Anónimo, gratuito e financiado pelo Estado: o primeiro centro em Portugal que testa qualidade de droga para consumo

15 jun 2022, 22:23

A ideia é reduzir o perigo do consumo de substâncias. Para isso, foi aberto na Penha de França, em Lisboa, um espaço onde se pode entregar uma amostra da droga que se vai consumir para ser analisada. Em breve, abrirá um também Porto. Os homens jovens com curso superior são os que mais procuram o serviço. E o ectasy é a substância mais testada. Admitindo que a ideia não é totalmente aceite por toda a sociedade, a fundadora do projeto Helena Valente explica que tem enquadramento legal e surgiu na sequência da descriminilização do uso de drogas em Portugal para proteger quem decide consumir

Quando planeia sair à noite no fim de semana, Joana Canedo costuma, muitas vezes, recorrer antes a um serviço inovador no país: um centro legal que analisa a composição dos vários tipos de droga, para verificar se não dosagens ou componentes colocam em risco iminente quem as consome.

“Cada vez que quero sair à noite e consumir uma substância nova posso pedir informação aqui. Venho numa terça-feira e na sexta, antes da saída noturna, já tenho acesso a uma informação quantitativa e descritiva sobre o que contém uma determinada substância”, conta à CNN Portugal Joana Canedo, 29 anos, que costuma preferir psicadélicos.

Segundo Helena Valente, fundadora da associação Kosmicare, que criou este projeto e que conta com financiamento da Câmara Municipal de Lisboa e do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, tutelado pelo Ministério da Saúde, o serviço funciona num espaço na Penha de França e está aberto a toda a população. “É anónimo e gratuito e qualquer pessoa pode recorrer durante os horários definidos. Basta entregar uma amostra da substância que pretenda testar", explica a responsável, indicando que o local está aberto “todas as semanas, entre as 16:00 e as 21:00, às terças e quartas-feiras".

À chegada ao quase invisível 17 B da Rua Cesário Verde, conta Helena Valente, as pessoas respondem a um conjunto de questões, recebem um aconselhamento individualizado e deixam uma ínfima parte do composto que desejam que seja analisado. As parcelas, entregues durante a semana, são testadas à quinta-feira, para que os resultados sejam enviados para o consumidor na sexta-feira. Um cronograma que, de acordo com a responsável, foi definido tendo por base a ideia de que a maioria das pessoas que se desloca ao Kosmicare "consome em ambientes recreativos noturnos, ou seja, quer consumir durante o fim de semana".

Este serviço, que a associação batizou de drop-in, tem como uma das principais missões reduzir os perigos do consumo de substâncias.

"A ideia é que possam comprar antecipadamente, possam vir testar, possam já saber o que é que é e, de alguma forma, possam estar preparadas para minimizar algum risco que pudesse advir desse consumo”, explica.

Após toda a análise, os resultados podem ser entregues presencialmente ou pelo telefone, modalidade em que é o próprio consumidor a contactar a Kosmicare para que a confidencialidade seja assegurada.

Para as substâncias são facultados dados qualitativos e em alguns casos quantitativos. Ou seja, com a separação de todos os componentes de uma determinada amostra consegue-se perceber quais são e a dosagem de cada um. Esta última análise é, particularmente, essencial para “algumas substâncias que circulam no mercado, como o ecstasy (MDMA), em que tem havido uma tendência para circulação de pastilhas de grande dosagem", esclarece Helena Valente, alertando que são compostos em que "a dose é muito importante".  "Não basta saber que a pastilha contém só MDMA, mas também é relevante saber qual a quantidade que contém para que o consumo possa ser ajustado de alguma", clarifica.

"Por exemplo, se alguém entrega uma amostra de cocaína, conseguimos dizer se tem só cocaína, se tem paracetamol, se tem fenacetina, se tem cafeína, etc… permite-nos saber isso do ponto de vista qualitativo. E para algumas substâncias também já há um método que nos permite quantificar, ou seja, saber qual a quantidade de uma determinada substância que está presente na amostra. afirma a responsável, acrescentando que .

Tiago - que pediu para não ser identificado devido ao preconceito social estava a recorrer a este serviço de análise de droga no dia em que a CNN Portugal fez a reportagem. No seu caso, não esquece uma situação que já vivenciou: comprou cocaína, e foi enganado. “O pó branco mágico, afinal era só paracetamol”, conta.  O jovem que costuma deslocar-se regulamente a este espaço na Penha de França, garante, no entanto, que “na maior parte dos casos a amostra corresponde à droga que achava ter comprado”.

Em Portugal, a canábis continua a ser a substância ilícita mais consumida, com 4,5% dos portugueses a terem consumido esta droga nos últimos 12 meses. De acordo com a última Sinopse Estatística do SICAD de 2020, seguem-se a cocaína, ecstasy (MDMA), heroína, LSD e Anfetaminas, todas com valores residuais abaixo de 1%. 

Identificar substâncias mais raras

Além das drogas mais comuns, o serviço consegue identificar substâncias mais raras e novas. Para isso, a Kosmicare conta também com a colaboração do Laboratório de Ciências Forenses da Universidade Egas Moniz que assume a realização dos testes laboratoriais mais complexos que são efetuados, sobretudo, quando as substâncias são desconhecidas ou no caso de amostras que se revelam ser "surpresa completa" - quando "não são de todo aquilo que as pessoas estão à espera" -, explica Helena Valente.

E nos casos em que as análises demonstram que o conteúdo não eram o que se esperava, mais de 70% dos consumidores acaba por descartar a substância. Contudo, salvaguarda a responsável, este serviço é frequentado por uma "população que tem um estatuto socioeconómico estável”. Bem diferente é o cenário que se vive em bairros sociais, onde a associação costuma enviar carrinhas que visam prestar o mesmo tipo de serviços.

“Neste momento há em Lisboa, o drop in na Penha de França e existe também um serviço de drug checking comunitário a trabalhar na Picheleira e outros bairros", conta, explicando que se trata de uma nova faceta do projeto que pretende implementar nos bairros a mesma estratégia que se pratica no espaço da associação. Mas se neste último os consumidores vão eles próprios levar a amostra de droga para ser analisada; no caso dos bairros são os técnicos do serviço que ali se deslocam para tentar prestar o mesmo serviço.

Quando as análises corroboram que a substância é realmente a esperada, mas existe a presença de adulterantes químicos, a fundadora diz que os valores de rejeição - em que a pessoa acaba por não consumir a substância - variam consoante o resultado. E há uma explicação para isso, afirma. "Imaginemos que numa amostra de cocaína é detetada a presença de paracetamol, as pessoas que consomem cocaína e estão informadas sabem que dificilmente encontraram uma cocaína que não tenha nenhum paracetamol, então aí acabam por consumi-la" diz, dando outro exemplo: “quando uma amostra tem muita cafeína, o que a pessoa tem de saber é que não pode consumir ao ritmo que normalmente consome numa noite". Helena Valente explica que o importante é saber o que se está a consumir, de forma a que se possam "definir os métodos de consumo que sejam o menos danosos possível”.

Sistema de drop-in funciona de modo gratuito, confidencial e sem qualquer marcação prévia.

Toda esta infraestrutura foi criada em 2016, mas a Kosmicare nasceu alguns anos antes, dentro do Boom Festival – um festival internacional de música e cultura no concelho de Idanha-a-Nova. Começou por ser um serviço, onde quem por lá passava numa situação de crise recebia ajuda especializada de médicos e psicólogos. "Entretanto, o serviço dentro do festival foi-se expandindo e tornando-se num serviço completo, que começava por dar informação detalhada a quem fosse consumir e depois ajudar em caso de um eventual problema", esclarece Helena. A mudança de Idanha-a-Nova para a Penha França, acontece porque era imperativo "dar uma resposta comunitária” e "houve essa possibilidade"

Para Joana Canedo, que teve o primeiro contato com a Kosmicare exatamente em Idanha-a-Nova, todo este "serviço possibilita também abrir a discussão sobre o que é o uso de substâncias e o direito ao uso de substâncias”, com foco ainda “nas questões de saúde e na minimização dos riscos”.  Também Tiago, que é estrangeiro e vive em Portugal, explica que recorre ao Kosmicare por ser um  “serviço gratuito com informação de qualidade sobre as substâncias, algo que não é oferecido no SNS" e que "têm benefícios possíveis na redução de riscos para os consumidores”.

Nos próximos meses, deverá abrir um novo centro no Porto. "Já temos um espaço e estamos a pedir a autorização para abrir ao público, no entanto, a data de abertura está dependente de o SICAD nos dar resposta, mas penso que será algo breve", adianta à CNN Portugal a fundadora, lembrando, que este novo centro no norte do país será mais "modesto" e com menor horário, porque vai abrir sem "financiamento oficial", apenas com "o apoio da Open Society Foundation apenas para abrir o espaço".

Ecstasy é a droga mais comum na Kosmicare

Ecstasy (MDMA) é a droga que mais usualmente surge no centro de drug checking da Kosmicare, em Lisboa. Helena Valente explica que entre o top três está ainda a cocaína e o LSD - composto com propriedades psicadélicas. Já o resto das drogas testadas "são muito mais residuais" (o centro ainda não testa canabinoides e derivados).

Quanto à heroína, a droga que mais preocupações gerou em Portugal no início do século, "nunca esteve entre as substâncias mais testadas" no centro da Penha de França, garante a especialista. Questionada sobre se nos equipamentos móveis que se deslocam aos bairros a tendência é a mesma, Helena prontamente respondeu: “Não, de todo, são bairros de consumo, onde estão pessoas com condições económicas e sociais muito mais vulneráveis e onde, preferencialmente, os consumos são de cocaína em base, fumada, e de heroína. Aí, o que mais se tem testado são essas substâncias como era esperado”.

Kosmicare disponibiliza informações e "boas práticas" de consumo, disponibilizando kits que podem facilitar a experiência.

"Enquadramento a título experimental" permite funcionamento

Helena Valente explica que em Portugal, "ao contrário da maior parte dos países do mundo", existe um enquadramento legal para que este tipo de serviços possam estar em funcionamento. Contudo, salienta que é um "enquadramento a título experimental", que concede aos pontos de contacto de informação - forma como o SICAD define este tipo de equipas - a possibilidade de utilizarem técnicas analíticas para testar estas substâncias e prestar informação às pessoas que as consomem. Este é um decreto de lei surgiu no seguimento da descriminilização do uso de drogas em Portugal, em novembro de 2001, e "desde aí o drug checking está incluindo na legislação”, refere a fundadora.

"Portugal aqui também é pioneiro, mesmo não sendo uma lei que abarque todas as dimensões do serviço, permite-nos fazê-lo de uma forma legal. Nós temos uma autorização, ou seja, cada ponto de contacto de informação tem de ter uma autorização do SICAD para funcionar e é mediante essa autorização que nós atuamos”, explica.

SICAD e Câmara de Lisboa financiam projeto

O Estado é financiador do projeto. “O nosso serviço em Lisboa, na Penha de França, é financiado pelo SICAD e tem um cofinanciamento da Câmara de Lisboa", revela Helena Valente. No entanto, o projeto que se desloca às áreas de maior consumo da capital "é financiada através dos Bairros Saudáveis, um programa que foi aberto especificamente para apoio as comunidades criado pelo Governo no âmbito do PRR”, acrescenta a fundadora.

SICAD e Câmara de Lisboa são os atuais financiadores da Kosmicare.

Maioria dos utilizadores são homens, caucasianos, jovens e com curso superior 

"Temos ainda um serviço muito masculino", começa por destacar Helena Valente, que adiante que a mais de 70% das pessoas que se deslocam à Kosmicare são homens caucasianos. A acrescentar ao género, "quase na totalidade são indivíduos que estão empregados e frequentaram o ensino superior", a fundadora classifica que esta é uma faixa social de classe média ou média-alta, "bastante privilegiada e que, portanto, também terá alguma facilidade em descartar ou gerir os seus consumos de uma forma menos danosa", refere.

A fundadora diz ainda que a maioria dos que chegam ao Kosmicare "são pessoas que vão consumir ou já consomem". Apesar da a generalidade ainda serem jovens, "não são consumidores inexperientes", garante Helena, justificando que "o que acontece é que nunca tinham ido procurar outros serviços na área social ou na área da saúde no que diz respeito ao seu consumo".

"São pessoas que iriam continuar a consumir, mas que estariam afastadas dos serviços", destaca.

A responsável explica que, por diversas vezes, o centro só tem mesmo "o papel de fazer a ponte e de desmistificar o preconceito que as pessoas têm em relação ao serviço". "Temos um serviço de apoio psicológico e redução de riscos, porque sentimos que era uma necessidade e muitas vezes nesse serviço podemos encontrar pessoas que já precisam de um acompanhamento e, eventualmente, receber tratamento, mas que elas naturalmente não procurariam local para tratamento, porque se sentem muito afastadas desses locais, acho que é muito mais o ganho do que outra coisa qualquer”, refere Helena.

Maior parte das pessoas que se deslocam até ao serviço de drug checking da Kosmicare são homens, caucasianos e de classe média.

Da Kosmicare até ao Observatório Europeu das Drogas

A Kosmicare trabalha de forma direta e permanente com o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), que, posteriormente, partilha os dados recolhidos com o Observatório Europeu das Drogas, organismo que está capacitado com um sistema de alerta rápido e que recolhe informações de diferentes pontos como hospitais, polícias ou equipas de drug checking de toda a Europa.

Esta rede de controlo de consumos europeia tem vindo a ser vista como uma ferramenta essencial na diminuição de riscos, porque emite "alertas cada vez que aparece uma substância nova" ou é detetada alguma anómalia nos tradicionais padrões de consumo. "Em Portugal, acho que é uma grande mais valia. Na Europa, neste momento, já existem muitos serviços de drug checking, cerca de 20, e cada vez mais se percebe a importância dos dados recolhidos por este tipo de serviços, que trabalham diretamente com a comunidade por serem serviços de primeira linha”, diz.

A diretora da Kosmicare refere que os dados relacionados com estupefacientes e padrões de consumo são recolhidos, sobretudo, através dos apreensões policiais, inquéritos e análise das águas residuais e inquéritos à população, lembrando que estes três métodos dão "um panorama muito geral" e que neles "ninguém trabalha diretamente com quem consome". A especialista acredita que os serviços de drug checking permitem, "de certa forma ligar todos estes dados".

Anualmente, é ainda tornado público o Relatório do Serviço de Drug Checking da Kosmicare, onde a associação partilha os pontos-chave do ano transato e um conjunto de dados estatísticos, tendo por base as amostras analisadas.

 

 

"O que o drug checking permite é, por um lado, saber exatamente o que é que as pessoas tinham na mão de forma individual, permite perceber o que procuram e, depois, permite saber para uma determinada expectativa que tipo de alterações é que estão a aparecer naquelas substâncias. O drug checking parece ser a cola que  ajuda a dar sentido a estes diferentes dados. É uma ferramenta de redução de riscos poderosa e a única que nos permite de facto dar informação que seja importante para a pessoa que vai consumir", aponta.

Dosagem das pastilhas de ecstasy é a principal preocupação

Ao contrário do Canadá ou Estados Unidos, Portugal tem escapado à famosa crise de overdoses - motivada em larga medida pelo consumo de opiodes e fentanil, conhecida como a "droga dos jihadista" e que tem sido cada vez mais vezes encontrada em doses de heroína ou até cocaína - que é vista como o principal problema relacionado com estupefacientes neste século. Também a aqui, a Kosmicare tem o papel central de despistar este tipo de substâncias e derivados nas amostras facultadas para análise. 

"Este projeto também começou no sentido de perceber isso mesmo: como é que estava o nosso mercado?  Temos de preparar respostas para o caso de começarem a aparecer casos de fentanil. Para já, não têm aparecido”, garante Helena.

No entanto, foi possível identificar em Lisboa uma "questão da dosagem das pastilhas de MDMA". A fundadora revela que têm surgido cada vez mais amostras de ecstasy com "algumas adulterações que são preocupantes". Estas pílulas de MDMA, são vendidas nas ruas portuguesas, e têm dosagens várias vezes superior à toma recomendada para uma noite.

Serviço não é bem visto por toda a sociedade

É membro da direção, fundadora e defensora da mais-valia que estes projetos são, mas Helena entende que "evidentemente haverá pessoas que discordam", do ponto de vista moral e legal, de projetos como a Kosmicare. Mas, lembra que "os serviços de drug checking, quando bem implementados e apesar de não ser o seu objetivo principal, tendem a reduzir os consumos" e que "não há dúvidas que diminuem os riscos".

Esta é a razão pela qual Tiago optou por não revelar a sua identidade. Segundo sublinha, continua a existir "um preconceito cultural que se pode observar na sociedade, mas também em termos culturais", Defendendo que as drogas "são um possível escape, mas nunca são uma solução a médio ou longo prazo“,  Tiago considera que "a regulamentação é uma maneira de proteger as pessoas que vão decidir consumir estas substância".

Também a ativista e utilizadora da Kosmicare Joana Canedo alega que "as substâncias estão disponíveis e sempre estiveram" e por isso, "regulamentá-las seria uma opção para a inclusão tanto nos processos terapêuticos como no acesso mais recreativo”.Há uma cultura de substâncias que é preciso não esquecer e vivê-la com liberdade e direitos. Tóxicos somos todos, toxicodependência é um termo desprezável”, diz a ativista.

Portugal foi o primeiro país do mundo a descriminalizar o consumo de drogas, em novembro de 2001.

Do sucesso à estagnação, a relação de Portugal com as drogas

Helena Valente acredita que Portugal, enquanto sociedade, já não olha do mesmo modo para as drogas como fazia no período pós-ditadura. A especialista vê a descriminalização das drogas como o ponto de viragem, em que "se tornou visível à grande maioria das pessoas que de facto resultou, foi um modelo que teve sucesso". A fundadora do Kosmicare considera, no entanto, que País "não tem avançado ao mesmo ritmo". "De alguma forma estagnou num determinado momento, ao perceber isso, facilmente se entende que é muito mais o que se ganha do que se perde, até do ponto de vista custo/beneficio, estes são serviços que são baratos”, aponta, lembrando; Portugal, que um dia esteve na dianteira das políticas de drogas, tem-se deixado ficar à sombra do seu sucesso”.

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