Longe de ser uma grande oradora, Harris falou da "viagem improvável" da mãe e foi direta ao assunto em matérias como a economia, a segurança nacional e o aborto. Ao longe, um espectador muito atento foi reagindo ao discurso nas redes sociais
Não foi um discurso particularmente brilhante, mas a mensagem foi passada de forma clara. Kamala Harris é a candidata dos Democratas à Casa Branca e está determinada em derrotar Donald Trump, que considera ser um homem “pouco sério”, mas cuja reeleição, diz, vai trazer “sérias consequências”.
“Não considerem apenas o caos e a calamidade quando ele esteve em funções. Donald Trump tentou deitar fora os vossos votos e falhou. (...) Quando os políticos do seu próprio partido lhe imploraram para dispersar a multidão e enviar ajuda, ele fez o contrário. Ele atiçou as chamas”, atirou Harris, numa referência a tentativa de invasão do Capitólio, a 6 de janeiro de 2021.
“Pensem no que ele tenciona fazer se lhe dermos novamente o poder. Pensem no poder que ele terá, especialmente depois de o Supremo Tribunal dos Estados Unidos ter acabado de decidir que ele seria imune a ações penais. Imaginem Donald Trump sem barreiras e como utilizaria os imensos poderes da presidência dos Estados Unidos, não para melhorar a vossa vida, não para reforçar a nossa segurança nacional, mas para servir o único cliente que alguma vez teve: ele próprio”, explicou a vice-presidente dos EUA.
Harris lembrou também os inúmeros embates de Trump com a justiça americana, incluindo a 34 acusações no caso Stormy Daniels e o processo civil movido pela escritora E. Jean Carroll, pelo qual o magnata foi considerado responsável por abuso sexual.
Em nome do povo
A democrata aceitou a nomeação como candidata do partido à presidência dos EUA. Fê-lo, afirma, “em nome do povo”.
“Durante toda a minha carreira, só tive um cliente: o povo. Por isso, em nome do povo, em nome de todos os americanos, independentemente do partido, da raça, do género ou da língua que a vossa avó fala; em nome da minha mãe e de todos os que já iniciaram a sua própria viagem improvável; em nome de americanos como as pessoas com quem cresci, pessoas que trabalham arduamente, perseguem os seus sonhos e cuidam uns dos outros; em nome de todos aqueles cuja história só poderia ser escrita na maior nação do mundo. Aceito a vossa nomeação para Presidente dos Estados Unidos da América”, afirmou Harris.
Foi com essa “viagem improvável” que candidata de 60 anos começou o seu discurso. Harris contou a história da mãe, Shamala Harris, que com 19 anos “atravessou o mundo, da Índia para a Califórnia, com o sonho inabalável de ser a cientista que curaria o cancro da mama”.
“Quando acabasse a faculdade, deveria voltar a casa e casar-se num típico casamento arranjado, mas conheceu o meu pai, Donald Harris, um estudante natural da Jamaica”, contou a candidata. “Apaixonaram-se, casaram-se e aquele ato de autodeterminação fez a minha irmã Maya e eu”.
Harris contou também a história de Wanda, a sua melhor amiga no secundário, que foi violada pelo padrasto e, posteriormente, acolhida pela família Harris durante um tempo. “Esta é uma das razões pelas quais me tornei procuradora, para proteger pessoas como a Wanda, porque acredito que toda a gente tem direito à segurança, à dignidade e à justiça”.
Como procuradora-geral do estado da Califórnia, diz a candidata, enfrentou “os grandes bancos” e “entregou 20 mil milhões de dólares a famílias da classe média que enfrentavam a execução de hipotecas”, tal como “defendeu os idosos” da violência doméstica e “confrontou os cartéis que traficavam armas, droga e pessoas”.
Economia, Israel e o aborto. Sempre o aborto
Tal como seria de esperar, a questão dos direitos reprodutivos, em particular do aborto, foi um dos temas centrais do discurso de Harris, que procurou colar Trump à decisão do Supremo Tribunal, que revogou o Roe vs Wade em 2022.
“Esta noite, na América, demasiadas mulheres não são capazes de tomar decisões sobre as próprias vidas. E vamos ser claros sobre como chegámos aqui. Donald Trump escolheu a dedo os membros do Supremo Tribunal dos Estados Unidos para acabar com a liberdade reprodutiva. E agora gaba-se disso”. Harris disse que viajou pelo país e ouviu histórias de médicos “com medo de irem para a cadeia por cuidarem dos seus pacientes. Casais que apenas tentam aumentar as suas famílias, cortados a meio de um tratamento de fertilização in vitro. Crianças que sobreviveram a agressões sexuais, potencialmente forçadas a levar uma gravidez até ao fim”.
“Isto é o que está a acontecer no nosso país por causa de Donald Trump. E, como sabem, ele ainda não acabou. Como parte da sua agenda, ele e os seus aliados vão limitar o acesso ao controlo da natalidade, ao aborto medicamentoso e decretar a proibição do aborto a nível nacional, com ou sem o Congresso. Simplificando: eles estão loucos”, considerou.
No capítulo económico, a candidata democrata acusou Trump de querer criar um imposto – que denominou “Imposto Trump” – que vai “aumentar os custos para as famílias da classe média em quase 4 mil dólares por ano”.
“Bem, em vez de um aumento de impostos de Trump, vamos aprovar uma redução de impostos para a classe média que beneficiará mais de 100 milhões de americanos”, afirmou. “Quer vivam numa zona rural, numa pequena cidade ou numa grande cidade, como presidente reunirei os trabalhadores, os proprietários de pequenas empresas, os empresários e as empresas americanas para criar emprego, fazer crescer a nossa economia e baixar o custo das necessidades quotidianas, como os cuidados de saúde, a habitação e as compras”.
O tema da segurança nacional e dos aliados dos Estados Unidos não poderia ter faltado, e Kamala Harris prometeu, “como comandante suprema das Forças Armadas", que a América terá sempre "a força de combate mais forte e mais letal do mundo.” Num tom quase de falcão de guerra, a democrata garantiu que “nunca hesitará em tomar todas as medidas necessárias para defender as nossas forças e os nossos interesses contra o Irão e os terroristas apoiados pelo Irão”, e referiu que nunca irá “aconchegar-se a tiranos e ditadores como Kim Jong-un, que estão a torcer por Trump porque sabem que ele é fácil de manipular."
A posição de Harris sobre a guerra no Médio Oriente foi das mais celebradas da noite. Apesar de enfatizar o direito de Israel à autodefesa, a vice-presidente voltou a pedir um acordo de cessar-fogo e de libertação dos reféns do Hamas, e apelou a que os palestinianos possam “concretizar o seu direito à dignidade, à segurança, à liberdade e à autodeterminação”, frase que arrancou os maiores aplausos durante todo o discurso.
Harris concluiu o seu discurso, de apenas 37 minutos, ao sublinhar que os EUA são a “maior democracia na história do mundo". “Em nome dos nossos filhos e netos, e de todos aqueles que se sacrificaram tão caro pela nossa liberdade, temos de ser dignos deste momento. Temos muito mais em comum do que aquilo que nos separa. A união faz a força”.
Trump estava atento
Um dos espectadores do debate foi Donald Trump, que foi reagindo em direto na sua conta na rede social Truth Social. “ELA ESTÁ A FALAR DE MIM?”, questionou o republicano numa das dezenas de publicações que fez durante o debate, que abordaram todos os assuntos mencionados por Harris.
“Walz foi treinador-ADJUNTO, não TREINADOR”, escreveu também Trump, quando a candidata democrata se referiu a Tim Walz e ao seu passado como treinador de futebol americano. Trump guardou também uma boca para Joe Biden e questionou “ONDE É QUE ESTÁ O HUNTER?”, um dos filhos do presidente dos EUA.
O que dizem as sondagens?
A maioria das sondagens dá vantagem a Kamala Harris no confronto direto com Donald Trump. A mais recente pesquisa da Reuters e Ipsos, publicada a 7 de agosto, dá uma vantagem de cinco pontos percentuais à atual vice-presidente (42% contra 37%)
A última sondagem publicada nos meios de comunicação social americanos, da CBS News, dá, por sua vez, uma diferença de três pontos percentuais, também com vantagem para Kamala Harris (51% contra 48%).