“Portugal vai sair da UE” e quer vingar-se da Alemanha. O País na rota da desinformação da Rússia

8 jun 2022, 07:00
Vladimir Putin (AP)

Uma plataforma digital para recrutar russos que aqui vivem e divulgação de textos com mensagens erradas como a de que o nosso País quer seguir o Reino Unido no Brexit são algumas das ações de Moscovo que constam de documentos da União Europeia e que estão a ser analisados por especialistas em espionagem e subversão. Portugal tem estado na mira das estratégias do governo de Putin para criar divisões internas, recrutar apoiantes e captar informações sócio-económicos nos vários europeus. Embaixada Russa, por seu lado, garante à CNN Portugal que Moscovo é que é alvo de fake news

Portugal tem sido alvo de algumas das novas técnicas da Rússia na sua estratégia de desinformação, propaganda e espionagem pelo mundo, em especial na Europa. É um dos países destinatários de um projeto montado por Moscovo para, através de uma plataforma digital, recrutar os russos que aí residem e adquirir também dados internos, segundo investigam especialistas ucranianos do Centro Internacional de Combate à Propaganda Russa. Por outro lado, de acordo com documentos da União Europeia, uma das táticas dos russos passou por colocar a circular nos meios académicos, políticos e até em sites de comunicação social, a ideia de que Portugal iria seguir o caminho do Reino Unido no Brexit e que fazia parte de um grupo de Estados que estava a preparar-se para “ameaçar a hegemonia da Alemanha”.  

A estratégia russa de desinformação, que atinge também Portugal, consta de vários documentos recolhidos e investigados pelo serviço diplomático da União Europeia, segundo adiantou à CNN Portugal Peter Stano, porta-voz da UE para os assuntos externos. E levou a que em março deste ano o Parlamento Europeu tenha aprovado um relatório que avalia e propõe soluções para enfrentar a forma como regimes autoritários, incluindo Moscovo procuram manipular, influenciar e enfraquecer a UE através da desinformação. Sandra Kalniete, a eurodeputada da Letónia que elaborou o documento, explicou à CNN Portugal que, na investigação que liderou durante 18 meses, ficou claro que “a utilização de sistemas inovadores de comunicação, como aplicações, para fazer a guerra cibernética é considerada um dos elementos principais na preparação da invasão”. 

“Observamos como o Kremlin considera estas ferramentas uma forma de ataque aos estados democráticos e é algo em que Moscovo está a investir há anos, aumentando o seu conhecimento sobre os países da União Europeia e sobre como o acesso a diferentes fontes de novas tecnologias podem ser usadas para infiltrar as estratégias de política externa” da Rússia, afirma a eurodeputada Sandra Kalniete, considerando que a União Europeia precisa de criar legislação nova e de atualizar a que tem para se “manter à mesma velocidade das tecnologias que se estão a desenvolver”.

Também no Centro Internacional de Combate à Propaganda Russa, baseado em Kiev, se estão a analisar as novas táticas que a Rússia usa para criar divisões internas, recrutar apoiantes e captar informações sócio-económicos de vários países, incluindo Portugal. E uma das aplicações que está a investigar é exatamente aquela cujo projeto elaborado incluiu o nosso País e que tem como prazo de finalização dia 31 de julho de 2022.

Projeto mundial que incluiu Portugal

Esta aplicação foi idealizada pelo Centro Russo de Investigação de Opinião Pública, o mesmo que recentemente divulgou que 81.3% da população russa aprova as políticas de Vladimir Putin.

É uma aplicação que tem uma plataforma online e que pode também ser descarregada num smartphone. Os utilizadores, no caso russos que vivem em diferentes países, têm depois acesso a vária informação. 

O objetivo, segundo documentação que consta do acervo de projetos que foram a concurso para receberem um subsídio do presidente russo, era o de criar uma aplicação para dinamizar as comunidades russas a viver em países estrangeiros, mas, segundo afirma Yurii Tsurko, professor de tecnologias e segurança de informação da Universidade de Defesa Nacional da Ucrânia e colaborador do Centro Internacional de Combate à Propaganda Russa, é uma cobertura “mais eficaz e mais rápida” para “recrutar pessoas que possam ter maior facilidade, por conhecerem o perfil sócio-económico do país, em manobrar atitudes sociais”.

Segundo aquela mesma documentação, o projeto teria um custo de 135 998 rublos (198 711 euros) e seria inaugurado em Portugal, mas também em Cuba, Estados Unidos, Espanha, Alemanha, Itália, França, República Checa, Áustria, Grécia, Lituânia, Letónia, Estónia e Canadá. A ideia, segundo Yurii Tsurko, que conversou com a CNN Portugal a partir de Kiev, é o de ter acesso a dados que possam facilitar o “aprofundamento das divisões sociais”. “Se, em Portugal, existe alguma divisão, a Rússia vai olhar para isso como um benefício e investir nessa rotura”.

 

Portugal a preparar saída da União Europeia?

O relatório liderado por Sandra Kalniete, aprovado em Estrasburgo em março, pede que sejam canalizados mais recursos para que o Serviço Europeu de Ação Externa (SEAE), a equipa diplomática que luta contra a desinformação russa na UE, possa lidar de forma mais eficaz com a máquina de propaganda de Putin que, segundo a eurodeputada, tem um orçamento de 400 milhões de euros por ano. 

Desde 2015 que o Serviço Europeu de Ação Externa tem tido a missão de identificar tentativas de desinformação e de manipulação russas e de notificar os Estados-Membros visados para que possam tomar medidas a nível interno. A equipa, segundo explicou Peter Stano, porta-voz da UE, é composta por entre 40 a 50 funcionários com experiência em diplomacia e comunicação, mas também “vários especialistas nacionais contratados durante um período de um a dois anos que são normalmente trabalhadores dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros dos países membros”.

Durante estes sete anos, o serviço diplomático da EU tem recolhido perto de 14 mil vídeos, publicações, imagens e mensagens na sua base de dados.

Nesse acervo digital, consta um artigo escrito por um cientista político bielorusso, Vadim Elfimov, publicado numa plataforma de divulgação de trabalhos de investigadores, altos funcionários do Kremlin e especialistas na área da economia, relações internacionais e política de vários países (chamada SONAR 2050) que a propósito do Brexit alega que o “Reino Unido não é um caso especial como Bruxelas gostaria de pensar” e inclui Portugal na lista de Estados Membros que querem sair da União Europeia. “Itália, Espanha, Portugal e possivelmente até a França estão na fila para sair da UE. O Reino Unido é apenas uma primeira manifestação extrema da tendência que separa a UE por dentro”, refere o texto em causa.

De acordo com o SEAE, que inclui esta publicação no seu 164.º relatório sobre as estratégias de desinformação ligadas ao Kremlin - publicado em 2019, esta mensagem é uma “conspiração que é consistente com uma narrativa comum pró-Kremlin sobre o colapso iminente da UE”.

“O apoio à UE, tal como demonstrado na última sondagem do Eurobarómetro, mantém-se a níveis historicamente elevados. Perguntou-se se amanhã fosse realizado um referendo sobre a adesão do país à UE, e apenas 21% da população francesa, 19% dos italianos, 10% dos espanhóis, e 7% da população portuguesa votaria para deixar a UE”, acrescenta este relatório.

Outro exemplo de desinformação russa que visa diretamente Portugal foi publicado em 2020 no 194.º relatório feito por este serviço da UE.  E dá conta que numa publicação feita num site de opinião e notícias russo, o News-Front, com uma ampla divulgação na Rússia, foi escrito que “a cooperação entre os países mediterrâneos, nomeadamente Espanha, Portugal e Grécia, pode tornar-se um problema para assegurar a hegemonia da Alemanha sobre o continente" [europeu]. Segundo a mesma publicação, Portugal, assim como outros dois países, teria percebido que não podia contar com o Estado Alemão. “Todos estes países sofreram muito com o regime fiscal imposto pela Alemanha e as suas políticas financeiras e a pandemia demonstrou que a Alemanha, numa época de crise, não ajuda os seus parceiros na União Europeia e preocupa-se, antes de mais, com os seus próprios interesses. Isto tem sido sempre o mesmo, mas em anos mais pacíficos, a ilusão da unidade europeia tem sido mais forte”.

Na avaliação feita a este artigo, a equipa diplomática da União Europeia destaca que a narrativa que pretende instaurar “visa colocar os estados-membros uns contra os outros numa tentativa de minar a solidariedade europeia, outra táctica recorrente de desinformação pró-Kremlin”.

“O que descobrimos é que este esforço de desinformação é financiado pelo Estado russo, por exemplo através do conglomerado do canal Russia Today, que tem vários trabalhadores empenhados nessa missão”, garante Peter Stano, porta-voz dos assuntos externos da UE, explicando que “a Rússia está a aproveitar-se das liberdades e avanços tecnológicos do mundo ocidental”. “Ou seja, se decidirmos fazer algo da mesma forma que eles fazem, não conseguiríamos penetrar no mercado, porque há censura, há limitação de uso de tecnologias e de redes sociais, como Facebook e o Twitter. Dessa forma, estão a abusar das nossas liberdades, que obviamente não queremos limitar para impedi-los de fazer propaganda”, acrescenta.

Para Víctor Madeira, especialista em contrainformação e subversão russa e investigador associado no Centre For Information Resilience, no Reino Unido,  Moscovo geralmente “tem muito sucesso” a espalhar este tipo de narrativas, porque conseguem concentrar muito bem e detalhadamente a sua mensagem consoante as condições locais e específicas do país em que querem intervir”. O Estado Russo para conseguir chegar a esse objetivo, avisa este investigador, utiliza vozes domésticas, “recrutando, por exemplo, um português que tenha um blogue e que seja simpatizante com os objetivos estratégicos da Rússia e que já tenha uma presença influente nas redes sociais”. 

A CNN Portugal contatou a embaixada Russa em Portugal que confirmou estar a par do projeto digital que terá intervenção em Portugal, garantindo, no entanto, que não tem qualquer ligação direta com os meios diplomáticos russos. "O projeto do Centro Russo de Investigação de Opinião Pública está a ser levado a cabo por esta instituição e por seus próprios meios, sem implicação direta de respetivas missões diplomáticas russas no exterior", afirma.

Por outro lado, na resposta enviada, o adido de imprensa, Alexander Bryantsev, aborda ainda a questão das "Fake News", lamentando a desinformação que a Rússia tem sido alvo. "Estamos empenhados no combate contra o fenómeno que tem representação, infelizmente, nos media  estrangeiros", diz, dando como exemplo artidos de vários jornais, como o Guardian, The New York Times, desmentidos no site do Ministério dos Negócios Estrangeiros russos 

O papel das embaixadas e os oficiais de informação

O plano russo passa ainda, segundo o especialista em desinformação russa Victor Madeira, por colocar elementos dedicados à desinformação e propaganda nas embaixadas.  É muito preocupante, porque o número de diplomatas russos presente em cada embaixada geralmente é muito mais baixo do que aquilo que se pensa”, diz, adiantando que as estimativas mais recentes “sugerem que entre 30 a 50%, dependendo da importância estratégica desse país, dos funcionários das embaixadas e delegações oficiais russas são suspeitos de serem oficiais de informações”.  Dados que vão ao encontro da denúncias feitas porta-voz da UE para os assuntos externos, numa entrevista dada à CNN Portugal sobre o tema. De acordo com Peter Stano as embaixadas russas nos países da União Europeia, incluindo Portugal, estão envolvidas em atividades de espionagem, utilizando a cobertura do serviço diplomático e um número “desproporcional” de funcionários. “ Nós apenas os expulsamos porque alguns deles usam uma capa para esconder o seu envolvimento em atividades de espionagem ou atividades impróprias que não estão de acordo com o status diplomático”, conta. 

Victor Madeira, que se tem dedicado a estudar estes temas, esclarece que no que se refere às embaixadas, a designação de oficial de informação tem três categorias.

Uma é composta por aqueles que trabalham sob proteção diplomática e cuja ação é do conhecimento das autoridades. Outra incluiu os que têm ligações ao serviço, mas não têm proteção diplomática. “São homens de negócios, académicos, professores, turistas que usam as identidades próprias deles, mas são oficiais de informações da Rússia sem que haja um laço claro entre essas pessoas e os serviços de informação de Putin”, esclarece Madeira.

Já terceira categoria, acrescenta, é “completamente clandestina”. "Falamos aqui dos oficiais de informações ilegais, ou seja, pessoas que não demonstram laços nenhuns com o serviço de segurança ou de informações para que trabalham, nem necessariamente com o país de origem", explica Víctor Madeira, acrescentando que estas pessoas “geralmente não têm nacionalidade russa, operam através do Ocidente e são implantados ao longo de 10,15 ou 30 anos, recorrendo a identificações falsas” e com o objetivo de agir subversivamente “contra os países inimigos", para preparar o terreno "para o dia em que o conflito chegue”. 

Este último tipo de oficiais de informações são “muito difíceis de identificar” e, habitualmente, só se consegue impedir estes atos de espionagem quando “há uma penetração de um serviço hostil e uma toupeira revele a identidade destes oficias, ou através da intercepção e descodificação de comunicações. Este é um grande problema na União Europeia”, revela o investigador associado no Centre For Information Resilience, no Reino Unido.

O próprio processo de recrutamento do Kremlin tem sido alvo de vários estudos ao longo dos anos pelos investigadores do Centro Internacional de Combate à Propaganda Russa. Yurii Tsurko explica que os serviços secretos da Rússia começam por investigar a pessoa que lhes pode servir um determinado propósito, “chegando mesmo a ter um perfil dela na sua base de dados”. “Depois, depende daquilo que descobrirem: há casos em que chantageiam um possível agente de influência porque descobriram um crime que cometeu, mas promessas de dinheiro, de poder político, ou de glória também servem para convencer as pessoas a cumprir o propósito do Kremlin”, acrescenta o investigador e professor universitário.

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