Descanso dos que estão em teletrabalho só deve ser interrompido por motivos de força maior, mas lei ainda gera dúvidas e muitos não apresentam queixa por receio de represálias. Advogados contactados pela CNN Portugal consideram que a lei devia ser aplicada a todos os métodos de trabalho e que "é um bom princípio, mas que está muito longe" de atingir o objetivo
Portugal foi notícia lá fora e por uma razão muito simples: uma nova lei, aprovada em novembro do ano passado, daria aos trabalhadores o "direito a desligar", prevendo consequências para as empresas que os contactassem fora do horário de trabalho. Feita numa altura em que muitos milhares de portugueses estavam em teletrabalho, e consequentemente os horários se tornavam mais flexíveis - e menos controlados -, o interesse nesta lei era óbvio: estaria o país a tornar-se um exemplo nesta nova forma de trabalhar?
A lei foi publicada em Diário da República a 6 de dezembro de 2021 e diz que, em caso de teletrabalho, o "empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior" e que "constitui contraordenação grave a violação" desta alínea. Mas o que quer dizer esta lei na prática? Quer dizer que o trabalhador que se encontra em teletrabalho "tem direito a desligar o computador e o telemóvel da empresa quando termina o dia de trabalho e a não o ligar até ao dia seguinte", explica a advogada Ana Isabel Barona, à CNN Portugal.
A especialista em direito laboral lembra que os empregadores - "não todos" - "têm uma cultura de que os trabalhadores têm de estar sempre disponíveis" e que terá sido por isso que esta lei nasceu.
"A lei tem regras muito específicas. As pessoas têm uma cultura de entender que os trabalhadores têm de estar sempre disponíveis. Quanto ao conceito de força maior, é vago, amplo, e tem de ser integrado pela jurisprudência. Fora situações de força maior (como perda substancial da produção), o empregador deve abster-se de contactar o trabalhador, sendo que o dever de abstenção pode ser visto como proibição de contacto ou não. Eu vejo como proibição".
Ana Isabel Barona diz ainda que, para evitar este tipo de situações e outras em que os trabalhores invoquem, por exemplo, assédio laboral, as empresas têm de regulamentar o direito ao descanso nos contratos.
"O regime de teletrabalho tem a indicação de que existe uma preocupação em garantir o direito ao desligar. Nos contratos, isso tem de ficar clarificado. Há também a possibilidade das empresas com muitos trabalhadores terem de fazer regulamentos internos para isto. A regulamentação vai aparecer cada vez mais", afirma, alertando que este direito a desligar "não devia aplicar-se só ao teletrabalho". "O trabalhador tem direito às 11 horas de descanso entre duas jornadas de trabalho", lembra a especialista.
Lei "é bom princípio", mas e o presencial?
Também a advogada Rita Garcia Pereira partilha da opinião de que a lei deveria ser "extensível ao modelo de trabalho presencial" para que as "tentativas de trabalho suplementar não pago" deixassem de existir.
"O que existe são tentativas de trabalho suplementar não pago e a exigência de prestação de trabalho suplementar não pago. E no modelo presencial deixa de se aplicar a lei. A lei devia ser extensível ao modelo presencial porque os meios de comunicação com os trabalhadores levam a que as empresas infrinjam esta lei. Nunca entendi esta divisão da lei. Basta a empresa ter conhecimento do número de telemóvel do trabalhador para o contactar fora de horas", explica a advogada.
A especialista em Direito de Trabalho diz ainda que tem conhecimento de queixas de violação do "direito a desligar" anteriores à lei e já na vigência da lei, mas que, neste momento, o número de trabalhadores que reporta este tipo de situações à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) já é mais diminuído, porque regressaram ao trabalho presencial.
"Os trabalhadores fazem a queixa e, quando regressam ao trabalho, deixam cair, porque a situação fica regularizada. E a ACT não tem tido grande capacidade de resposta, porque se encontra com escassez de meios", explica.
Considerando que a lei "é um bom princípio, mas que está muito longe de atingir o fim", Rita Garcia Pereira lamenta que a normalização da exigência do trabalho suplementar não pago seja "um crime que compensa" e espera que as empresas que "não são penalizadas por um lado, sejam condenadas pelo outro".
Mas, sublinha, "tem de haver mais queixas, tem de haver mais ação da ACT e tem de se estender o âmbito da legislação".
A CNN Portugal contactou a ACT para saber quantas queixas destas foram apresentadas após a lei entrar em vigor, mas não obteve resposta até ao momento.
Empresas tentam regular o direito a desligar
Se há quem tenha conhecimento de queixas de trabalhadores, há também quem conheça o outro lado: o de quem tenta legislar para evitar que as queixas surjam.
"Não conheço queixas até hoje sobre esta matéria. Temos estado com as empresas a regular o direito a desligar, a criar regras e a fazer a introdução dessas regras através de acordos laborais e contratos coletivos", explica a advogada Susana Afonso Costa.
Mas que regras são estas que podem evitar que os empregadores sejam acusados de violar o "direito a desligar" do trabalhador? "Criar ferramentas como o próprio email, na assinatura, dizer que está a enviar o email mas que não tem de responder, que "vou-me desligar". Há pequenas mensagens que podem ser passadas", explica.
Para a especialista em direito laboral, "tem de partir das organizações criar esta cultura, mas isso demora tempo", até porque os trabalhadores "acham que o direito a desligar tem consequências" e essa é uma das principais razões que os leva a não apresentar queixa.
"Problema cultural que não se resolve por decreto"
Outro dos cenários para que as queixas não surjam é, segundo o advogado João Correia, "a lei ainda se encontrar num período experimental, digamos assim, em que ninguém quer agredir ninguém".
"É uma lei de interiorização de um recurso que não é assim muito conflituoso sobre o trabalho extraordinário. Penso que não surgirá com frequência este tipo de conflito. É mais uma lei para interiorizar que, se o trabalhador tem de ficar a trabalhar, a empresa tem de comunicar formalmente que precisa do trabalho extraordinário/suplementar", adianta.
Já o advogado Luís Gonçalves da Silva considera que se trata de um "lei feita para os jornais" e de "duvidosa aplicação, que tem gerado pouca aplicação prática e já obrigou a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público a vir fazer esclarecimentos".
"Há dificuldades na implementação da lei. Há uma série de perguntas que temos de saber se podem ser feitas (Posso enviar email a um colaborador que não é para ler de imediato? Devo colocar um aviso?). Quando estamos a falar de uma empresa com meia dúzia de funcionários é mais fácil, mas com uma empresa de grandes dimensões duvido que toda a gente saiba o horário de todos, há dificuldades".
O advogado diz mesmo que o "direito a desligar" se trata de "um problema cultural que não se resolve por decreto" e que em Portugal "tem de se perder a mentalidade que o trabalhador que entra as 9h00 e sai às 21h00 é que é o trabalhador dedicado e o que sai as 17h00 é pouco dedicado."
O que precisa de saber sobre o direito a desligar
No passado dia 3 de novembro, a Assembleia da República aprovou alterações ao Código do Trabalho, que passou a prever, em caso de teletrabalho, o direito a desligar dos trabalhadores no período de descanso, durante o qual os empregadores estão impedidos de contactar o trabalhador, salvo situações de força maior.
O que mudou, então, com estas alterações à lei laboral?
- O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior
- A violação deste dever constitui contraordenação grave
- Qualquer tratamento desvantajoso, em matéria de condições de trabalho e de evolução profissional, dado ao trabalhador pelo facto de exercer o direito estabelecido no número anterior, constitui ação discriminatória
Quem sentir que o seu direito a desligar foi violado pode apresentar queixa aos sindicatos, à ACT, advogados, Comissão de Trabalhadores ou diretamente ao Ministério Público.