Chegam às reuniões com advogados, de Jaguar ou acompanhados da secretária. Os "abusadores profissionais do apoio judiciário"

31 mar 2022, 07:00
Justiça

O apoio judiciário existe para garantir o acesso ao direito e aos tribunais de todos os cidadãos. Mas há quem se tenha tornado profissional a garantir estes apoios. Estado pagou mais de 259 milhões a advogados nos últimos cinco anos

Por ano, o Ministério da Justiça gasta 50 milhões de euros em apoios judiciários, pagando a advogados que defendem quem não tem meios. Segundo dados a que a CNN Portugal teve acesso, nos últimos cinco anos em honorários a advogados foram pagos pelo Estado mais de 259 milhões de euros. E entre estes há muitos casos de verdadeiro abuso: há quem tenha pedido apoio para 800 processos, tendo sido atribuído mais de 1400 advogados pagos através do erário público; e quem oculte bens e riqueza para ter acesso a esta ajuda financeira. 

"Existe um número identificado de beneficiários que padece de um género de «litigiosidade aditiva crónica» alimentada pelo benefício do apoio judiciário e que abusam do sistema para alimentar todo o tipo de pretensões sem fundamente ou viabilidade jurídica", diz à CNN Portugal João Massano, Presidente do Conselho Regional de Lisboa, da Ordem dos Advogados.  

Entre as situações mais graves, diz João Massano, estão aquelas em que as pessoas nem sequer têm direito a este apoio, destinado a quem não se pode defender por falta de dinheiro. "Há os «abusadores profissionais do apoio judiciário» que já se tornaram muito eficientes em ocultar a sua verdadeira situação financeira, para começar, das próprias autoridades tributárias (Fisco e Segurança Social)”, avisa o responsável, esclarecendo: “Ou seja, aqueles que não têm estrategicamente bens em seu nome, às vezes nem sequer contas bancárias, ou que declaram rendimentos ao nível do salário mínimo, mas que depois aparecem como sócios de empresas".

Apesar de sublinhar que "a grande maioria das pessoas que recorre a este instrumento é honesta e cumpre os requisitos e as condições para beneficiar do apoio judiciário", o elemento da Ordem dos Advogados recorda alguns casos que revelam a forma incorreta como estes milhões estão a ser usados. "Uma senhora beneficiária apareceu-me numa reunião acompanhada da secretária para tomar notas e um senhor apresentou-se num Jaguar novo e estacionou em frente ao edifício”. Mas as situações que lhe surgem na memória não ficam por aqui. “Uma outra senhora, muito conhecida, gabava-se de ter uma equipa de advogados e os colegas tinham de ir a casa dela, no Estoril, para reunir, onde ela exibia a sua coleção de obras de arte”.  E há casos de pessoas que contam sem problema o que costumam fazer: “Um senhor, que não tem nada em nome dele, e que costuma solicitar o apoio diz às claras que apenas recorre ao apoio judiciário para não pagar custas e prolongar os processos, e impedir o trânsito em julgado, seguindo a recomendação da «equipa» dos seus «verdadeiros» advogados".

"As moradas de alguns beneficiários são indicadoras de capacidade financeira", garante  João Massano.

A mesma denúncia é feita pelos juízes. "Há situações em que, de facto, as pessoas, como têm apoio judiciário, tornam-se litigantes crónicos. Ou porque não gostam do vizinho de cima, ou porque não gostam do vizinho de baixo, ou porque o terreno do lado não está como ele quer. Do ponto de vista do direito, às vezes, não têm razão nenhuma, mas como têm apoio começam a pôr ações a torto e a direito. O que, se calhar, retira meios para outras situações que, efetivamente, precisam do apoio judiciário", nota, à CNN Portugal Paula Cardoso, vice-presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses - ASJP.

Um só cidadão, mais de 1400 nomeações de advogados

Os dados a que a CNN Portugal teve acesso permitem analisar situações em concreto. Ao longo da lista de beneficiários surgem vários pedidos com características que chamam a atenção. Veja-se um caso concreto: o beneficiário A, chamemos-lhe assim, tem em seu nome cerca de 460 processos de nomeação de patrono. Ou seja, processos individuais para os quais pediu apoio judiciário junto do Instituto da Segurança Social. Esta é a entidade responsável por determinar se a pessoa tem, ou não, direito ao apoio.

Devido a esses 460 processos de nomeação de patrono, já lhe foram atribuídas cerca de 1300 nomeações de advogados. Sendo possível, em algumas situações, que o mesmo advogado seja nomeado para o mesmo beneficiário, em processos distintos.

Mas a este beneficiário, é preciso ainda somar os familiares diretos. Já que a mulher e a filha também constam das listas com muitos processos de nomeação de patrono e nomeação de advogados: a mulher tem, pelo menos, 125 processos de nomeação de patrono e 189 nomeações de advogados; a filha conta com cerca de 80 processos de nomeação de patrono e 167 nomeações de advogados.

Há outro beneficiário, chamemos-lhe B, com cerca de 800 processos de nomeação de patrono e cerca de 1485 nomeações de advogados. Ou, ainda outro, o beneficiário C, com cerca de 265 processos de nomeação de patrono e cerca 515 nomeações de advogados.

A magistrada Paula Cardoso, que faz questão de ressalvar que o apoio judiciário "é fundamental por haver pessoas que sem esse apoio não podem aceder ao direito que está constitucionalmente consagrado", adianta que até nas salas de audiência são visíveis casos de abuso, que muitas vezes levam os próprios advogados a não querer ser oficioso.

"Tive uma situação em concreto, que me recordo, em que a senhora teve não sei quantos advogados. Ela tinha apoio judiciário. Bastava o senhor advogado fazer qualquer coisa que a senhora não gostava, que já não o queria e vinha dizer que queria outro. Os próprios advogados, a determinada altura, apercebendo-se da forma como esta senhora era, acabavam também por não querer representá-la. Acaba por ser o efeito de bola de neve."

Segurança Social decide, Justiça paga

Cabe ao Ministério do Trabalho e da Segurança Social decidir quem tem ou não direito ao apoio judiciário. Mas quem paga é o Ministério da Justiça, através do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ).  

“A Segurança Social é quem toma a decisão de atribuir. Mas somos nós que pagamos o apoio judiciário”, frisa Maria Rosa Tobias Sá, Presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), explicando que os custos a pagar incluem honorários de mandatários e custas judiciais. E no que se refere aos 259 milhões, o valor apenas diz respeito ao valor que é pago como honorários. De fora estão os valores das custas judiciais que são mais difíceis de calcular. 

A comarca com mais processos alvo de apoio em 2021, segundo os do IGFEJ, relativamente aos que houve pagamento de patrono nomeado ou defensor oficioso, foi a do Porto. Quanto ao Tribunal (unidade orgânica) "com mais processos com pagamento de advogado, encontramos o Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - Juiz 1".

Relativamente às áreas de intervenção, é no Direito Penal que há mais nomeações, segundo dados do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.

Justiça para todos os que precisam

Os abusos que estão a ser feitos a este apoio estatal levam Paula Cardoso, vice-presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses a admitir que "há muitas arestas a limar" neste assunto. Até porque este não é um problema novo. Há muito que se conhecem os abusos. "É impensável que uma pessoa possa beneficiar de mais de 400 nomeações de mandatários. Não cabe na cabeça de ninguém. Tem de haver aqui algum controlo". A vice-presidente da ASJP alerta:"O problema é, de facto, a falta de mecanismos de controlo e fiscalização que detectem este tipo de situações e que seria muito necessário existir para bem de todos". Para Paula Cardoso é preciso “parar, refletir e ver todas estas incongruências da lei”

Também João Massamo considera ser urgente agir. "As consequências negativas e os atrasos começam logo ao nível da própria Segurança Social, que «gasta» tempo com estes pedidos «fictícios» deixando de avaliar outros de requerentes que, efetivamente, cumprem as condições e precisam com urgência do apoio judiciário".

Além disso, segundo este advogado, há vários outros problemas. "Estes processos «entupem» o sistema de justiça (tribunais e serviços afins). Além do impacto financeiro que têm, aumentando os custos do Estado, por exemplo, com os honorários dos advogados. Dinheiro que depois faltará para pagar a quem concretamente está a trabalhar para pessoas para quem o apoio judiciário é a única porta de saída para os seus problemas".

Há ainda muitos casos em que Justiça fica refém dos “litigantes crónicos”, já que estes, acrescenta João Massano, "conseguem paralisar os processos através de pedidos de substituição sucessivos ou através da criação de condições para os advogados pedirem escusa. Chega a haver situações em que o Conselho já procedeu à nomeação de mais de 20 advogados para o mesmo beneficiário no mesmo processo, o que paralisa os processos indefinidamente". Processos que ficam anos "pendentes" nos tribunais.

No caso dos abusos, os advogados não podem impedir o acesso ao direito e, por isso, esta é uma situação delicada: "Os advogados pedem escusa, não lhes compete senão apreciar com diligência e competência as pretensões, assegurando o acesso ao direito e aos tribunais. Não lhes compete «impedir» esse acesso, isso seria um contrasenso", explica João Massano.

Perante os pedidos feitos junto da Segurança Social e diferidos, ou seja, aceites, o beneficiário passa a ter direito ao apoio judiciário.

"Há beneficiários que têm muitos processos de nomeação e, consequentemente, o número de advogados para esses processos, que solicitam escusa, multiplicam-se. Os advogados pedem escusa, mas não se faz qualquer tipo de controlo aos fundamentos dos mesmos, pois estes são sigilosos. Os abusos são comunicados, mas estamos muito limitados pelo regime jurídico", acrescenta o Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.

Há vários advogados a pedir escusa e beneficiários a pedir substituições. No caso dos mandatários, um dos principais motivos alegados é a falta de colaboração do beneficiário. Mas não só, há também casos relacionados com a discordância do beneficiário com o parecer jurídico e quebra da relação de confiança.

De uma coisa, João Massano parece ter certeza: "As substituições são, na sua maioria, pedidas pelos «crónicos», ou pelos «abusadores» numa tentativa de protelar o andamento do processo".

Quem tem direito ao apoio judiciário?

Além de fiscalizar e controlar o sistema de apoio, Paula Cardoso diz que seria importante “rever os critérios" de acesso ao apoio judiciário.  E a explicação é simples, diz: "As custas judiciárias são extremamente elevadas e, portanto, há pessoas que não têm acesso. Quem ganha 800 euros, mil euros, por mês, não pode pagar estas custas, mas se calhar não vai beneficiar do apoio judiciário". 

Ou seja, refere, o apoio judiciário acaba por "só contemplar os muito pobres, mas há classe média que acaba por não ter acesso ao apoio e deveria".

Tem direito a este apoio quem demonstrar ter “insuficiência económica” para aceder à justiça. Sejam cidadãos individuais ou entidades coletivas, sem fins lucrativos. Mas não só. 

Para demonstrar a situação de carência económica são pedidos vários documentos para juntar ao formulário entregue nos serviços da Segurança Social. Por exemplo, é preciso, entre outros, apresentar a última declaração de IRS que apresentou, recibos de vencimento passados pela entidade patronal, declarações de IVA referentes aos dois últimos trimestres e, no caso de ter bens imóveis (casas, terrenos, prédios), caderneta predial atualizada, bem como livrete e registo de propriedade de automóveis que possa ter registados em seu nome.

As formas de apoio judiciário também podem acontecer de duas formas: dispensa de pagamentos ou pagamentos em prestações. No caso da dispensa de pagamentos, isso pode incluir, por exemplo, as taxas de justiça, os encargos com o processo e/ou os serviços de um mandatário. No caso dos pagamentos em prestações estão incluídos os mesmos pontos.

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