Sob intensa pressão e especulações do Partido Republicano de que Kamala Harris estaria a esquivar-se de longas conversas com jornalistas para evitar desgastar-se politicamente, a CNN americana exibiu, na última quinta-feira (29), uma conversa com Harris ao lado do seu vice, Tim Walz. O principal ponto positivo da entrevista? Ela neutraliza qualquer argumento de Trump de que Harris tem fugido da imprensa.
A entrevista dificilmente trará benefícios imediatos à campanha democrata, já que não apresentou nada de novo, exceto pelo incómodo, mas eleitoralmente estratégico detalhe de que Kamala Harris apoia o fracking, uma técnica altamente controversa, mas crucial para a economia da Pensilvânia, um estado crucial na eleição.
As propostas económicas foram abordadas de maneira simplificada, sem qualquer aprofundamento. Entre as principais, destacou-se a construção de 3 milhões de novas casas como solução para a crise habitacional, com a oferta de um subsídio de 25 mil dólares para compradores de primeira casa. Além disso, foi mencionada a expansão do crédito fiscal infantil, que aumentaria o desconto nos impostos de 2 mil para 6 mil dólares por criança por ano, com o objetivo de aliviar a carga financeira das famílias com crianças pequenas.
Não seria prudente usar um tempo tão valioso num veículo de grande alcance como a CNN americana para entrar em detalhes excessivamente técnicos sobre políticas públicas, que poderiam ultrapassar a compreensão do eleitor médio. No entanto, subestimar a inteligência do cidadão é um erro ainda maior. Harris poderia, ao menos, ter subtilmente apresentado dados novos para responder a algumas das perguntas legítimas que surgem entre eleitores e a imprensa. Por exemplo, ao falar do seu plano de habitação, poderia ter explicado porque é que a sua proposta não aumentará o preço das casas, mesmo com a procura a exceder a oferta. Quanto aos descontos fiscais, Harris poderia ter assegurado que a implementação do plano seria feita de forma a evitar problemas financeiros futuros para o governo. Poderia ter garantido que não haveria cortes noutros serviços ou aumento de impostos a longo prazo, apesar da redução na arrecadação. Uma sinalização de responsabilidade fiscal teria sido uma jogada estratégica, acalmando o mercado e atenuando as críticas de que as suas propostas são meramente populismo económico.
Talvez o maior incómodo tenha sido a falta de novidades além do que já foi visto na Convenção Democrata. Harris defendeu-se das acusações de não ter resolvido o problema da imigração durante o governo Biden, atribuindo a culpa, de forma justa, à sabotagem de Donald Trump ao acordo bipartidário sobre o tema. No entanto, mesmo em relação a esse assunto, que é crucial para o eleitorado americano, Harris não trouxe nada de novo. Limitou-se a afirmar que irá ressuscitar o acordo, sem oferecer detalhes. Se não funcionou antes, o que faz pensar que resultará agora? Afinal, repetir promessas não transforma fracassos passados em sucessos futuros.
Kamala Harris continuou a evitar a pauta racial. Quando a jornalista Dana Bash a questionou sobre as acusações de Trump de que ela "não seria negra", Harris respondeu: "o mesmo velho guião cansativo de sempre. Próxima pergunta." Embora essa resposta esteja alinhada com a sua estratégia de se distanciar do identitarismo, expõe um problema maior. Harris precisa do apoio do eleitorado negro, que é diverso e está longe de ser homogéneo. No entanto, a sua postura parece ignorar essa complexidade.
Harris ainda é vista por muitos como parte de uma elite californiana distante, desconectada das lutas quotidianas da classe trabalhadora negra, que compõe a maioria desse eleitorado. Embora a sua candidatura represente um avanço em termos de representatividade, a falta de conexão com as preocupações reais dessa base pode sair caro. Ao esquivar-se de questões raciais e evitar comprometer-se com as preocupações legítimas da classe trabalhadora negra, Harris corre o risco de alienar exactamente o grupo que mais precisa de um motivo para votar nela. Em vez de fortalecer a sua posição, essa abordagem fria e calculista pode apenas aumentar a distância entre ela e um eleitorado que não vê as suas necessidades reflectidas na sua campanha.
Em relação à política externa, Harris soube capitalizar o legado de Biden ao destacar o fortalecimento da NATO, mas ao reafirmar a continuidade da política de envio de armamentos a Israel — algo já declarado no seu discurso na convenção democrata — sem aumentar a pressão sobre Israel para que respeite os direitos humanos ou o direito internacional humanitário, ela escancarou a sua indiferença ao eleitorado que se preocupa com a causa palestiniana. Isso não apenas frustra a ala democrata que exige uma postura mais firme, mas também aliena a numerosa população de americanos árabes em Michigan, o maior estado em termos de eleitores árabes-americanos. Num estado crucial para a eleição, onde mais de 100.000 democratas votaram como "uncommitted" nas primárias há seis meses em protesto contra a política de Biden sobre Israel, a falta de sensibilidade de Harris pode sair caro.
Por fim, além de não ter oferecido qualquer complemento às suas propostas económicas, nem se dado ao trabalho de justificá-las ou defendê-las, Harris também não demonstrou disposição em se aproximar de grupos minoritários cruciais para a sua eleição, como negros e árabes-americanos. Para agravar ainda mais, ela acabou por sacrificar um dos que poderia ter sido um dos seus maiores trunfos eleitorais após as convenções do partido: o seu vice, Tim Walz.
Walz, que durante a convenção reforçou não apenas o conceito de família e boa vizinhança, mas também se posicionou como uma ponte entre Harris e a classe trabalhadora — um grupo que tem cada vez mais se sentido atraído pelos oponentes republicanos — acabou por ser reduzido a um bode expiatório na entrevista. Quando algumas das suas inconsistências biográficas foram questionadas, como a alegação de 2018 de que ele teria portado armas de guerra "em guerra" apesar de nunca ter sido enviado a uma zona de combate, Walz desviou a atenção de questões que poderiam ter sido muito mais prejudiciais para Harris, caso ela estivesse sozinha na entrevista. Entre essas questões, estão algumas das suas próprias controvérsias do passado no judiciário, como a falta de abertura de uma investigação independente num escândalo em Oakland envolvendo polícias acusados de exploração sexual de uma menor, ou quando o seu escritório tentou impedir que Daniel Larsen, condenado em 1999 por posse de uma faca, recebesse indemnização por condenação injusta. A entrevista de Kamala Harris na CNN tinha tudo para ser uma oportunidade de ouro para fortalecer a sua campanha e conquistar eleitores indecisos, mas o que se viu foi um desfile de fragilidades e evasões. Embora tenha conseguido neutralizar as acusações de que estava a fugir da imprensa, a conversa foi marcada pela falta de substância e de novidades, deixando passar a chance de conectar-se verdadeiramente com eleitores chave.
Ao evitar temas cruciais e recusar-se a abordar de maneira incisiva as preocupações dos eleitores, desde a economia até a política externa e as questões raciais, Harris seguiu um caminho morno e evasivo, arriscando alienar grupos minoritários cruciais e, talvez, mais preocupante, sacrificando o potencial do seu vice, Tim Walz, como uma ponte para a classe trabalhadora, transformando-o em nada mais que um escudo para evitar críticas mais duras. Em vez de aproveitar a oportunidade para fortalecer a sua posição e demonstrar que está preparada para os desafios que o país atravessa, Harris pode ter perdido a chance de se conectar com os eleitores, levantando novas dúvidas sobre a sua capacidade de liderar em tempos tão críticos. Se ela deseja realmente conquistar a confiança do eleitorado, precisará de ir além de respostas seguras e mostrar que pode lidar com as questões complexas que os americanos esperam que os seus líderes abordem com coragem e clareza.