Sabia que Kamala não é Trump? A candidata "só" disse isso e assim não chegou onde queria

23 ago, 18:00
Kamala Harris (AP Photo)

"Agarrou muita coisa" e conseguiu passar uma ideia forte, mas a candidata democrata também cometeu "um grande erro"

Sedimentou as bases do partido e conquistou “quem odeia visceralmente Donald Trump”, mas cometeu “um grande erro”. Kamala Harris subiu na noite de quinta-feira ao palco da Convenção Nacional Democrata e falou, mas não para todos.

Foi um discurso onde, como diz a especialista em Relações Internacionais Joana Ricarte, a candidata de 60 anos “agarrou muita coisa” e onde passou uma ideia forte: "A noção de união e do povo”, criando algo que já pode ser visto como um mote de campanha - “Kamala Harris for the people” [Kamala Harris para o povo, na tradução].

“Durante toda a minha carreira, só tive um cliente: o povo. Por isso, em nome do povo, em nome de todos os americanos, independentemente do partido, da raça, do género ou da língua que a vossa avó fala; em nome da minha mãe e de todos os que já iniciaram a sua própria viagem improvável; em nome de americanos como as pessoas com quem cresci, pessoas que trabalham arduamente, perseguem os seus sonhos e cuidam uns dos outros; em nome de todos aqueles cuja história só poderia ser escrita na maior nação do mundo. Aceito a vossa nomeação para Presidente dos Estados Unidos da América”, disse Kamala Harris, aceitando a nomeação como candidata do partido à presidência norte-americana.

O próprio partido, o adversário e o centro

Num discurso virado para dentro, Kamala Harris "sedimentou as bases do partido", admite Tiago André Lopes, comentador da CNN Portugal. A candidata já contava com os votos do Partido Democrata e assim se mantém.

A par dos que já tinha do seu lado, com o discurso na Convenção Nacional Democrata, a candidata à Casa Branca conseguiu também assegurar os votos do "eleitorado hiper descontente com Donald Trump". "Quem odeia visceralmente Donald Trump vai votar Kamala Harris”, afirma Tiago André Lopes.

Joana Ricarte, especialista em Relações Internacionais é da mesma opinião e lembra a presença de alguns "republicanos insatisfeitos" no encontro do Partido Democrata. “Apareceram alguns que não estão em linha com a política de polarização de Trump e que foram apoiar a Convenção Democrata”, lembra. Exemplo disso foi a presença e os discursos dos republicanos John Giles, autarca de Mesa, no Arizona, e Geoff Duncan, antigo vice-governador da Georgia, na Convenção Nacional Democrata, que se opuseram a Donald Trump e manifestaram apoio a Kamala Harris.

Não foi só dentro e fora do partido que a vice-presidente dos EUA conseguiu ir buscar votos. Para Joana Ricarte, Kamala Harris foi também “eficiente em ir buscar o voto do centro político”, onde as pessoas “procuram uma política mais equilibrada”. “É um grupo considerável de pessoas que oscilam nos partidos de centro, como o PS e o PSD em Portugal - se bem que o partido republicano se afastou muito do centro político com Trump e ela consegue ir buscar”, explica.

A candidata do Partido Democrata ganhou ainda, de acordo Joana Ricarte, os votos das mulheres e das minorias. Os direitos reprodutivos, sobretudo o aborto, têm sido um tema central nos discursos de Kamala Harris e na noite de quinta-feira não foi exceção. “Isto é o que está a acontecer no nosso país por causa de Donald Trump. E, como sabem, ele ainda não acabou. Como parte da sua agenda, ele e os seus aliados vão limitar o acesso ao controlo da natalidade, ao aborto medicamentoso e decretar a proibição do aborto a nível nacional, com ou sem o Congresso. Simplificando: eles estão loucos”, disse, atacando o adversário.

Os progressistas e os jovens

Kamala Harris conseguiu manter os votos do Partido Democrata - mas não de todos. A candidata “não foi eficaz” a falar para “uma dimensão mais progressista do partido democrata”, avisa Joana Ricarte.

“Kamala não conseguiu chegar lá”, observa. Tal deve-se, conforme explica, à forma como abordou a guerra na Faixa de Gaza e o apoio a Telavive, que “deixa claro que não vai quebrar com a tradição diplomática dos EUA com Israel e que vai garantir direitos e meios de defesa”.

“Kamala traz o tema de forma opaca. Diz ‘what has happened in Gaza’ [o que acontece em Gaza, na tradução] quase como se fosse um fenómeno meteorológico”, aponta a especialista em Relações Internacionais, que considera que a vice-presidente dos EUA “não atribui responsabilidades” e que trata o conflito no Médio Oriente “como um acontecimento” - em vez de “algo violento e desproporcional”.

Apesar de ter defendido a solução dos dois Estados, a candidata mostra “apenas continuidade” face ao que tem vindo a ser feito pelo partido até então. O apoio desta solução pelos democratas já "é tradicional", lembra Joana Ricarte. Já Tiago André Lopes considera que Kamala Harris foi “muito pouco clara na questão palestiniana”, remetendo-a “para um plano terciário”. “É uma dificuldade de Kamala”, reconhece.

Para além disso, de acordo com Joana Ricarte, a vice-presidente dos EUA “também não ganha o eleitorado muçulmano”. Este era “relevante” em Estados como o Michigan, que “pode ser determinante”. Kamala Harris pode também ter perdido, segundo Tiago André Lopes, “parte do eleitorado jovem”. “Está mapeado que a parte ecológica interessa às camadas jovens e Kamala perdeu uma oportunidade de agarrar o assunto”, constata o comentador da CNN, afirmando que “quem vai capitalizar é Jill Stein”, também candidata à presidência norte-americana.

E os indecisos?

Ganhou votos de um lado, perdeu votos do outro. Mas uma coisa parece certa para os comentadores da CNN Portugal: Kamala Harris não conseguiu falar e convencer os indecisos.

Num texto de opinião para a CNN Portugal, Uriã Fancelli garante que o “grande erro” de Kamala Harris foi “direcionar o seu discurso quase exclusivamente à própria base eleitoral” e ignorar “os indecisos que ainda poderiam ser conquistados”. E até, acrescenta o especialista em assuntos latino-americanos, o adversário Donald Trump o fez durante o seu discurso na Convenção Republicana a 19 de julho.

A candadita “tentou”, garante Tiago André Lopes, “mas a grande dificuldade de Kamala é que não há uma mensagem clara que sai do discurso”. O comentador da CNN Portugal afirma que a vice-presidente dos EUA “não conseguiu escolher uma linha de ação política que fosse muito clara”. “O discurso dela traz uma visão, um caminho para onde quer ir, mas não traz nada de concreto sobre como vai executa, sobre como chegar lá. Não trouxe ainda um programa de Governo, trouxe só uma visão”, concorda Joana Ricarte. 

Kamala Harris quer cortar impostos à classe média, mas não diz onde vai tirar. Fala em criar habitação acessível, mas não diz como chegar lá. “Só diz que ela não é Trump, já sabíamos. Do lado de Trump sabemos que há duas linhas: imigração e economia. Com Kamala ficamos com essa dificuldade. Nos primeiros 50 dias vai focar-se em que? Não sabemos”, questiona Tiago André Lopes.

Era esperado que a candidata trouxesse novidades à Convenção Nacional Democrata, mas não o fez. “Por isso não chegou aos indecisos - o que não quer dizer que os tenha perdido, mas também não conquistou”, garante a especialista em Relações Internacionais.

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