Exclusivo: o processo "confidencial" de Ivo Rosa

10 out, 20:47

Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa considera que o nome do desembargador que autorizou as polémicas vigilâncias e quebra de segredo bancário e fiscal ao juiz Ivo Rosa "não tem foro de publicidade e deve manter-se confidencial"

O inquérito-crime a Ivo Rosa, aberto com base numa denúncia anónima considerada "insustentada", terminou arquivado em março do ano passado por manifesta ausência de provas. Apesar disso, continua a levantar muitas dúvidas, e os tribunais teimam em não mostrar tudo o que foi feito ao magistrado que mais tem contrariado o Ministério Público (MP).

O Exclusivo da TVI/CNN Portugal pediu acesso ao processo antes e durante o verão, mas o MP, junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), indeferiu o pedido. Só após uma reclamação hierárquica para o procurador-geral da República (PGR) foi permitido o acesso a apenas duas páginas do extenso processo levantado contra o juiz por suspeitas de corrupção e branqueamento relacionadas com a sua intervenção na Operação Marquês.

Ivo Rosa só soube deste inquérito através do Exclusivo. Logo que tomou nota do sucedido, a 5 de outubro, pediu acesso a todos os processos-crime de que foi alvo. Só no STJ foram três. Até hoje, e apesar de já ter pedido consulta, não conseguiu ver nenhum.

Contactados, os advogados Rogério Alves e Pedro Duro consideram que "não há nenhuma justificação para que o próprio não possa ter acesso aos processos que o visaram".

Para Pedro Duro, há uma urgência pública nesta matéria. “É verdade que, do ponto de vista da lei, os processos são todos iguais. Mas isso não significa que, tendo em conta o impacto público e a necessidade também de uma certa paz judiciária, os tribunais não façam escolhas e que não tenham prioridades”, afirma o advogado, acrescentando que “Ivo Rosa tem de ter a possibilidade de perceber que fundamentos foram utilizados para que os processos avançassem durante tanto tempo, porque não deixa de haver ali uma invasão”.

Para Pedro Duro “tem de se perceber se essa invasão foi proporcional, seja no tempo, seja na intensidade”. “É muito importante que Ivo Rosa tenha esse acesso aos processos, para que possa também reagir, seja por modo próprio, seja em iniciativas de outras entidades, em quaisquer processos que venham a ser movidos, tanto no Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) como no Conselho Superior da Magistratura (CSM), uma vez que era visado nos processos em causa”, sustenta.

“Parece-me evidente que esse acesso deve ser dado e com rapidez. Até para que não paire sobre a justiça uma ideia de constante suspeição”, frisa o advogado.

Rogério Alves é bastante claro: “É incompreensível. Há um juiz de direito, podia ser outra pessoa, mas é um juiz, que veio a saber que durante três anos esteve a ser investigado”.

Para o advogado é natural que Ivo Rosa queira “conhecer o processo”. “Tem direito a conhecê-lo. Tem toda a legitimidade para agir contra quem o desencadeou. Tratando-se de denúncia anónima, pode participar contra incertos”, afirmou, sublinhando que, a” menos que haja uma boa justificação, é evidente que Ivo Rosa já devia ter tido acesso ao processo”.

“Se houver alguma justificação, tem de ser explicada e fundamentada”, argumenta.

O presidente da Associação Sindical de Juízes, Nuno Matos, entende também que um processo como este, que já deu origem à abertura de um processo de averiguação pelo CSMP, deve primar pela "máxima transparência".

Mas não é isso que está a acontecer. Nem com o próprio juiz Ivo Rosa, nem com os jornalistas que procuram desvendar os contornos de um processo que questiona a independência de poderes.

Já depois de nos ter sido negado o acesso a mais do que duas páginas deste polémico inquérito-crime, instaurado no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) em 2021, sob a liderança do antigo diretor Albano Pinto, insistimos junto do presidente do Tribunal da Relação, Carlos Castelo Branco, para nos indicar quem foi o juiz que autorizou as diligências intrusivas a Ivo Rosa, nomeadamente vigilâncias, acesso à faturação detalhada do telemóvel e quebra do segredo fiscal e bancário.

Reforçámos que o inquérito em apreço está arquivado e, logo, não pende sobre o mesmo qualquer segredo de justiça, mas o presidente do Tribunal da Relação entendeu negar provimento à nossa pretensão.

“O processo em questão tem acesso confidencial, encontrando-se findo na fase de inquérito. Nos termos do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, a publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meio de prova. A divulgação do nome do juiz que teve intervenção nos autos não tem, neste contexto, foro de publicidade. A pretensão deverá, por isso, ser desatendida, vinculando, igualmente, o signatário à observância da confidencialidade dos referidos dados", justificou.

Questionados sobre esta justificação, Rogério Alves e Pedro Duro voltam a discordar.

Pedro Duro afirma: “Não vejo fundamento para não se saber o nome do juiz que autorizou as vigilâncias ao juiz Ivo Rosa. Tanto a distribuição dos processos como depois os atos processuais são matéria pública”.

Para o advogado “há um momento em que não é matéria pública, que é quando naturalmente quando o processo está em segredo de justiça, mas quando cessa, esse é um dado público, até para, se necessário, fazer o escrutínio sobre o trabalho dos juízes”. “Não encontro na lei qualquer fundamento”, sublinhou.

Rogério Alves, por sua vez, reforça: “Não há fundamento legal para impedir o acesso ao nome do juiz”.

O advogado explica que, “com o arquivamento do inquérito, termina também o segredo de justiça”. “Não vejo qualquer razão para que um processo de inquérito já arquivado continue sujeito a segredo de justiça. E, caso essa razão existisse, teria obrigatoriamente de ser explicada, detalhada e devidamente fundamentada”, argumenta, sublinhando que, “a regra é a da publicidade e do acesso dos cidadãos ao processo”.

“A única exceção prevista na lei para manter elementos reservados, mesmo num processo que já não está em segredo de justiça, refere-se exclusivamente a dados pessoais recolhidos que não tenham servido como meio de prova, mas não abrange, obviamente, a intervenção de um juiz no processo”, frisa.

Já o juiz Ivo Rosa, em resposta ao Exclusivo, sublinhou que “o Código de Processo Penal não contém regras próprias sobre a distribuição dos processos, e que, por força da regra geral do artigo 4.º, devem aplicar-se as normas do processo civil. Rosa destacou os artigos 203.º a 205.º do Código de Processo Civil, que determinam que a distribuição deve garantir igualdade na repartição do serviço, aleatoriedade e publicidade dos atos, sendo realizada por meios eletrónicos e presidida por um juiz designado pelo presidente do tribunal”.

O juiz acrescentou que, “segundo a Portaria 86/2023, após a distribuição eletrónica é elaborada uma ata onde constam as operações realizadas e os resultados de cada uma, precisamente para garantir transparência e escrutínio”.

Ivo Rosa considera que “qualquer entropia ou suspeita neste processo não é tolerável, e que a distribuição visa assegurar imparcialidade e confiança dos cidadãos, cumprindo o princípio constitucional do juiz natural.”

“A lei não prevê que o nome do juiz a quem o processo foi distribuído seja confidencial, até porque a distribuição é nominal e não por secção. Na sua leitura, a regra do n.º 7 do artigo 86.º do Código de Processo Penal, invocada para justificar a confidencialidade, aplica-se apenas a dados da vida privada, o que não é o caso”, sublinha.

Para o magistrado, “quando um juiz pratica atos processuais, está a exercer uma função de soberania e não a tratar de aspetos da sua vida privada que mereçam proteção”.

“Não existe na lei qualquer classificação de processos como tendo natureza “confidencial”, e que a publicidade da distribuição é essencial para garantir que os princípios constitucionais foram cumpridos e podem ser sindicados”, afirma.

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