A equipa da atual vice-presidente está a tentar reverter uma regra que vem do último debate entre Joe Biden e Donald Trump - debate esse que correu tão bem a Trump que Biden saiu da corrida presidencial
Porque é que Harris quer acabar com o botão que interrompe Trump a falar nos debates
por Stephen Collinson, CNN
A frase mais contundente de Kamala Harris num debate que, de outra forma, não seria memorável com o então vice-presidente Mike Pence em 2020 explica perfeitamente a última reviravolta no seu confronto com Donald Trump.
A maioria dos democratas já ouviu mais do que suficientemente o candidato republicano. Mas Harris quer deixá-lo ter a oportunidade de dizer exatamente o que quer, quando quer, no seu debate agendado para 10 de setembro na ABC News.
A equipa da vice-presidente está a tentar reverter uma regra que a equipa do presidente Joe Biden garantiu para o seu fatídico debate com Trump em junho deste ano, que assegurava que os microfones de um candidato eram silenciados quando não era a sua vez de falar. A restrição foi vista como uma tentativa de evitar a repetição das constantes interrupções de Trump nos seus debates em 2020, o que levou Biden a avisar a certa altura: "Podes calar-te, homem?".
É óbvio que a campanha de Harris espera dar a Trump a oportunidade de se sabotar a si próprio com uma interrupção insultuosa ou com a sua personalidade prepotente.
A equipa de Trump está a reagir, embora o ex-presidente tenha, esta segunda-feira, minado a posição da sua própria equipa, dizendo que ficaria muito feliz por perder o botão de silêncio.
Esta discussão sublinha a enorme importância potencial do confronto na definição da narrativa para o resto da campanha, na sequência do debate presidencial mais importante de sempre - na CNN, no final de junho - que eliminou Biden da corrida.
É especialmente importante para Trump, que tem tido dificuldade em adaptar-se à sua nova adversária desde a retirada de Biden - que os republicanos estavam confiantes em derrotar em novembro. O debate que aí vem pode ser a melhor oportunidade de Trump para travar o ímpeto de Harris após a convenção democrata de Chicago, especialmente porque ele e a sua campanha acreditam que Harris não está preparada para a pressão de responder a questões políticas e a perguntas de de um adversário tão feroz como Trump.
"Trump precisa de debater. Harris precisa de debater", diz o analista político da CNN Scott Jennings, um republicano. "Ambos têm algo a provar."
As discussões amargas desta segunda-feira entre as campanhas foram mais um sinal de como Harris transformou a campanha. A sua equipa está a aproveitar cada vez mais a oportunidade de trollar Trump - o derradeiro troll político. Por exemplo, lançou um vídeo na Internet com imagens do ex-Presidente e o som de uma galinha a cacarejar, sugerindo que ele podia desistir do debate. E os assessores de Harris sugeriram que os "manipuladores" de Trump não se tinham atrevido a levantar a questão do microfone junto do seu chefe.
Um microfone aberto pode expor as dificuldades de Trump
Um microfone aberto pode pôr à prova a autodisciplina do candidato republicano num debate com Harris, numa altura em que os estrategas do Partido Republicano lhe pedem que se foque na política e deixe de fazer política de boca aberta.
As imagens de Trump a falar por cima e a desrespeitar abertamente a mulher que tem a oportunidade de ser a primeira mulher negra a ser presidente falariam por si. Harris teria também a oportunidade de demonstrar a sua força ao enfrentar Trump, repetindo a sua famosa resposta no debate com Pence. Os ataques histriónicos de Trump, que podem parecer sexistas ou ter conotações raciais, podem alienar os eleitores do sexo feminino, das minorias e dos subúrbios, que podem ser vitais nos estados decisivos em novembro.
As imagens de Trump a comportar-se de forma desagradável contribuiriam para o conceito mais alargado da campanha de Harris, que ela acentuou durante a convenção democrata na semana passada - nomeadamente que os americanos têm uma "oportunidade para ultrapassar a amargura, o cinismo e as batalhas divisivas do passado".
“A vice-presidente quer que o povo americano veja um Donald Trump sem restrições, porque é isso que vamos ter se ele voltar a ser presidente", diz o porta-voz da campanha de Harris, Ian Sams, a Alex Marquardt, da CNN. "Penso que é importante que nesta eleição e neste momento o povo americano possa ver no palco os dois candidatos."
Desafiar Trump com um microfone aberto não seria isento de riscos para o vice-presidente. Em 2016, o ex-presidente falou repetidamente sobre a candidata democrata Hillary Clinton e interrompeu o fluxo das suas respostas. Apesar de, na altura, ter parecido pouco lisonjeiro para o candidato republicano, este acabou por ganhar as eleições.
Maria Cardona, comentadora política da CNN, sugere outra razão para Harris querer um microfone aberto. "O facto de os microfones não serem silenciados dar-lhe-á a possibilidade de controlar tanto o que diz (...) como verificar os factos no local", afirma a democrata Maria Cardona.
O grande momento viral de Harris em 2020
No seu debate com Pence - realizado atrás de ecrãs durante a pandemia de covid-19 -, Harris frustrou uma tentativa de a interromper numa troca de palavras sobre a pandemia, levantando a mão e dizendo "sr. vice-presidente, estou a falar... estou a falar".
O comentário, que parecia um momento preparado que os candidatos praticam em debates simulados, deixou a impressão de que Pence estava a fazer queixinhas a Harris. O vai-e-vem teve uma ressonância extra devido às raças e géneros dos rivais. A então senadora da Califórnia gostou tanto da frase que a repetiu mais tarde no debate, antes de dizer a Pence: "Se não se importa de me deixar acabar, podemos então ter uma conversa".
Na altura, a frase de Harris tornou-se viral, dando origem a memes nas redes sociais e a artigos de recordação, incluindo canecas, t-shirts e camisolas que ajudaram a construir a personalidade da vice-presidente.
A equipa do candidato Trump preferia que os microfones fossem silenciados durante o debate, de acordo com uma fonte familiarizada com o assunto. O conselheiro sénior de Trump, Jason Miller, diz num comunicado que o ex-presidente aceitou o debate da ABC nos mesmos termos que o da CNN com Biden. E sugeriu que a mudança de abordagem por parte de Harris sugeria que a sua preparação para o debate estava com problemas. "Até o seu próprio porta-voz de campanha disse que o debate sobre os debates tinha acabado. É evidente que estão a ver algo que não lhes agrada", refere Miller.
Mas, como acontece frequentemente, o antigo presidente pareceu desvalorizar a posição da sua própria equipa. "Para mim, é indiferente, mas o acordo era que tudo fosse igual à última vez", disse Trump numa paragem de campanha na Virgínia. "Nesse último caso fui silenciado. Não gostei da última vez, mas correu tudo bem."
E Trump acrescentou: "Concordámos com as mesmas regras. As mesmas regras, as mesmas especificações.E penso que é provavelmente assim que deve ser".
A equipa de Harris ripostou, com Sam a dizer na CNN que o ex-presidente tinha resolvido a questão a favor dos microfones abertos: "Ouvimos isso da boca do próprio".