O 4º processo-crime que teve como alvo Ivo Rosa resultou de mais uma queixa do Ministério Público por suspeita da prática dos crimes de denegação de justiça e prevaricação. O motivo? Três meses após a decisão da instrução da Operação Marquês, o juiz acabou com um arresto das contas bancárias de uma empresa controlada por Isabel dos Santos. Uma decisão que insistiu em manter, sobrepondo-se a decisões de outros colegas juízes. Também este caso, que se cruzou com uma conturbada investigação disciplinar, acabou arquivado no Supremo Tribunal de Justiça
É o inquérito 60/22.3TRLSB, só tem um volume e na capa lê-se que o denunciante foi o Ministério Público (MP), que o denunciado foi o juiz Ivo Rosa e que o procurador que arquivou tudo se chama José P. Ribeiro de Albuquerque, precisamente o procurador-geral adjunto que também encerrou no Supremo Tribunal de Justiça (STJ) o polémico caso da vigilância e da devassa das contas bancárias devido a uma denúncia anónima. Só que ao contrário deste caso que tanta celeuma está a levantar, a CNN Portugal foi autorizada a consultar o processo sobre a suspeita da denegação de justiça e de prevaricação que visou Ivo Rosa. Em causa estiveram crimes muito semelhantes até na moldura penal, pois preveem na sua forma mais simples penas de prisão até aos dois anos ou multa até 120 dias.
Segundo consta no processo-crime arquivado a 8 de janeiro de 2024, o que esteve na base da abertura da investigação, que foi ordenada pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), foi uma decisão do então juiz de instrução Ivo Rosa quando estava colocado no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC). Uma decisão tomada no verão de 2021 (poucos meses depois da leitura da instrução da Operação Marquês) e relacionada com a apreensão dos saldos das contas bancárias da sociedade anónima Odkas, um dos alvos do processo 227/20.9TELSB, cuja investigação estava então centrada na empresária Paula Cristina Oliveira, no gestor Mário Leite da Silva e na mulher, no advogado Jorge Brito Pereira e no antigo diretor financeiro da Sonangol, Sarju Rainkundalia. Todos elementos muito próximos de Isabel dos Santos, que era suspeita de controlar uma série de movimentações financeiras da Sonangol, tendo como pivô outra empresa por si detida, a Matter.
Terá sido após setembro de 2017 que uma série de pagamentos internacionais foram feitos através da Matter para consultores, nomeadamente para a Boston Consulting Group (terá recebido quase 13,3 milhões de dólares, hoje cerca de 11,5 milhões de euros), a PWC (cerca de 8,5 milhões de dólares, quase 7,4 milhões de euros), a McKinsey (perto de 9,6 milhões de dólares, quase 8,3 milhões de euros), o escritório de advogados VDA, Vieira de Almeida (cerca de 1,4 milhões de dólares, pouco mais de 1,2 milhões de euros) e ainda entidades alegadamente controladas por Isabel dos Santos como a Fidequity/Santoro (1,9 milhões de dólares, cerca de 1,6 milhões de euros) e a referida Odkas (cerca de 6,1 milhões de dólares, que hoje representam cerca de 5,3 milhões de euros).
Neste processo, o juiz Ivo Rosa começou por decretar, em abril de 2021 e a pedido do MP, a apreensão das contas da Odkas, mas apenas cerca de três meses depois o juiz levantou a apreensão dando razão ao pedido da defesa da empresa. No dia seguinte à decisão de Ivo Rosa, a 15 de julho de 2021 e ainda antes de o MP ser notificado, a secretaria do Tribunal Central enviou, às 11:27 e no minuto seguinte, os ofícios do juiz aos bancos onde a Odkas tinha contas - ao Eurobic e ao Millennium BCP. Os procuradores do DCIAP souberam informalmente da ordem de Ivo Rosa e ficaram estarrecidos: o dinheiro seria libertado ainda antes de serem notificados ou de poderem recorrer da decisão. Com carácter de urgência, os bancos foram informados pelo próprio DCIAP de que o MP ia contestar a decisão do juiz. Por isso, era imperioso que não cumprissem de imediato a ordem de Ivo Rosa já que, segundo alegava o MP, o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) tinha um efeito suspensivo. Os procuradores tinham poucos dias para avançar com o recurso e isso ocorreu a 19 de julho, já em férias judiciais.
Nos termos da lei, o recurso entrou no Tribunal Central de onde teria de ser remetido para apreciação da Relação de Lisboa. No entanto, por causa das férias judiciais e do facto de os juízes da Comarca de Lisboa (e de todo o País) funcionarem neste período por turnos com escalas previstas há meses, o documento foi recebido pelo juiz que estava de turno naquele dia, precisamente Carlos Alexandre, o colega de Ivo Rosa no Tribunal Central. Assim, foi Alexandre que despachou o recurso para o TRL e que mandou informar os bancos de que o caso não tinha transitado em julgado. Na prática, disse que os dois ofícios de Ivo não eram para ter em conta.
Instalou-se então a confusão e os advogados que defendiam a Odkas pediram explicações ao tribunal sobre o que estava a passar-se. Por um lado, tinham uma decisão de Ivo que dizia "comunique-se imediatamente" aos bancos a libertação do dinheiro, por outro, Alexandre parara tudo com a questão do não trânsito em julgado da decisão. O Eurobic, um banco cuja maioria do capital era de Isabel dos Santos (a participação detida pela angolana estava também já apreendida por ordem do MP), contactou o Tribunal Central por escrito para saber o que é que devia fazer, visto que – no âmbito de um outro inquérito do dossiê Angola/Isabel dos Santos e que visava a Keiko, mais uma sociedade anónima controlada pela filha do ex-Presidente José Eduardo dos Santos – já tinham uma decisão judicial para acabar com a apreensão de outras contas uma vez que se entendia que o recurso do MP não tinha efeito suspensivo.
Com o juiz Ivo Rosa de férias, a guerra jurídica continuou nesse verão de 2021 com a intervenção de outros juízes de turno a considerarem sempre a natureza urgente do processo e a motivação do recurso do MP com efeito suspensivo, ou seja, as contas da empresa mantiveram-se apreendidas. No entanto, já depois das férias judiciais, um novo requerimento da Odkas a arguir a nulidade/irregularidade daquelas decisões chegou às mãos de Ivo Rosa, que invalidou os atos de todos os colegas de turno usando argumentos como a violação das regras do juiz natural dado que o processo não tinha carácter de urgência porque não estavam em causa direitos e liberdades dos cidadãos. Segundo escreveu Ivo Rosa, "os atos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços da justiça e fora do período de férias judiciais."
De novo o juiz mandou notificar os bancos para cumprirem a decisão de levantar a apreensão das contas, mas não deixou de admitir um novo recurso do MP para o tribunal superior, dizendo, no entanto, que isso não suspendia a sua decisão. Revoltados, os procuradores do DCIAP escreveram ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, que a 12 de novembro de 2021 começou a tentar pôr ordem na casa. Manteve as contas arrestadas até que um acórdão do TRL, de 10 de fevereiro de 2022, validou boa parte dos argumentos do DCIAP, inclusive a validade dos atos processuais praticados por cinco juízes de turno. Para o tribunal, os atos "não só podiam como deviam ser praticados em férias judiciais (…), como, e bem, o foram, o que em nada viola as regras do juiz natural, pois o seu titular não mudou, apenas foi substituído."
A decisão da Relação de Lisboa no caso da empresa Odkas de Isabel dos Santos foi uma enorme derrota para Ivo Rosa e seria usada depois, de várias formas para atingir o juiz do Tribunal Central, a começar pelo processo-crime que se seguiu para o investigar pela suspeita da prática de crimes de denegação de justiça e de prevaricação, delitos específicos de quem é funcionário público ou age conscientemente contra o Direito recusando atos que lhe são exigidos. O processo foi distribuído à procuradora Olga Caleira que pouco ou nada fez, limitando-se a pedir informações ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) para saber se existia uma investigação disciplinar a Ivo Rosa. Este processo já estava em curso devido a queixas cruzadas do juiz Carlos Alexandre e dos três juízes desembargadores da Relação que tinham decidido um dos recursos do inquérito da Odkas. Por exemplo, o desembargador Abrunhosa de Carvalho escreveu que o CSM deveria conhecer as “vicissitudes dos autos, conforme resultam descritos no presente acórdão.”
Durante meses o MP junto da Relação de Lisboa deixou o processo na gaveta e insistiu com o CSM para lhe serem enviados os eventuais dados da avaliação disciplinar. Esta averiguação acabou por se tornar bastante complexa, com muitos avanços e recuos, mas acabou por ser arquivada. Depois de a analisar e sem qualquer outro ato de investigação no processo-crime entretanto transitado para o STJ (Ivo Rosa subira a juiz desembargador), a 8 de janeiro de 2024, o procurador Ribeiro de Albuquerque arquivou o inquérito considerando que até eram “inúteis” atos como a inquirição de testemunhas.
Depois disto, e já com pedidos de consulta de jornalistas, quis manter como sigilosa a cópia da decisão disciplinar arquivada no CSM, e ainda escreveu que só permitiria que o próprio inquérito crime fosse consultado se a então Procuradora-Geral da República (PGR) Lucília Gago concordasse. O jornalista da Sic Luís Garriapa continuou a insistir na consulta e teve de fazer um recurso hierárquico à PGR para conseguir finalmente ter autorização para poder ver o processo-crime e o relatório do inquérito disciplinar que visara Ivo Rosa, uma consulta que até já tinha sido autorizada pelo próprio CSM.
Ivo escapou por pouco a suspensão de funções
Se o inquérito crime que visou Ivo Rosa foi relativamente simples, o processo disciplinar foi bem mais complexo. Para se defender, o juiz começou por responder ao inspetor judicial do CSM a 6 de maio de 2022, com o auto de declarações a sumariar em três páginas que o juiz entendia que nada de errado fizera. Mais tarde, Ivo Rosa apresentou 26 documentos avulsos, dois pareceres jurídicos e indicou 12 testemunhas para serem ouvidas pelo inspetor. O juiz escolheu para o representar o advogado Carlos Pinto de Abreu, que era também defensor do empresário Rui Mão de Ferro (amigo e sócio de Carlos Santos Silva) que foi acusado pelo MP e despronunciado pelo próprio Ivo Rosa na instrução da Operação Marquês. Mão de Ferro estava acusado de quatro crimes de falsificação de documentos e um crime de branqueamento de capitais (com a reversão da decisão do caso Marquês, em janeiro deste ano, o empresário está atualmente a ser julgado).
Foi o advogado Pinto de Abreu que juntou ao processo disciplinar de Ivo Rosa um parecer do penalista Germano Marques da Silva, que no topo do documento se identificou apenas como professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa, quando na realidade era também advogado ou conselheiro em vários processos importantes que tinham passado ou ainda estavam sob tutela do Tribunal Central e dos juízes Carlos Alexandre e Ivo Rosa. O penalista tinha sido também colega de escritório do próprio Pinto de Abreu e de Paula Lourenço (advogada de Carlos Santos Silva).
Além disso, o pequeno escritório de Germano Marques da Silva conseguira como clientes várias empresas controladas por Isabel dos Santos e até a própria empresária quando esta já fugira a um mandado de captura internacional refugiando-se no Dubai. Até final de março e início de abril de 2022, os advogados Paulo Saragoça da Mata e Mário Silveiro de Barros trataram da defesa de Isabel e do marido Sindika Dokolo, mas depois o casal contratou João Barroso Neto (e depois João Costa Andrade), primos e advogados com ligação à GMS [Germano Marques da Silva] & Associados, cujo escritório já tinha a representação de várias empresas da angolana – João Costa Andrade era ainda o advogado de José Paulo Bernardo e António Pinto de Sousa, primos de José Sócrates, no processo Monte Branco, de onde nasceu a Operação Marquês.
Numa pequena nota prévia ao parecer de 18 páginas assinado a 29 de agosto de 2022 para defender Ivo Rosa, Germano Marques da Silva destacou que estava a tentar responder a questões como, por exemplo, as proibições de prova, a reversão de decisões judiciais e as atribuições do Conselho Superior da Magistratura para administrar a disciplina, mas frisou que se tratava "sobretudo de opinião pessoal, a jeito de parecer técnico." Antes de concluído o documento, o mesmo terá circulado discretamente - e com outros pormenores da defesa do juiz - por vários influentes professores universitários e até conhecidos advogados, muitos deles com clientes visados em processos criminais e sob escrutínio do juiz Ivo Rosa e do Tribunal Central.
Após múltiplas deambulações sobre as leis, a sua interpretação e os poderes do CSM, o penalista Germano Marques da Silva salientou que só tinha encontrado eventuais divergências na interpretação das normas jurídicas e que tal não gerava "responsabilidade disciplinar em razão da independência dos juízes". Depois de vincar no documento (o penalista cobrava a clientes normalmente entre 15 mil a 20 mil euros por pareceres simples) que o juiz não cometera qualquer "ilegalidade" e não praticara também nenhum "ato que contribuísse para o desprestígio da magistratura e dos tribunais", Germano Marques da Silva concluiu: "Antes pelo contrário, o juiz de instrução criminal ao procurar fazer correta interpretação e aplicação da lei, que é nosso parecer que fez, e ao fundamentar exaustivamente as suas decisões, cumpriu escrupulosamente o seu dever de juiz garante das liberdades (…)"
Em setembro de 2022, o inspetor judicial Vítor Ribeiro ouviu quase de enfiada as testemunhas indicadas por Ivo Rosa. Uma das testemunhas abonatórias foi o advogado Magalhães e Silva. Outra foi a juíza Andreia Ferra, que assessorara Ivo Rosa na instrução da Operação Marquês entre maio de 2019 e janeiro de 2021, tendo esta destacado que o colega era uma pessoa tímida e reservada, mas vincou que ficara com a "perceção de ser um "profissional muito exigente consigo mesmo e com os outros." Mais testemunhos abonatórios vieram dos juízes desembargadores Raul Esteves, Pedro Albergaria e Cristina Almeida e Sousa, bem como do juiz conselheiro jubilado Carlos de Almeida, que atestaram a seriedade do trabalho e das decisões de Ivo Rosa. A professora catedrática da Faculdade de Direito de Coimbra e ex-juíza do Tribunal Constitucional, Maria João Antunes, foi mais longe e recordou que tinha dado aulas a Ivo e que este já então integrava um grupo de "alunos que se destacavam".
Declarando-se independente dos "clamores públicos" e perseguido por "vários órgãos de comunicação social e redes sociais", por queixas do Ministério Público e até por artigos de opinião, Ivo Rosa reiterou no processo disciplinar que todas as decisões que tomara no Tribunal Central revelavam "cuidado, correto e zeloso desempenho" e "análise crítica da prova", porque numa agira contra a lei ou as "decisões de tribunais superiores" que o vinculassem. "O que não sou, e seguramente nunca serei, é desonesto, parcial ou motivado, no processo de decisão, por razões pessoais ou extraprocessuais", disse o magistrado judicial esgrimindo que as suas qualidades tinham sido atestadas anos a fio pelas pendências que resolveu nos tribunais por onde passara, pelas acumulações de serviço que nunca recusou e pelas avaliações de mérito do CSM, incluindo no próprio Tribunal Central e no então concurso que já o promovera aos tribunais superiores. Para além da carreira que tinha fora do País, em Timor-Leste e na justiça penal internacional.
Concluída a instrução da averiguação disciplinar, o inspetor Vítor Ribeiro propôs o arquivamento do processo contra Ivo Rosa por considerar que a "conduta" do juiz não configurava "ilícito disciplinar". De acordo com os procedimentos em vigor no CSM, a Secção de Assuntos Inspetivos teve de se pronunciar, o que sucedeu a 24 de janeiro de 2023, tendo constatado que a instrução do processo tinha deixado de fora a investigação de informações que a própria secção tinha indicado ao inspetor. Por isso, o processo acabou por ser reaberto, foram igualmente juntas outras suspeitas e o novo relator da investigação chegou a propor uma pena para Ivo Rosa: deveria ser suspenso por 80 dias (e outros 60 dias devido a outro caso) devido às decisões sobre as contas da Odkas. No total, e considerando o cúmulo jurídico, foi proposta uma pena única de suspensão de 120 dias.
Como mandava a lei disciplinar do CSM nestes casos, a proposta seguiu para redação final, sendo que o projeto final de decisão coube a Inês Ferreira Leite, um dos quatros vogais eleitos pela Assembleia da República. Só que esta vogal considerou que o processo disciplinar a Ivo Rosa devia simplesmente ser arquivado. A proposta foi ratificada na sessão plenária do CSM, conforme ficou registado na Ata 20/2023, destacando o documento que apenas votaram vencidos o presidente do CSM Henrique Araújo e os vogais Graça Amaral (juíza conselheira indicada pela Presidência da República) e, naturalmente, Barradas Leitão, o último relator do processo disciplinar. No documento final do arquivamento, Barradas Leitão fez questão de voltar a criticar Ivo Rosa numa declaração de voto: “No caso concreto, concluída a instrução do processo disciplinar, e depois de apreciada toda a prova produzida, foi nossa convicção que o Sr. Juiz Ivo Rosa, nas decisões em apreciação nos autos, ultrapassou claramente esses ‘limites intransponíveis’ e, por essa via, violou grosseiramente os seus deveres funcionais, cometendo faltas disciplinares que não deviam deixar de ser devidamente sancionadas.”