tão diferente, os problemas e os desafios são substancialmente diferentes.”

“Seria preciso investir no pensamento - nas tais disciplinas esquisitas, que não são lucrativas como a filosofia, a história, as artes, em todas estas coisas que normalmente o poder político despreza - para perceber o que é hoje a liberdade, perceber quantas vezes o nome da liberdade foi usado em vão, quantas vezes foi subvertida.”

Para começar, “a ideia de liberdade é extremamente subjetiva”, diz Dulce Maria Cardoso. “Por exemplo, considero que sem poder económico, sem uma vida digna, do ponto de vista económico, não há liberdade. Para mim isto é fundamental. E quando digo isto, chamam-me materialista. Mas a verdade é que temos de ter meios para exercer a liberdade.” Uma pessoa com fome não poderá ser verdadeiramente livre, assim como uma pessoa com medo também não é livre. “Só é verdadeiramente livre quem existe sem medo e sem favores. Estas são duas coisas que limitam muito a liberdade, seja na política seja na nossa vida pessoal.” 

Mas isto é também um paradoxo, avisa a escritora. “Todas as relações humanas são relações de poder. A ideia de poder traz com ela o domínio. Não fazemos o que queremos porque temos medo ou porque não queremos magoar outra pessoa. Mas temos de nos relacionar com os outros porque vivemos em sociedade, temos de nos organizar, portanto, existe esta tensão entre o que deveria ser a liberdade, a pureza da ideia da liberdade, e aquilo que tem de ser, porque, entretanto, há o coletivo que é fundamental para que possamos existir.”

É por isso que Irene Flunser Pimentel diz que temos de distinguir entre liberdade negativa e positiva. “A liberdade negativa é a ausência de submissão. Como na Grécia, eram livres os que não eram escravos”, explica. “A liberdade positiva dá-nos a possibilidade de não viver num estado que não nos subjuga completamente. Eu tenho a possibilidade de me revoltar. Mas eu escolhi viver em sociedade e escolhi retirar parte da minha liberdade para dar ao Estado, mas por outro lado, espero também alguma coisa em retorno.” Na sua opinião, na nossa sociedade a liberdade positiva é a que está mais em risco, “está a desaparecer”.

A liberdade não pode servir para atingir e para prejudicar os outros”

A liberdade de expressão é talvez um bom exemplo para se perceber o que está em causa. Todos achamos que temos o direito de dizermos o que quisermos, mas será exatamente assim?

“A extrema-direita utiliza muito a liberdade de expressão como arma para poder insultar, subjugar, discriminar os outros”, diz Irene Flunser Pimentel. “Não podemos permitir isso. Existe uma coisa que é a decência, ou o senso comum, não fazer aos outros o que não queríamos que nos fizessem a nós. E é isso que nós temos de explicar. E isto tem de ser dito. Mas isso requer que expliquemos que a liberdade tem limites. Há responsabilidade, há obrigações. O espaço público exige isso. A liberdade não pode servir para atingir e para prejudicar os outros.”

Dulce Maria Cardoso, que é formada em Direito, recorda que a liberdade já tem “limites legais”, uma vez que a lei já prevê que não se possa incitar ao ódio nem discriminar nem magoar outras pessoas.  “O que acontece é que temos que acrescentar aqui outro pilar, que é a justiça.” Portanto, se calhar é a justiça que não está a funcionar, insinua. 

E vai ainda mais longe: “Esta ideia de que é proibido proibir é um slogan muito bonito, mas não corresponde à verdade. É obrigatório proibir. É obrigatório lutar pela Constituição. Lutar pela Constituição é proibir o que é contra a Constituição”, afirma Dulce Maria Cardoso. “Há quem me chame radical. Pois, eu gosto de ser radical, porque eu sou radical contra o racismo, contra o ódio, como a discriminação. E quero lutar com todas as armas que tenho para que aquela pessoa não possa dizer aquilo que diz.”

Nós, em conjunto, estamos a falhar. Eu sou parte do falhanço”

Neste momento, mais do que a dicotomia esquerda-direita, as duas conferencistas preferem falar em ideias democráticas e não-democráticas. Porque é isto que está em causa, dizem: ainda vamos a tempo de defender a nossa democracia? Voltamos, portanto, à necessidade de ação. “Ainda estamos naquela fase de quase não aguentar mais. Temos de fazer alguma coisa”, diz Irene Flunser Pimentel.

Dulce Maria Cardoso acredita que a solução tem de passar por deixarmos de ser tão individualistas e voltarmos a pensar mais em comunidade. “Perdeu-se essa noção de coletivo. As únicas manifestações coletivas que temos são o futebol e os concertos de música, mas é bom de ver que isto não une muito as pessoas.” No futebol a união faz-se através dos instintos mais básicos, colocando uns contra os outros, nós e eles - e é esse modelo que parece estar a ser copiado na sociedade. E dá alguns exemplos de como, no nosso dia a dia, pensamos cada vez mais individualmente e nos preocupamos com o nosso sucesso - sucesso do ponto de vista profissional e económico, sempre - e pensamos cada vez menos no bem-estar comum. 

“A nossa ação individual tem sempre consequência no coletivo”, defende a escritora, lembrando também que não vale a pena atirar as culpas para “os políticos” como se fossem uma entidade estranha a nós. “Os políticos saem da sociedade. Somos nós. Nós, em conjunto, estamos a falhar. Eu sou parte do falhanço.” 

Para que as palavras “liberdade, igualdade, direitos humanos” não sejam meros chavões, enfeites que usamos nos dias de festa, mas de que nos esquecemos nos outros dias, é preciso, antes de mais, cidadania, dizem ambas. E isso passa também por encontrar linhas de comunicação, respeito pelos outros que pensam de forma diferente (desde que dentro dos princípios democráticos) - esse é o princípio da harmonia. Não uma harmonia destrutiva e totalitária, que uniformiza e destrói o indivíduo; mas uma harmonia construtiva, que permita a diversidade e o pensamento livre.

Com estas ideias, deixadas quase no fim do debate, fica lançada a ponte para a próxima conversa, que vai acontecer a 14 de novembro: "Discriminação: entre maiorias e minorias" junta o psicólogo social Jorge Vala e a historiadora Filipa Lowndes Vicente.

País

Mais País