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Jornalista,editor de Sociedade

Ivo Rosa e Montenegro: o parente pobre e o parente rico dos nossos órgãos de soberania

6 out, 19:24

A armadilha que levou à devassa da vida de Ivo Rosa, ancorada, apenas e só, numa rebuscada denúncia anónima que tresanda a fato criado à medida, é do mais perigoso, perverso e subversivo para um estado de direito que se possa imaginar. Pela famosa lógica de que, “se não te apanharmos pela infantil história de corrupção dos 30 mil euros, a pronto, com que compraste um Audi, por alguma outra coisa hás de escorregar”. E, vai daí, lançam-se aquelas redes de malha apertada que levam tudo o que for peixe. Entre vigilâncias, abertura de contas e o registo de chamadas, se não cair um robalo cai uma dourada. Ou carapaus, sardinhas. Até cavala. Tanto faz. É pesca de arrasto. E é isto que já começa, mesmo, a dar que pensar. Quanto à autonomia ou ao controlo externo das práticas de algum Ministério Público, duvidoso garante da legalidade, cuja consciência do conceito liberdade-responsabilidade deixa a desejar. E duvidoso também nos critérios, diga-se. Porque a forma leviana como se abre a vida de um juiz, titular de um órgão de soberania, dentro de um inquérito e assumindo suspeitas formais, leva-nos, curiosa e inevitavelmente, ao brutal contraste com a cerimónia e panos quentes com que se tratam há seis meses as suspeitas, bem mais densas, que pendem sobre outro titular de órgão de soberania, o atual primeiro-ministro – quase a resvalar para denegação de justiça.

Lamento já não saber mesmo, com segurança, quem guarda o guarda. E lamento também por saber que há tanta gente indesejável, e de má consciência, nas fileiras do dito manifesto dos 50 + 50 a querer fiscalizar a ação dos magistrados com a pior das intenções. Defendi, sempre, a manutenção da absoluta independência do MP, até na ressaca da indecente e má figura da operação Influencer, que derrubou um Governo por um saco de amendoins. E defendi-o quando até já sabia ser possível, por exemplo, que procuradoras mandassem a polícia vigiar jornalistas. Ao arrepio da própria Constituição, quanto ao direito à proteção das fontes, e com a cobertura do Conselho Superior do Ministério Público. Defendi um órgão essencial à justiça, pelos princípios nos quais é suposto assentar, mas uma justiça que descaradamente não nos trata a todos por igual, ao contrário do que apregoa, já não assenta em nada do que eu acredito.

Vem isto, claro, outra vez a propósito de Luís Montenegro. Do que já era flagrante, por parte deste procurador-geral da República; e do que agora fica ainda mais escancarado, quanto à dualidade de critérios face ao que o Ministério Público decidiu fazer ao juiz Ivo Rosa. Não me bastava assistir à cerimónia de Amadeu Guerra para com este primeiro-ministro, esticando para lá dos limites do inimaginável uma averiguação preventiva, algo a que não se pode chamar de inquérito para não ferir suscetibilidades, e empurrando com a barriga, há meio ano, um problema evidente; quando a sua antecessora no cargo, Lucília Gago, ainda há menos de dois anos fez cair um primeiro-ministro com um parágrafo sobre um inquérito que, até ver, não vale dois tostões. Agora, por oposição à prática habitual e para reforçar a convicção de que Montenegro só pode ir ao colo deste PGR, ainda me faltava ver o que o MP fez a um juiz com base numa mão cheia de nada, anónima.

Ensaio: se esquecermos o passado, o caso Ivo Rosa, e outros, e tivermos só por bitola, agora, o tratamento dado pelo DCIAP/PGR ao caso Spinumviva, de Montenegro, podemos assumir que, no dia em que forem levantadas graves suspeitas por alegados factos com relevância criminal, no domínio público, com alarme social, e por via de denúncias, sobre condutas minhas, ou suas, caro leitor, que ponham em causa o erário público, o Ministério Público não vai logo registar qualquer inquérito? Também aposta antes numa averiguação preventiva de seis meses?

Mesmo que, na análise ao que é alegado, com informações plausíveis, seja reconhecido em relatórios que só com meios intrusivos de obtenção de prova se conseguirá tirar a limpo se é verdade, ou não, tudo o que se diz do visado, será que ninguém se atreverá a vir para cima de nós com escutas, buscas e apreensões, ou quebras de sigilo bancário, à nossa revelia - porque o PGR não deixa?

Vamos também ser tratados com a deferência, cerimónia e cortesia como tem sido tratado Luís Montenegro – que de há seis meses para cá tem sido educada, civilizada e voluntariamente convidado a fornecer, assim a sua agenda o permita, uma série de documentação relativa à empresa familiar Spinumviva, às avenças da mesma, e à construção e aquisição de equipamento da casa familiar em Espinho? Se assim for, ou passar a ser, confirmo que todos somos iguais perante a justiça. Mas, desgraçadamente, todos sabemos que assim não é, como Ivo Rosa acaba de sentir na pele. E desconfio que, antes de mim, o primeiro a não acreditar nesta justiça até seja mesmo um juiz. O que é sintomático.

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