Uma mulher transgénero luta pelo reconhecimento da disforia como uma condição protegida pela Lei dos Americanos Portadores de Deficiência. O processo judicial insere-se num debate mais amplo sobre a autodeterminação de género e os estabelecimentos prisionais, que já ultrapassou os Estados Unidos
Kesha Williams, de 41 anos, identifica-se como mulher há mais de duas décadas. Faz tratamentos hormonais há 15 anos, que a ajudam a aliviar os sintomas de disforia de género e a sentir-se em paz no corpo em que vive. Numa decisão pessoal, manteve os órgãos genitais e optou por não realizar a cirurgia de redesignação sexual.
Em 2018, numa decisão jurídica que abalou a sua vida, foi colocada numa prisão masculina na cidade de Firefax, no estado norte-americano da Virgínia.
A disforia, uma condição médica tratável que descreve um sentimento de dissonância entre o sexo biológico e a identidade de género, requer um tratamento consistente. A desvalorização da identidade do paciente pode resultar num agravamento dos sintomas e numa “angústia extrema” que mói – e mata.
A acomodação de Kesha numa prisão masculina negou mais do que as suas necessidades médicas: pôs em causa, garante, a sua integridade e identidade enquanto mulher transgénero. Chamaram-na de homem, viu negados os seus pedidos por tratamentos hormonais e acessórios femininos, foi forçada a ser revistada por seguranças do sexo masculino e a despir-se em frente aos outros reclusos. A discriminação a que foi sujeita, e que agora recorda em tribunal, traduziu-se num retrocesso em “direta contradição” das suas necessidades médicas.
Inconformada com a violência “física e mental” que sofria nas instalações prisionais, Kesha requereu ser ouvida por um conselheiro. Em resposta, foi-lhe dito para ser paciente e aguardar o fim da sentença. “Boys will be boys” (os rapazes serão sempre rapazes, na tradução), disseram-lhe, como se de um mantra se tratasse.
Este não era o primeiro episódio de discriminação que Kesha Williams enfrentava. Mas, desta vez, sentia-se na obrigação de defender toda uma comunidade. “Tenho de lutar por todas as outras raparigas que são forçadas a passar por isto.”
Ao contrário do que lhe tinha sido aconselhado, Kesha não esperou por sair da prisão. Com a ajuda de um advogado, apresentou o caso ao Tribunal de Recurso dos Estados Unidos e juntou a sua voz ao coro que se insurge, cada vez mais veemente, contra a detenção de mulheres trans em prisões masculinas.
O que começou com a luta individual de Kesha contribui, agora, para um novo ímpeto na luta comunitária das pessoas transgénero. O caso está ainda em deliberação, mas o debate já começou a incendiar – e a dividir – os Estados Unidos.
A disforia de género como uma condição médica. Quem apoia, e quem se opõe
O processo de Kesha Williams baseia-se numa nova (e controversa) interpretação da Lei dos Americanos Portadores de Deficiência, em vigor desde 1990.
Ao considerar a disforia de género uma condição médica debilitante, a equipa de defesa pretende que as pessoas diagnosticadas com este transtorno sejam incluídas na Lei e protegidas enquanto portadoras de deficiência.
Uma interpretação inicial não previa a inclusão de pessoas disfóricas, mas há quem considere imperativa uma revisão que inclua transtornos psicológicos associados à experiência trans. “A doença de que a minha cliente padece não existia” no início da década de 90, fez notar o advogado Joshua Erliche em tribunal, mas a evolução clínica do transtorno exige que “apliquemos uma interpretação moderna" à Lei.
De acordo com um documento divulgado pela organização GLAD, "os protocolos médicos indicam que o tratamento para a disforia de género consiste na transição de género" nas suas várias vertentes, desde suplementos hormonais à inclusão em espaços seguros. Sob a Lei dos Americanos Portadores de Deficiência, o acolhimento de uma mulher transgénero disfórica numa prisão masculina passaria a ser "proibido" e interpretado como uma interrupção de tratamento médico.
Amy Whelan, uma advogada pertencente ao Centro Nacional para os Direitos das Lésbicas (NCLR), realça ainda a violência sexual a que as mulheres transgénero estão sujeitas em espaços exclusivos masculinos e lamenta que os genitais sejam o fator determinante no alojamento dos reclusos, em detrimento da autoidentificação.
“As prisões estão ainda muito atrasadas em termos de compreensão dos riscos médicos envolvidos”, diz, citada pelo The Washington Post, realçando que a insegurança manifestada pelas pessoas trans “está a pôr em risco a segurança destas instituições”.
Do outro lado do debate, incluem-se juízes federais, vários grupos feministas e a própria prisão de Firefax. Segundo avança o mesmo jornal, representantes do estabelecimento prisional alegaram que os depoimentos de Kesha eram "insuficientes para provar que se qualificava como uma pessoa portadora de deficiência", uma posição que foi corroborada pelo primeiro juiz federal a apreciar o caso.
O argumento de que a disforia de género terá "uma origem fisiológica", por alegadamente advir de uma "interação atípica de hormonas sexuais com o cérebro em desenvolvimento", como defendido por algumas organizações LGBTQ+, terá também sido desvalorizado por carecer de provas científicas.
Recentemente, organizações de mulheres como a Women’s Liberation Front têm defendido a "inconstitucionalidade" do acolhimento de mulheres transgénero em espaços femininos e denunciado um "ambiente inseguro" para as reclusas, citando alegados casos de violência física e sexual.
“Estes são criminosos masculinos a ser alojados em prisões femininas”, disse Lauren Adams, diretora da organização de libertação feminina, no âmbito de um processo judicial contra a autodeterminação de género nos estabelecimentos prisionais. “Fingir que são mulheres, quer em termos linguísticos ou na forma como falamos sobre eles, vai contra toda a base deste processo."
A utilização de pronomes masculinos nas declarações sobre mulheres transgénero gerou controvérsia e críticas por parte de associações de direitos de pessoas LGBTQ+.
O processo movido por Kesha Williams começou como uma forma de protesto contra a violência a que estava sujeita na prisão de Virgínia, mas visa agora muito mais do que resultados individuais.
O objetivo da ação judicial, ainda a decorrer, não pretende isentá-la da pena. "Fiz o que fiz e vou para a prisão", desvaloriza Kesha, que terá ajudado um namorado a traficar droga. A verdadeira luta, sublinha, é muito mais vasta. “[As prisões] têm de mudar todo o seu sistema. Têm de perceber que estamos num tempo diferente.”
Independentemente da decisão do tribunal, um dos objetivos de Kesha já foi atingido: a discussão global e incontornável dos direitos das mulheres e das pessoas transgénero.