O grande erro de Harris foi direcionar o seu discurso quase exclusivamente à própria base eleitoral, ignorando os indecisos que ainda poderiam ser conquistados. Até Donald Trump, durante o seu discurso na Convenção Republicana a 19 de Julho, procurou alcançar esse eleitorado indeciso
Kamala Harris entrou em palco a ser ovacionada, com o sorriso habitual e a simpatia que se espera de alguém na sua posição. Ela começou por agradecer ao marido por ser um pai incrível e desejando-lhe um feliz aniversário de casamento, um gesto calculado como parte de uma estratégia recente para reforçar a imagem de uma "Kamala família." Isto visa neutralizar as críticas dos republicanos sobre o facto de ela não ter filhos biológicos. Os seus enteados e a sua irmã também fizeram aparições públicas, tudo para sustentar a narrativa de que a “Mamala” – apelido carinhosamente dado pelos filhos do seu marido – não é apenas uma construção política, mas uma realidade genuína.
Harris mencionou Joe Biden, agradecendo-lhe e destacando o seu historial e carácter inspiradores. Foi uma demonstração de gratidão e amizade cuidadosamente equilibrada, permitindo-lhe associar-se ao governo Biden sem se deixar absorver pela impopularidade do Presidente. Este distanciamento estratégico dá-lhe a margem necessária para defender a sua própria autonomia política.
Kamala fez questão de agradecer ao seu candidato a vice, chamando-o “treinador Tim Walz” e afirmando: “Vais ser um vice-presidente incrível.” Usar o título de treinador foi uma jogada astuta, uma forma de evocar o passado de Walz como homem comum, professor e treinador, e, ao mesmo tempo, reforçar uma imagem de proximidade com o eleitorado. Um toque calculado para fortalecer o vínculo com quem ainda acredita na política do quotidiano.
De seguida, Harris agradeceu às demais pessoas e começou a partilhar um pouco da sua própria trajetória. Ela relembrou que é filha de uma imigrante indiana que se formou médica e sonhava encontrar a cura para o cancro. Este relato, repetido noutras ocasiões, tem o claro objetivo de destacar os valores idealistas que a sua mãe lhe transmitiu, reforçando a imagem de "família" que Kamala procura projetar. Ao trazer a mãe para o centro do discurso, Kamala alinha-se a outras figuras que também exaltaram a importância das mães ao longo da semana, como Barack e Michelle Obama, além de Hillary Clinton.
Kamala tentou reviver a analogia que Tim Walz usou na noite anterior, falando sobre a sua infância num bairro amigável e empático. Isto, claro, foi uma tentativa óbvia de mostrar que ela e o seu vice estão em perfeita sintonia, projetando uma imagem de coesão na chapa. A analogia é uma tentativa de evocar nostalgia e levar os americanos de volta aos "bons velhos tempos" – uma tática que Donald Trump também usa, mas com muito mais astúcia. Enquanto Kamala tenta vender uma versão açucarada de um passado onde todos se cuidavam, Trump vai direto ao medo, afirmando que quer voltar a uma época em que, segundo ele, as pessoas não eram mortas e violadas por imigrantes ilegais, pois não havia criminalidade. Embora esta afirmação de Trump seja totalmente sem fundamento, ela acaba por ser muito mais apelativa ao eleitor do que a versão colorida e inofensiva que Kamala tenta vender.
Então, eis que surge a Kamala Harris justiceira. Não bastava dizer que foi procuradora; ela teve de nos levar de volta à infância, alegando que o seu desejo de lutar pela justiça nasceu quando uma amiga lhe confidenciou que sofria abuso sexual do padrasto. Este evento, segundo ela, foi o que a impulsionou a tornar-se advogada e, mais tarde, procuradora, com a missão de garantir justiça e segurança para todos. Por mais que a história possa ser verdadeira – e não estou aqui para duvidar – a forma como foi introduzida no discurso presidencial soou incrivelmente pretensiosa, quase como se a sua carreira não fosse uma escolha, mas um destino profético.
De seguida, Harris não perdeu tempo em exaltar o seu próprio altruísmo, lembrando que, como procuradora, sempre trabalhou em nome das pessoas, apresentando-se aos juízes como “Kamala Harris pelo povo, em nome do povo,” em nome dos americanos, acima de tudo. Embora seja fácil compreender a importância do storytelling no jogo eleitoral, o problema foi a falta de novidade. Ela apenas reciclou informações já conhecidas, envoltas numa camada extra de enfeite, o que deu ao discurso um tom messiânico e cliché que, no final das contas, falhou em entusiasmar.
Então, chegou a hora de aceitar a nomeação. Kamala declarou que esta eleição é a oportunidade de o país finalmente deixar para trás o cinismo e a divisão, numa tentativa de enterrar Donald Trump no passado. Nessa parte do discurso, Kamala tentou falar a todos, de todos os partidos, prometendo ser a presidente de cada norte-americano, independentemente das suas afiliações. Com ares de grande unificadora, garantiu que protegerá e respeitará todos os princípios americanos, inclusive a transferência pacífica de poder – uma farpa direta a Trump, lembrando ao país que ele incitou a invasão ao Capitólio e um golpe de Estado.
Kamala declarou que será uma presidente que une, que é realista, prática, e, acima de tudo, dotada de bom senso. Foi uma forma subtil, mas certeira, de criticar Donald Trump sem o citar diretamente – afinal, todos no ginásio United Center, em Chicago, entenderam perfeitamente que estas não são qualidades que alguém associaria ao seu oponente.
Harris então enfatizou a importância crítica destas eleições, alertando que, se Trump fosse reeleito, as consequências seriam devastadoras. A partir desse ponto, ficou claro que, independentemente do tema abordado, Harris esforçar-se-ia por vinculá-lo a Trump, desviando equivocadamente os holofotes de si mesma e direcionando-os ao seu oponente, diluindo assim a força da sua própria mensagem.
De facto, a mensagem de Harris é direta e deve ser levada ao eleitorado norte-americano: a reeleição de Donald Trump significaria legitimar todos os seus atos na presidência e abrir caminho para um governo futuro com tendências autoritárias. Harris acertou em cheio ao desafiar o público, perguntando o que Trump faria se os americanos lhe conferissem poder novamente.
O grande erro de Harris foi direcionar o seu discurso quase exclusivamente à própria base eleitoral, ignorando os indecisos que ainda poderiam ser conquistados. Até Donald Trump, durante o seu discurso na Convenção Republicana a 19 de Julho, procurou alcançar esse eleitorado indeciso. Trump, que seis dias antes havia sofrido uma tentativa de assassinato, ajustou o seu discurso para focar na união, adotando inicialmente uma linguagem que flertava com o vitimismo. Embora essa fachada de conciliador tenha desmoronado após 30 minutos, dando lugar ao Trump de sempre, pelo menos ele fez o esforço de aparecer como uma figura de união, mesmo que brevemente.
Após gastar um bom tempo a falar sobre Trump, Harris finalmente voltou-se para uma importante demanda da sociedade norte-americana: o fortalecimento da classe média, da qual ela mesma afirma ter vindo. Prometeu criar uma economia de oportunidades, onde todos teriam oportunidade de competir e prosperar. Garantiu que vai gerar empregos, reduzir os custos dos alimentos e resolver a crise habitacional. No entanto, tratou toda a questão económica de maneira superficial, jogando um punhado de promessas políticas num combo genérico, sem se dar ao trabalho de explicar minimamente como pretende realizar qualquer uma delas.
E o que Harris fez a seguir? Voltou a falar de Donald Trump, afirmando que ele aumentará os impostos para a classe média. Embora a ideia de contrastar as suas bandeiras eleitorais com as do republicano tenha algum mérito, a execução foi um desastre. Harris trouxe Trump à tona repetidamente, num discurso que deveria ter sido o seu momento de brilhar e apresentar as suas próprias propostas, mas acabou ofuscado pela sombra do seu oponente.
Harris abordou o tema do aborto, mas até nesse ponto não conseguiu resistir a trazer Trump de volta à conversa, acusando-o e aos seus aliados de não confiarem nas mulheres para decidirem sobre os seus próprios corpos. Mais uma oportunidade desperdiçada. Kamala não tocou em questões essenciais, como o impacto na saúde pública — algo que muitos democratas destacam ao argumentar que restringir o acesso ao aborto não diminui a procura, mas empurra as mulheres para procedimentos inseguros, colocando as suas vidas em risco. Ela também ignorou a dimensão da justiça social, onde as restrições ao aborto afectam desproporcionalmente mulheres de baixos rendimentos e minorias. Uma das pautas eleitorais mais contundentes foi atirada para fora sem cerimónia.
De seguida, Kamala Harris, com precisão, relembrou a sabotagem de Donald Trump ao projecto legislativo bipartidário que tinha como foco a questão da imigração nos Estados Unidos. Embora não tenha apresentado nada de novo, uma coisa é inegável: a imigração ilegal é um dos temas mais inflamados das eleições, seja nos Estados Unidos ou na Europa. Harris sabia que precisava ressuscitar esse assunto para se blindar das críticas sobre a sua incapacidade de entregar resultados numa área que, como vice-presidente, ela deveria ter liderado com mais eficácia.
Em relação à política externa, Harris criticou a postura de Trump em relação à NATO, lembrando que ele, em determinado momento, chegou a afirmar que encorajaria a Rússia a atacar países-membros que não investissem o mínimo em segurança. Harris foi enfática ao declarar que continuará ao lado da Ucrânia e dos aliados da NATO, sinalizando claramente uma continuidade das políticas do governo Biden, que se tem vangloriado de ter ampliado a aliança.
Kamala Harris também abordou a guerra entre Israel e o Hamas, afirmando que é hora de procurar um cessar-fogo e libertar os reféns. Ela reafirmou o compromisso de sempre proteger o direito de Israel de se defender, destacando que os israelitas foram vítimas de uma organização terrorista. No entanto, ao referir-se à situação em Gaza, Harris evitou mencionar diretamente os mais de 40 mil palestinianos mortos pelas Forças de Defesa de Israel, preferindo minimizar o impacto ao chamar o que está a acontecer de uma situação "devastadora." Esta escolha de palavras revela uma tentativa clara de suavizar a realidade brutal, enquanto mantém o apoio incondicional a Israel. A sua abordagem, ao ignorar explicitamente o custo humano do conflito entre os palestinianos, sublinha uma hipocrisia desconcertante: enquanto condena a violência de um lado, Harris esforça-se por disfarçar o apoio contínuo a essa mesma violência. Ela pode ter agradado aos defensores de Israel, mas dificilmente convencerá aqueles que veem a sua retórica como uma tentativa cínica de mascarar a gravidade da situação.
Por fim, Harris afirmou que jamais se curvaria a ditadores como Kim Jong-Un, deixando claro que isso é algo que Trump faria sem hesitar. Em seguida, voltou ao seu discurso sobre o país que ela acredita ser ideal, onde ninguém precisa de perder para que outro ganhe – insistindo que esse é o verdadeiro valor americano e que as pessoas deveriam votar nessa visão.
É difícil apontar uma única razão para a competitividade de Kamala Harris nas sondagens até agora. Pode ser um entusiasmo inicial de eleitores que querem evitar Trump, ou talvez haja algum mérito real na sua campanha. Muitos analistas sugerem que Harris está a passar por uma "lua de mel" com o eleitorado, que pode acabar bem antes de novembro. Isso não seria surpreendente. No entanto, uma possível explicação para esse entusiasmo inicial pode estar na forma como a sua candidatura foi estrategicamente construída: lançando novidades e mantendo o público envolvido, seja com o apoio de Barack e Michelle Obama num vídeo, seja com o anúncio do seu vice-presidente. Este jogo de suspense tem gerado cobertura mediática espontânea, o que pode estar a contribuir para o aumento da sua competitividade. Se for esse o caso, a falta de novidades no seu principal discurso pode não ser o golpe final que a fará perder as eleições. No entanto, Harris desperdiçou uma oportunidade de ouro, num momento em que todas as atenções estavam voltadas para si. Um discurso previsível, que repetidamente desviava o foco para o seu oponente, pode não ser o golpe fatal, mas certamente deixou Harris com um grande problema nas mãos: agora, ela vai ter que trabalhar o dobro para conquistar um eleitorado que, com um pouco mais de coragem e originalidade, já poderia ter sido garantido no último dia da convenção.