«Cristiano Ronaldo e Messi são dois génios como foi Mozart»

26 jan 2023, 09:30
Júlio Resende (Arquivo pessoal)

«Um café com...» Júlio Resende, músico, pianista e compositor, que se apaixonou pela elegância artística de Lionel Messi e não dispensa o futebol na sua vida nem quando vai ao estrangeiro

Júlio Resende é um dos maiores génios da música portuguesa. Nasceu em Faro, há 40 anos, mas cresceu em Olhão e começou a tocar piano aos quatro anos. Mais ou menos na mesma altura em que começou também a jogar futebol na rua.

Estudou piano clássico no Conservatório de Faro e jazz na Université de St. Denis, em Paris, já lançou oito álbuns, fez a música de uma série da HBO, recebeu prémios internacionais, foi elogiado pela criatividade e talento improvisador.

Inquieto e desafiador, está sempre a reinventar-se.

Já trouxe o fado de Amália Rodrigues para o piano, já musicou poemas de Eugénio de Andrade e Gonçalo M. Tavares declamados por Júlio Machado Vaz, já misturou o acústico do piano com a eletrónica em Cinderella Cyborg e até já formou com Salvador Sobral a banda Alexander Search que revisitou a poesia em inglês de Fernando Pessoa.

Já fez de tudo um pouco, já se desafiou uma e outra vez, já foi onde ninguém tinha ido, mas nunca deixou de jogar futebol. Diz que o jogo é um bálsamo para a cabeça, não abdica de jogar nem quando vai ao estrangeiro e garante que Salvador Sobral é um excelente central. «Parece o Piqué», garante.

Qual é a primeira memória que tem do futebol?

Nunca pensei nisso, mas acho que é no infantário, com os miúdos mais velhos a testar-nos para ver quem podia jogar com eles. Pediam-nos para fazer um remate ou um passe e eu devo ter feito um bom passe, porque lembro-me de ter sido bem aceite nesses jogos de futebol.

Teria que idade, três ou quatro anos?

Quatro anos, sim. Foi mais ou menos na mesma altura em que comecei a tocar piano. O futebol sempre foi uma boa maneira de socializar com o grupo. Todos os rapazes por norma gostam de jogar futebol. Eu não sou o tipo mais social do mundo, mas esta coisa de jogarmos uns com os outros permitiu-se sempre estabelecer relações e tem-me sido muito útil.

Mesmo agora, na idade adulta, o futebol ainda consegue ser um desbloqueador de conversas?

Sim, sim, mas isso é mais normal que aconteça.

Mesmo lá fora, quando vai ao estrangeiro?

O que acontece muitas vezes, quando vamos ao estrangeiro, é marcar jogos de futebol com o pessoal de lá. Por exemplo, acontecia muito com o Salvador Sobral, quando estávamos a tocar juntos. Íamos a Barcelona ou a outro sítio e, como gostamos de jogar futebol, marcávamos sempre jogos com outros músicos de lá.

E brilhava nesses jogos de futebol como brilha ao piano?

Tenho algum jeito, acho que sim. Sempre gostei muito de jogar e até cheguei a pensar em jogar de um modo mais sério. Mas cedo percebi que não tinha tempo para conciliar tudo. O meu tio foi treinador de futebol, o meu pai fez atletismo, então o desporto sempre fez parte lá de casa.

Acompanhava muito o seu pai nas provas que ele fazia?

Sim, sim, sempre. Ele participava em muitas provas em Espanha, sobretudo ao sábado e ao domingo, e a família acompanhava-o. Íamos todos em passeio.

Curioso como a sua família era ligada ao desporto.

Mas também à música. O meu pai é de Angola, o meu tio também é de Angola e sabemos como o desporto e a música estão muito presentes em África. Acho que vem muito daí. Tanto o meu pai como o meu tio sempre gostaram de desporto e de música.

O seu tio foi treinador no Olhanense?

Não, foi jogador no Olhanense. Depois foi treinador no Quarteirense, no Lusitano de Évora e no Juventude de Évora.

E o Júlio chegou a jogar também no Olhanense, não foi?

Joguei até aos infantis ou iniciados, mas acho que não fui mais longe do que isso.

Foi levado pelo seu tio?

Não, não. Foi uma decisão minha mesmo, sempre pedi aos meus pais para jogar futebol.

Lembra-se como é que nasce essa sua paixão pelo futebol?

Não. Ou seja, não tenho ideia de quando é que me apaixonei pelo futebol. Sempre gostei de jogar e fazia-me bem à cabeça. Quando estamos a jogar não estamos a pensar, estamos a confraternizar com outras pessoas, sempre me atraiu esta coisa da criatividade no futebol e do drible, portanto foi algo que me lembro de sempre ter estado em mim. Sempre gostei de jogar e acho que até tenho jeito, o que também ajudava a que alimentasse esta paixão.

Como é fez a escolha entre as suas duas grandes paixões: o futebol e o piano?

Foi simples, não foi preciso escolher. Eu continuo a jogar futebol, jogo uma ou duas vezes por semana e foi assim desde sempre. Quando não estava lesionado, nunca parei de jogar futebol. Mas eu jogo a um nível amador, com os amigos. Nunca fiz vida disso. O piano e a escola foram mais importantes para mim do que o futebol. Por isso mesmo nunca precisei de decidir. Ainda que gostasse de ter tentado jogar num nível mais competitivo, nos juvenis, nos juniores ou uma coisa assim. Nunca competi a esse nível e agora não vale a pena pensar nisso. Não dá para tudo.

Jogou muito na rua em Olhão?

Imenso. Na rua foi onde joguei mais. Antigamente havia muitos campos de futebol de salão. Aliás, ainda há, mas nas grandes cidades agora pagam-se. Fora das grandes cidades ainda há muitos que são abertos. Por isso todos os dias às seis da tarde havia futebol.

Nem era preciso combinar...

Exato. Exatamente isso. Juntávamo-nos lá todos e fazíamos equipas. O jogo acabava aos dois golos e quem perdia, saía.

Eu ainda não percebi é se o Júlio Resende tem clube.

Sim, tenho clube. Eu sou do Benfica, mas deixei-me há muito de fanatismos.

Há pessoas que gostam de futebol porque gostam de um clube. No seu caso, é mesmo adepto do futebol: dos jogadores, dos treinadores, das ideias?

É verdade. Os jogos que mais gostei de ver eram os do Barcelona nos tempos do Xavi, do Iniesta e do Messi. Preferia ver esse Barcelona a ver o Benfica. Isto sem nenhum desprimor para o Benfica, mas aprendi a gostar de ver bons jogos. Mais do que ver a minha equipa.

Atualmente há alguma equipa ou algum jogador que o apaixone mais?

Há sempre uma grande discussão se o futebol é uma arte ou não é uma arte, mas eu acho indesmentível que há algumas figuras que têm uma elegância artística. O Messi é com certeza uma delas e sempre me apaixonou. O Maradona também tinha essa elegância. O Zidane era um tipo superelegante. Esses jogadores parecem bailarinos dentro de um jogo de futebol. Os médios racionais e muito inteligentes também me atraem. O Guardiola, por exemplo. Ainda outro dia estive a ver uns vídeos com passes dele para golos do Romário e eram coisas absolutamente extraordinárias. Mas acima de todos o Messi, sim. É o jogador mais artístico que tenho visto e o que mais me apaixona.

Mantém a ideia que o Ronaldo e o Messi são dois génios como era Mozart?

Acho que sim. Naquilo que eles fazem, são seguramente dois génios. Aliás, dentro da história do futebol, o Messi e o Ronaldo têm uma superioridade que o Mozart não tem na história da música. Na música há mais competição em relação ao Mozart do que há no futebol em relação à hegemonia de Messi e Ronaldo. Não me lembro de outros jogadores terem tido um período dourado tão longo, eles dois estão há mais de uma década no poleiro do futebol. Por isso, claro que sim, estes dois jogadores são uma exceção e são génios na história do futebol.

Já agora, no meio da música erudita, que é um meio mais intelectual, há algum preconceito em relação ao futebol?

A maior parte da malta quando não joga não é por achar que o futebol é uma coisa menor, mas sim porque tem medo de se magoar. De resto, não há nenhum descrédito em relação ao futebol, nem há bocas para quem gosta. Aliás, há muita malta da música que gosta de jogar. O meu grupo mais regular de jogo é um grupo de músicos: Rogério Charraz, Luiz Caracol, Marco Rodrigues, Diogo Piçarra, Miguel Gizzas, enfim, uma data de gente que joga futebol.

Qual foi o melhor jogador de futebol que já encontrou nesses jogos de músicos?

Acho que o Luís Caracol, o Rogério Charraz e o Miguel Gizzas são os mais fortes.

O Salvador Sobral também gosta muito de jogar.

Ah, sim. O Salvador gosta muito de jogar e é um excelente central. Parece o Piqué. Também é um dos melhores que já encontrei, sim senhor. É difícil passar por ele. E tem sido uma grande alegria voltar a contar com ele. Houve aí uma fase em que não podia jogar e voltar a vê-lo nestes jogos parece um daqueles contos de mitologia grega.

E continua a ir ao estádio?

Quando tenho oportunidade continuo a ir ao Estádio da Luz. Antigamente o Benfica tinha o hábito de convidar vários artistas para ir aos jogos, esse protocolo deixou de existir com a pandemia, mas espero que regresse, até porque era uma boa forma de o clube apoiar as artes. Eu ia muitas vezes ao estádio, gosto de ir. É muito mais divertido ver os jogos no estádio.

Mas gosta mais de jogar do que de ver?

Gosto muito mais de jogar do que de ver. Sem comparação. Prefiro mil vezes jogar e não deixo de ir jogar para ficar a ver um jogo, a não ser que seja uma final, ou algo assim. Jogar faz-me muito bem. Faz-me ao espírito, faz-me bem à cabeça.

Fica mais leve?

Fico muito mais leve. O desporto, como já se sabe cientificamente, cria as tais endorfinas. Mas não é só isso, é tudo o que está em causa: durante uma hora um gajo está ali totalmente presente, não pode andar a pensar noutras coisas. Deixa de pensar na vida.

«Um café com...» senta o Maisfutebol à mesa com figuras eminentes da nossa sociedade, nomes sem ligação aparente ao desporto, a não ser a paixão. A música, a literatura, o cinema ou a política enredados nas quatro linhas de conversas livres e descontraídas.

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