Não faltaram "dores de cabeça" à juíza no dia em que o tribunal ouviu - e depois viu - o depoimento que Ricardo Salgado deu pouco antes de ser detido em 2015. Entre as defesas dos arguidos, há quem acredite que a acusação se devia concentrar em cinco famílias e não em apelidos como "os Costas e os Farias"
A juíza Helena Susano, que está a presidir o julgamento do caso BES, tem demonstrado uma boa dose de humor em várias ocasiões, como quando brincou, neste segundo dia de julgamento, com o facto de um dos advogados - neste caso Paulo Espírito Santo Amil - ter confidenciado uma pequena discussão com a mulher na conservatória. “A primeira de muitas”, disparou quase de imediato a magistrada. Mas Helena Susano, que inclusive já foi professora de português antes de envergar a beca, tem também momentos onde a sua assertividade é explosiva.
E mostrou isso mesmo durante as exposições iniciais do advogado Tiago Rodrigues Bastos, que representa os arguidos suiços Alexandre Cadosh e Michel Creton. O discurso do advogado foi marcado por uma série de alertas ao estado de saúde de Ricardo Salgado, mas também por um ataque cerrado à magistrada, em que apontou para o facto de a mesma ter tido 560 ações do BES.
Este facto foi também exposto esta segunda-feira por Adriano Squillace, advogado de Ricardo Salgado, mas desta vez mereceu o contraditório da juíza. Não só explicou que, por causa dessa situação, fez um pedido de escusa que acabou por ser rejeitado pelo Tribunal da Relação, como deixou também a sugestão ao advogado: “Ver quanto é que valem 500 e algumas ações do BES, passar na Avenida da Liberdade e ver se com isso consegue sequer comprar uma mala”.
Foi apenas uma das respostas mais ríspidas da presidente do coletivo de juízes, que também alertou as defesas que é contra formas de protelar o julgamento, como exceções dilatórias - falta ou ausência de questões processuais que as defesas têm tentado advogar para suspender as audiências. Ao mesmo tempo, o tribunal terminou também de identificar todos os arguidos neste processo e, à semelhança do dia anterior, nenhum quis prestar qualquer declaração nesta fase.
Já os advogados, foram-se alongando em críticas à acusação do Ministério Público e até à decisão do tribunal de insistir na presença de Ricardo Salgado no julgamento - que durou pouco mais de uma hora. Aliás, Ricardo Sá Fernandes, um dos advogados que representa lesados do BES já manifestou ter dúvidas que “um homem nestas condições” - o antigo homem-forte do BES apareceu visivelmente debilitado no início do julgamento - possa sequer ser julgado criminalmente. A sua posição foi novamente aplaudida esta terça-feira por Margarida Lima, advogada que representa Cláudia Faria, ex-diretora de poupança do banco, e que está a responder por cinco crimes.
Também Tiago Rodrigues Bastos, advogado dos suíços, indicou que Salgado “merece de todos nós o absoluto respeito”. E que a questão da sua saúde “não é indiferente para este processo”. Isto porque “estamos aqui à volta dele na comparticipação das práticas dele, se ele...” Se “não está nas condições de se defender isso não é um facto inócuo para as defesas”, acrescentou.
Na mesma linha, as defesas dos ex-funcionários do BES acusados de serem cúmplices no plano de Ricardo Salgado que levou a um prejuízo para as contas do Estado de pelo menos oito mil milhões de euros, foram advertindo o tribunal para o facto de serem apenas “adereços da acusação”. São “arraia miúda”, descreveu João Costa Andrade que representa quatro destes ex-trabalhadores (Paulo Ferreira, Pedro Serra, Pedro Pinto e Nuno Escudeiro). “Quantos destes membros adquiriram eles próprios a preços diferentes as emissões do BES", questionou, sublinhando que também eles perderam dinheiro com esses títulos.
Vários destes arguidos terão recebido dezenas de milhares de euros através de contas off shore ligadas ao Grupo Espírito Santo, que o MP acredita terem sido contrapartidas por participarem nos alegados planos criminosos de Ricardo Salgado. Também neste caso, o advogado garante que a prática não era criminosa e que apenas se tratavam de prémios "que estavam completamente enquadrados".
Por outro lado, o eixo da defesa de outro destes trabalhadores, Pedro Costa, antigo alto quadro do BES, assentou até no seu apelido. Para o advogado que o representa, Paulo Espírito Santo Amil, a acusação baseia-se em cinco ramos familiares que controlavam as várias frentes do Grupo Espírito Santo. “São os Galvão, Pinheiro, Ricciardi, Amaral e Salgado”, diz, acrescentando que as outras famílias “poderiam ser dispensadas”. “Os Costas e os Faria não estão aqui a fazer nada”.
As "dores de cabeça" da juíza
O momento mais aguardado deste segundo dia de julgamento era a reprodução do depoimento que Ricardo Salgado deu ao procurador José Ranito durante a fase de inquérito do processo, em julho de 2014. Mas a mesma encontrou vários problemas a partir da hora de almoço.
O primeiro veio da defesa de Salgado, que apresentou um requerimento para impedir a reprodução desse depoimento em tribunal, justificando que a gravação não podia ser mostrada, porque o ex-banqueiro e líder do BES não estava presente e, por consequência, não podia apresentar o seu contraditório da versão que deu em 2015.
Após cerca de 20 minutos, a juíza decidiu sobre aquilo que lhe pareceu “uma questão simples”. Por isso declarou que o requerimento pedido pela defesa de Ricardo Salgado era "manifestamente improcedente". "Aquando da prestação de declarações, o arguido é informado que as declarações que prestar poderão ser usadas no processo", "mesmo não estando presente no julgamento". "Estão sujeitas à livre interpretação do tribunal". "O exercício do contraditório não depende da presença do arguido", acrescentou ainda.
Depois, começaram a amontar-se os problemas técnicos com a reprodução das gravações que de há nove anos.
Primeiro, existia o problema da tradução do que Salgado estava a dizer para os arguidos suíços, o que levou várias vezes à interrupção desta gravação que, naquela altura, apenas contava com uma versão em áudio. Depois de essas questões serem sanadas, foi a própria qualidade da gravação que causou alguma frustração à juíza. Houve, aliás, um momento em que o som ficou tão alto que a magistrada admitiu ficar com “dores de cabeça”.
Passaram cerca de 30 minutos até que a gravação, já em vídeo, começou a ser reproduzida. Nela, viu-se Ricardo Salgado sentado numa sala no oitavo andar no DCIAP, ao lado dos seus advogados. No restante tempo, o principal arguido do caso BES foi ouvido a garantir que o colapso do Grupo Espírito Santo “nada teve a ver com os problemas da ESI" (holding que o MP aponta ter falsificado as contas para esconder uma situação de bancarrota), "mas com a intervenção do Banco de Portugal". O tribunal vai retomar a reprodução do depoimento do antigo líder do BES na sexta-feira da parte da tarde.