Fomos conhecer quem está a tomar conta de 100 obras de arte de João Rendeiro e de imóveis arrestados ao BES

23 mar 2022, 07:00

Os quadros do antigo banqueiro e algumas contas e imóveis ligados ao caso BES que foram apreendidos pela Justiça estão, neste momento, à guarda do Gabinete de Administração de Bens. Aqui há ainda carros topo de gama, joias, barcos, aeronaves, apartamentos e moradias. A maioria acaba por ser leiloada. As responsáveis por esta estrutura do Estado explicaram à CNN Portugal como tudo funciona

Entre as centenas de obras de arte de João Rendeiro, há pelo menos 100 que foram já recuperadas pelo Estado. Estão à guarda do Gabinete de Administração de Bens (GAB), um organismo que gere os bens que são apreendidos pela Justiça. “Ainda não se sabe o que será feito com as peças arrestadas”, adiantou à CNN Portugal Maria Rosa Tobias Sá, Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), que tutela o GAB.

O destino dessas cerca de100 obras, entre quadros, esculturas e outras peças, arrestadas no âmbito dos processos-crime do antigo presidente do BPN, pode ser variado: podem ser leiloadas, ficar para o Estado ou ter ainda outro fim. Tudo depende do que os juízes decidirem e das sentenças dos processos transitarem em julgado. Por enquanto, estão guardados num sítio seguro.

O mesmo se passa com muitos dos bens apreendidos no caso do BES: estão à guarda deste organismo. Mais de 100 bens, entre imóveis de fundos de investimentos, várias obras de arte e, provavelmente, alguns milhões de euros em contas arrestadas.  É, segundo Maria Rosa Tobias Sá, um dos conjuntos de bens mais complicados de gerir, devido às decisões judiciais. “Agora tem havido decisões quase todos os dias sobre os arrestos do processo BES e correlacionados”, diz, especificando: “o juiz levantou o arresto, libertou 700 mil euros que tinham ficado arrestados. Depois o ministério publico anuncia que vai recorrer e já não deixa levantar”.  Ou seja, explica a responsável, “na prática, nestas situações", o GAB não faz nada, “enquanto a decisão não se torna definitiva”.

Ana Marcolino, diretora do GAB, confirma à CNN Portugal que o caso BES tem “muitas especificidades”: “No caso do BES há uma serie de imóveis que estão arrestados, ao nível dos fundos de investimento imobiliário, do grupo. Depois o juiz autoriza o levantamento do arresto, contra o depósito do valor do bem, numa conta arrestada, e o GAB acompanha essas escrituras. Garante o deposito do valor à ordem do processo”. 

Alguns dos imóveis dos fundos de investimento do BES foram vendidos, mas o “dinheiro está guardado”, sem se poder movimentar, até a decisão do processo transitar em julgado, explica a responsável do GAB.

Uma embarcação de pesca que valeu um milhão 

Quando os bens são apreendidos pela Justiça, uma grande parte, fica à guarda do Estado, sob a tutela deste GAB. Muitos estão guardados em armazéns, como barcos, carros, motos, joias e obras de artes. Outros como imóveis e contas bancárias passam a ser geridos por este organismo. Um dos últimos a entrar na lista pode vir a render algum dinheiro. “Neste momento temos um jato privado”, assume Ana Marcolino.

Os que se perdem definitivamente em favor do Estado são leiloados e o dinheiro reverte fica no Estado. No entanto, o GAB não tem apenas lucro:  uma vez que a sua função principal é guardar, preservar e administrar os bens apreendidos pela justiça, e os gastos com a conservação são elevados.

Entre os bens que têm passado por este organismo, alguns surpreendem pelo tamanho, outros pelos preços. O mais caro alguma vez vendido foi, conta Ana Marcolino, “uma embarcação de pesca, por um milhão de euros”. Em segundo lugar no que se refere aos que mais renderem foi um “cargueiro” vendido por cerca de “600 mil euros”

Cargueiro vendido por 600 mil euros (Imagem GAB - DR)

No final de 2021, o Gabinete de Administração de Bens tinha no seu inventário 2.400 bens, de várias tipologias, no valor total de cerca de 79,5 milhões de euros. 

Dados cedidos à CNN Portugal, revelam que em 2018, os bens leiloados renderam mais de um milhão e duzento mil euros. Em 2019, o valor ficou um pouco acima dos 800 mil euros. Já em 2020 e 2021, devido à pandemia de covid-19, o lucro ficou pelos 250 mil euros e 220 mil, respetivamente. Foram anos atípicos.

“Os números do GAB são uns números muito voláteis e, às vezes, é difícil perceber como isto funciona (…) Ainda aqui há uns tempos, num dia tínhamos 82 carros, num processo, e no dia a seguir já não tínhamos nenhum. Porque foi logo determinada a entrega dos bens, afirma à CNN Portugal Maria Rosa Tobias Sá, presidente do IGFEJ.

Um dos bens que mais custos acarreta ao GAB são as embarcações. “Temos barcos no país inteiro, incluindo nas ilhas. Temos um problema em relação aos barcos. Eles são apreendidos no local onde se encontram e ficam lá. Temos alguns barcos nos Açores e fica muito caro trazer para o continente. Até porque, se houver uma decisão do tribunal para a restituição do bem, temos o custo de o trazer e, depois, o custo de o entregar”, explica Ana Marcolino.

Na verdade, em 2020, quando o país viveu os dias mais difíceis devido à pandemia, os custos com marinas e portos chegou quase aos 300 mil euros. 

GAB só recebe bens acima dos 5.100 euros (com exceção dos veículos)

Mas nem todos os bens arrestados e/ou apreendidos são enviados para o Gabinete de Administração de Bens. Essa decisão é sempre do magistrado responsável pelo processo judicial e precisa de um despacho. E há muitos bens que este gabinete desconhece. Ou ficam nos tribunais ou os magistrados determinam fiéis depositários. Foi o que sucedeu inicialmente, por exemplo, com os quadros de João Rendeiro. O tribunal determinou que as obras de arte ficariam à guarda da sua mulher. Após a fuga do ex-banqueiro, em setembro do ano passado, e de ter sido detetada a venda de alguns quadros, estes passaram, então, para a guarda do GAB.

Ao Gabinete de Administração de Bens também só chegam bens acima dos 5.100 euros. Com uma exceção: os veículos. Por exemplo, “uma conta de cinco mil euros não, mas um carro de 100 euros, sim”, esclarece Ana Marcolino. Os veículos não podem ser recusados. E a verdade é que são dos bens que mais frequentemente ficam à guarda do Estado

As viaturas são, confirma Maria Rosa Tobias Sá, os mais frequentes, mas há uma grande variedade de outros bem. “Temos embarcações, aeronaves, ouro, joalharia, contas bancárias, participações sociais, apartamentos, moradias. É muito variável”, adianta.

Mesmo assim, apesar de receberam muitos veículos, a presidente do IGFEJ, esclarece que nem todos chegam ao GAB e há motivos para isso:

“É importante perceber que não são todas as viaturas apreendidas que vêm para aqui à nossa guarda. Isto porque os Órgãos de Policia Criminal, sejam eles a Policia judiciária, PSP, GNR ou outros. Todas estas entidades, quando são elas a fazer a apreensão dos bens, podem declarar a utilidade operacional desses bens para a sua atividade e a afetação à sua atividade”.

Porches e outros topo de gama 

Há também situações em que se podem fazer “vendas antecipadas”. Ou seja, os bens são vendidos antes de haver uma decisão transitada em julgado no processo - e o valor fica guardado. Mas tal só pode acontecer com uma decisão judicial. Foi o que sucedeu com imóveis do caso BES. “Tem de haver uma decisão do juiz que diga expressamente que aquele bem não é meio de prova relevante e existe suscetibilidade de perda a favor do estado”, esclarece Ana Marcolino. Ou ainda, que seja um bem perecível ou esteja a perder valor. A venda é sempre feita em leilão.

No caso das embarcações, pelos custam que acarretam para o IGFEJ, quanto mais rápida for a venda, melhor.  No entanto, muitas vezes a sua venda demora algum tempo, “já que de uma maneira geral, tem a ver com tráfico de estupefacientes e é muito difícil conseguir autorização do tribunal para dar-lhe um destino antes da decisão final, esclarece a diretora do GAB.

A rapidez da venda também pode ser decisiva para o valor a conseguir nos automóveis arrestados.: “No caso das viaturas, quando saímos com elas da porta do stand já perdeu uma boa parte do seu valor e continua a perder”, afirma Maria Rosa Tobias Sá,

Os carros são sempre dos bens com maior procura: “Vendem-se muito bem e embora, às vezes, se ache que os mais baratos se vendem melhor, não é bem assim. As motas, também se vendem muito bem. Têm muita procura, muitas licitações”, explica Ana Marcolino. 

Antes de licitar, os interessados podem ver os bens. Além das fotografias disponibilizadas, os quem quiser também pode marcar uma visita. Sejam embarcações, imóveis ou veículos. Um dos automóveis que gerou muitas visitas foi um Porche Panamera.” Foi uma venda antecipada perto do Natal do ano passado. Estava nas nossas instalações aqui em Lisboa e tivemos muitas visitas”, conta a responsável pela gestão do GAB

Para vender os bens, a GAB recorre a diferentes plataformas.  “Usamos a plataforma do e-leilões, mas também fazemos a publicitação dos anúncios na página do IGFEJ. Temos uma página dedicada ao Gabinete de Administração de bens. Também divulgamos no Facebook e Linkedin ou com mailings lista”, descreve. 

No entanto, quando há vendas antecipadas, há uma regra especial: o proprietário tem de ser notificado e, após a avaliação do bem, este pode pagar esse valor. O bem é restituído, em vez de ficar apreendido, mas o valor fica à ordem do processo até haver uma decisão transitada em julgado. Foi o que aconteceu num caso há vários anos com alguns carros topo de gama: "Havia um Mclaren, e outros veículos e o arguido veio pagar”, relata Ana Marcolino, que também se recorda de uma outra situação em que um “carro que valia 700 euros” foi arrestado e “o arguido veio pagar esse valor, porque precisava do carro para o seu dia a dia"

E o que acontece às receitas dos leilões?

No caso das vendas antecipadas o dinheiro fica retido até haver uma decisão transitada em julgado dos processos: “Depois sendo declarado perdido a favor do Estado, nós fazemos a distribuição da receita”, esclarece Ana Marcolino.

E como é feita? “Nos termos da lei, 50% é para o Fundo de Modernização da Justiça, 49% é para o IGFEJ e 1% é para a Comissão de Proteção Contra as Vitimas de Crimes. Isto é a regra geral, mas depois há casos específicos”. 

O acórdão do tribunal pode especificar o destino das receitas e Ana Marcolino recorda um caso que envolvia um veículo: “No acórdão estava definido que a receita da venda do veiculo era para ressarcir as vítimas daquele crime”. Mas há outras situações como, por exemplo, nos casos relacionados com tráfico de estupefacientes: “A receita também é um pouco diferente, e uma componente do valor também tem de ser transferida para o Ministério da Saúde”.

Os últimos dois anos, devido à pandemia, foram complicados de gerir, mas agora o GAB e o IGFEJ querem aproveitar a atual conjuntura. Por exemplo, a dificuldade na entrega de carros novos, pode ajudar à venda dos veículos usados. E há muitos à espera, em fila. O ouro também está a valorizar, o que também poderá fazer escoar a melhores preços os lotes disponíveis para leilão.

Nem todos os bens estão centralizados em Lisboa ou vão fisicamente para a guarda do GAB. Isso tornaria a situação insustentável: " Teríamos de ter uma dimensão de armazenamento que nunca mais acabava. Pagávamos mais em armazéns, do que depois retirávamos da venda dos bens", nota Maria Rosa Tobias Sá.

A existência do Gabinete de Administração e Bens tem permitido a recuperação de verbas por parte do Estado, principalmente no que toca à criminalidade económica. Mas este é apenas um dos muitos departamentos do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça - IGFEJ. É a este instituto que cabe, por exemplo, "gerir" o "património da justiça", sejam tribunais, estabelecimentos prisionais ou outros edificados. Tem ainda na sua tutela "os sistemas, infraestruturas e tecnologias da justiça", passando também pela cibersegurança.

Com algum sentido de humor, Maria Rosa Tobias Sá, diz que são "o ministério das Finanças do ministério da Justiça", já que todas as contas, sejam obras, pagamentos de advogados, rendas, ou outras despesas, também passam por aqui.

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