Um foi por causa da polémica denúncia anónima por corrupção, outro por suspeita de ajudar traficantes e finalmente um terceiro por avisar o antigo secretário de Estado e outros arguidos sobre os indícios do processo das golas antifumo. Tudo acabou arquivado
Atacado em diversas frentes pelo Ministério Público (MP), o juiz Ivo Rosa não teve realmente uma vida fácil no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), pois chegou a ser visado em vários processos-crimes, uns mais insólitos do que outros. Num destes casos, o MP atacou-o com queixas como a que foi intentada em janeiro de 2022, depois de o juiz decretar a nulidade de apreensões feitas pelo MP e pela Polícia Judiciária de diversas caixas de emails e outras comunicações em várias empresas, no Ministério da Administração Interna, na Proteção Civil e também a 13 arguidos e outros visados nas buscas do mediático caso das Golas Antifumo. Segundo o MP, este material para as populações rurais adquirido no âmbito de um programa governamental serviu sobretudo para dar dinheiro a ganhar a empresários das relações do então secretário de Estado da Proteção Civil Artur Neves e dos seus colaboradores mais próximos, que estariam conluiados com dirigentes e o próprio presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, Mourato Nunes.
Depois do processo ter tido as buscas decretadas pelo TIC de Lisboa, este tribunal viria a revelar-se incompetente para tratar do caso e o inquérito transitou para o Tribunal Central, onde foi distribuído a Ivo Rosa. A 30 de novembro de 2021, o juiz de instrução considerou aqueles documentos digitais apreendidos cerca de dois anos “como prova proibida” e mandou destruí-los. Depois, declarou o fim do segredo de justiça do inquérito e notificou quase todos os alvos das apreensões daquilo que decidira, entre eles, Artur Neves, Mourato Nunes e o então ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita.
Comunicou-lhes até o que dizia o mandado completo das buscas, que na altura só tinha sido entregue parcialmente a cada um dos visados com os factos que lhes eram especificamente imputados. Os procuradores do processo, Tiago Matos Franco, Ana Vicente Brandão e Ana Mendes de Almeida, todos a trabalharem no DCIAP, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa argumentando que a decisão de Ivo Rosa violava a autonomia do MP e atentava contra decisões já proferidas no processo por outros juízes.
Na manhã de 14 de dezembro de 2021, no mesmo dia que o recurso dos procuradores entrou no Tribunal Central para subir à Relação de Lisboa, um novo juiz despachou quase de imediato o caso. Carlos Alexandre passara a substituir Ivo Rosa na tutela do inquérito por este ter sido colocado em exclusivo nas instruções da Operação Marquês e do O-Negativo/Lalanda e Castro. Às 10h30 desse dia, Alexandre mandou remeter o caso à Relação, mas escreveu à mão no fim de um despacho de 36 páginas que os autos do processo deviam ser também devolvidos ao DCIAP com “autorização aos dados de correio eletrónico.” A ideia era que o MP avaliasse aquela documentação e depois a apresentasse para que o juiz decidisse. Nesta altura, já os procuradores, com o acordo do diretor do DCIAP Albano Pinto, tinham escrito ao Procurador Regional de Lisboa Orlando Romano (que dera também a ordem para investigar Ivo Rosa em outros dois processos-crime) para ponderar a eventual instauração de um inquérito para avaliar se Ivo Rosa tinha violado o segredo de justiça ao avisar os advogados dos suspeitos. E ainda alertaram que o ato do juiz poderia “ter frustrado ou dificultado os objetivos da investigação em curso.”
Ivo perdeu na Relação de Lisboa
O inquérito foi mesmo aberto na Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa e distribuído inicialmente a Ana Paula Vitorino que pediu escusa da investigação porque já tinha estado a investigar o caso da Máfia do Sangue antes de ser promovida a procuradora-geral adjunta. A magistrada do MP destacada a seguir, Olga Caleiro, colocou o processo que visava o juiz na gaveta durante vários meses justificando que o fazia para perceber se teriam existido realmente consequências da alegada violação do segredo de justiça.
Nesse tempo de espera, foi perguntando ao diretor do DCIAP se algo em concreto tinha sido detetado. Albano Pinto respondeu que não “eram conhecidas concretas repercussões negativas”, mas que isso não queria dizer que “elas não possam vir a ocorrer.” Só que o tempo foi passando e a 15 de julho de 2022 o MP avançou com a acusação do processo das Golas Antifumo. Já com um novo diretor a mandar no DCIAP, Francisco Narciso (2022/24), a Procuradoria Distrital foi informada que nenhum impacto concreto na investigação tinha sido detetado.
Estando a ser nessa altura investigado neste processo e em, pelo menos, mais dois inquéritos (o caso da denúncia anónima por corrupção e o processo com origem nas escutas de um traficante detido), o juiz Ivo Rosa acabou por perder na Relação de Lisboa o recurso do MP quanto à destruição dos emails do inquérito das golas antifumo. A 31 de outubro de 2023, os juízes Luís Gominho, Paulo Ferreira e Manuel Sequeira consideraram que Ivo Rosa "violou as regras de competência do tribunal" por ter revogado decisões de tribunais de primeira instância, o que só "o Tribunal da Relação tem competência para fazer."
Entretanto, quando a Procuradoria Distrital percebeu que Ivo Rosa já tinha subido a desembargador, remeteu o processo-crime sobre a alegada violação do segredo de justiça para o MP junto do Supremo Tribunal de Justiça. Apenas 20 dias depois do caso lá entrar, foi tudo arquivado a 9 de janeiro de 2024: o procurador-geral adjunto José P. Ribeiro de Albuquerque considerou que não havia nenhum indício de denegação de justiça nem se violação do segredo de justiça, tanto mais que o próprio DCIAP nada encontrara.
Passado pouco mais de dois meses, Ribeiro de Albuquerque também encerrou a 20 de março de 2024 processo da denúncia anónima que visava Ivo Rosa. Mas este caso tinha como alvo algo bem mais complexo em termos criminais: suspeitas de corrupção, peculato e branqueamento de capitais. Tudo terá começado nos primeiros meses de 2021 depois do juiz do TCIC ter sido alvo de uma denúncia anónima com “descritas inconsistências” e “já de si pouco subsistente”, como anos depois foi classificada pelo procurador-geral adjunto José P. Ribeiro de Albuquerque, que encerrou o caso no Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
Juiz nunca foi ouvido nos processos
Bem antes do arquivamento dos dois processos no MP junto do Supremo Tribunal de Justiça, houve um dos processos que não passou da Procuradoria Distrital de Lisboa. A 18 de outubro 2023, o procurador-geral adjunto Dionísio Mendes arquivou o insólito caso das escutas telefónicas do traficante de droga, porque uma investigação bastante meticulosa da PJ concluiu que nenhum dinheiro das contas bancárias dos suspeitos fora detetado a passar para o juiz e que os €1.500 mencionados nas conversas gravadas tinham sido usados para pagar “serviços relacionados com crenças ocultas.”
Apesar de Ivo Rosa nem sequer ter sido ouvido como testemunha neste caso, o procurador fez questão de notificar o juiz do arquivamento. Mas meses depois de encerrar o caso, a Procuradoria-Geral Regional de Lisboa ainda andava a tentar contactar Ivo Rosa porque a notificação voltava sempre para trás. Teve de ser o Conselho Superior da Magistratura (CSM) a informar o procurador, no fim de 2023, que o juiz também tinha sido promovido ao Tribunal da Relação de Lisboa, precisamente onde a Procuradoria Distrital estava instalada, mas que se encontrava a terminar um julgamento no Tribunal Penal Internacional, em Haia, nos Países Baixos.
A odisseia da notificação continuou nos meses seguintes, mesmo depois de a secretaria do MP ter conseguido falar ao telefone com Ivo Rosa, que estava então na Madeira, com o juiz a prometer que passaria em breve na Procuradoria Distrital de Lisboa para ser notificado. Como isso não sucedeu quase até ao fim de fevereiro de 2024, o MP voltou a tentar falar por telefone com o juiz, mas sem sucesso. Ivo estava agora de baixa médica devido a problemas cardíacos. Tinha sido premonitório o que disse no seu último debate instrutório que fez no Tribunal Central, no processo O-Negativo/Lalanda e Castro, onde aproveitou para fazer críticas à extinção do Tribunal Central como antes existia e ainda se declarou esgotado pelo trabalho.
“Não consigo trabalhar 14 horas por dia, sete dias por semana, como fiz durante dois anos. Não sou o que era e a idade também já não é a mesma”, disse o juiz, acrescentando uma frase que foi de imediato vista como mais uma alusão indireta ao juiz com que tinha repartido funções no TCIC entre 2015/22, Carlos Alexandre: “Nunca quis ser nem superjuiz, nem infrajuiz, nem corajoso, nem medroso. Apenas sou um juiz que se limita a apreciar a prova.”
Ivo Rosa reage
O juiz Ivo Rosa reagiu a esta notícia com uma nota enviada à CNN Portugal: "Fiquei a saber, sempre através da comunicação social, que a partir de 2021 o MP terá aberto, pelo menos, 4 inquéritos visando a minha pessoa enquanto juiz de instrução criminal e, segundo parece, por atos jurisdicionais praticados em inquéritos nos quais o juiz é, por força da constituição e da lei, chamado a intervir como juiz das garantias.
Nunca tomei conhecimento formal da existência dos referidos inquéritos e nunca fui notificado ou informado do arquivamento dos mesmos."