Uma “orgia de misoginia” com “frenesim de desprezo” que “vítimas de violência assistiram com horror”. O veredicto Depp-Heard nas opiniões dos jornais

2 jun 2022, 07:30
Julgamento Johnny Depp vs Amber Heard (EPA)

Colunistas da imprensa inglesa e norte-americana põem em causa “o julgamento do ano”. Com argumentos duros.

Textos de opinião publicados em jornais dos Estados Unidos e de Inglaterra nas primeiras horas depois do veredicto no processo entre Johnny Depp e Amber Heard são muito críticos em relação ao julgamento, à violência nas redes sociais e às consequências sobre as mulheres que ganhavam coragem para denunciar agressores.

"O julgamento Amber Heard-Johnny Depp foi uma orgia de misoginia”

É com este título que Moira Donegan, colunista do The Guardian, encima um texto violento contra o veredicto do tribunal – mas também contra o julgamento popular nas redes sociais e cobertura mediática, “quase toda a favor” de Depp. “O ricochete contra o #MeToo está em curso há muito tempo. Agora está aqui”

Como outros colunistas, Moira Donegan cita mensagens de Depp apresentados em tribunal ("Vou foder o seu cadáver queimado depois para ter a certeza de que ela está morta") para pôr em causa a decisão. Mas, sobretudo, frisa o seu “efeito devastador sobre sobreviventes [de casos de violência doméstica], que serão silenciadas, agora, sabendo que não podem falar das suas experiências violentas às mãos dos homens sem a ameaça de um processo ruinoso de difamação”.

“O discurso das mulheres acaba de tornar-se muito menos livre”, escreve.

O pior está no mundo online, diz, onde “emergiu um amplo consenso” de que Heard mentia. Moira Donegan defende-a das falhas e incongruências que lhe foram sendo apontadas: “Nenhuma vítima é perfeita. Nenhuma vítima deveria ter de ser. Afinal de contas, se um homem não pode ser considerado abusivo para com uma mulher imperfeita, então quão perfeita precisa uma mulher de ser antes que se torne errado espancá-la?”

Nas redes sociais, “o caso assumiu uma mitologia hedionda, e a crença na justiça de Depp persiste independentemente das provas. Ao serviço deste mito, qualquer crueldade pode ser justificada.” A colunista dá o exemplo: "Ele podia ter-te morto", escreve um post viral no Tiktok em cima de uma fotografia de Heard ferida na cara. "Ele tinha todo o direito". “O post tem mais de 222.200 likes”, sublinha a colunista.

“O processo frívolo e punitivo do Depp, e o frenesim do desprezo misógino por Heard que o acompanhou, fizeram muito para justificar o ponto de vista original de Heard: que as mulheres são punidas por se apresentarem. O que acontece às mulheres que alegam abuso? São publicamente pilhadas, profissionalmente colocadas numa lista negra, socialmente ostracizadas, ridicularizadas sem fim nas redes sociais e processadas. Ira, de facto.”

É por isso que Moira Donegan postula que o julgamento se transformou “numa orgia pública de misoginia”. E prossegue. “Embora a maior parte do vitríolo seja dirigido a Heard, é difícil abalar a sensação de que, na realidade, é dirigido a todas as mulheres - e em particular, àquelas de nós que falaram de abuso sexual e violência sexual durante o auge do movimento #MeToo”, escreve.

“Heard ainda está numa relação abusiva. Mas agora não é apenas com o Depp, é com todo o país”.

Moira Donegan recorda um outro artigo, de Michelle Goldberg no New York Times, que caracterizava o julgamento como sendo "a morte do #MeToo", porque “mostra a facilidade com que uma vítima ainda pode ser culpada e isolada, a facilidade com que o que lhe aconteceu pode ser tomado como um fracasso do seu carácter pessoal, e não como parte de um padrão social”.

A colunista do The Guardian realça que os críticos do #MeToo “pintaram os esforços das mulheres para acabar com a violência sexual como sendo excessiva e intemperada” desde o início, afirmando que #MeToo tinha "ido longe demais". Depois do julgamento de Heard, “as forças da reação misógina são talvez ainda mais fortes agora por terem sido temporariamente reprimidas. Onde antes as mulheres se recusavam, em massa, a guardar os segredos dos homens, ou a permanecer em silêncio sobre a verdade das suas próprias vidas, agora, um ressurgimento do sexismo, assédio virulento online, e a ameaça de processos judiciais, todos visam obrigar as mulheres a voltar ao silêncio - pela força.”

Porque é que Depp perdeu em Inglaterra e ganhou nos EUA?

Um dos principais argumentos utilizados para criticar a decisão deste tribunal da Virginia é o facto de Depp ter perdido em tribunal no Reino Unido em 2020, num processo por difamação do ator contra o jornal “The Sun” por este tablóide se lhe ter referido como "espancador de mulheres". “O juiz britânico considerou que a caracterização do Depp pelo Sun era ‘substancialmente verdadeira’”, recorda Donegan. “Esse mesmo julgamento apurou que Depp abusou fisicamente Heard em pelo menos 12 ocasiões.”

Também Kara Alaimo, professora de Comunicação, escreve no site da CNN sobre os indícios de abusos de Depp e conclui que “o resultado do julgamento mostra quanto a sociedade regrediu desde o auge do #MeToo”,  comparando o julgamento de agora nos EUA com o de antes no Reino Unido (pode ler na íntegra o texto de Kara Alaimo aqui na CNN Portugal).

O Washington Post dedica uma análise ao facto de Johnny Depp ter perdido o seu caso de difamação no Reino Unido mas ganho nos EUA. “A razão, segundo os peritos jurídicos, pode simplesmente resumir-se ao facto de a ação do Depp no Reino Unido - que ele perdeu - ter sido decidida por um juiz, enquanto que o seu caso nos Estados Unidos foi decidido por um júri.”

Citado pelo jornal americano, Mark Stephens, advogado de comunicação social que acompanhou os dois casos, disse que “a equipa jurídica do Depp nos Estados Unidos geriu uma estratégia conhecida como DARVO” acrónimo em inglês “para negar, atacar, e inverter vítima e infractor - em que Depp se tornou a vítima e Heard o agressor.”

"Verificamos que o DARVO funciona muito bem com júris, mas quase nunca com juízes, que são treinados para olhar para as provas", afirma Stephens ao Post.

Outra diferença entre os casos no Reino Unido e os EUA foi o frenesim gerado nas redes sociais. “Embora os jurados tenham sido ordenados a não ler nada àcerca do caso, eles não foram sequestrados”, ironiza o jornal.

Já na Newsweek, o ex-procurador-geral-adjunto do Estado do Ohio, nos EUA, Mark R. Weaver escreve que “seria redutor descrever este julgamento como um veredicto sobre a violência doméstica. Embora seja um crime abominável que provoca lesões físicas, este foi um julgamento civil sobre alegadas lesões de reputação”. Depp ganhou o dia, realça. “Procurou derrubar a credibilidade da sua acusadora, e parece ter tido sucesso”.

“As vítimas de violência doméstica assistiram a este caso com horror”

Jessica Bennett, editora de opinião que escreve sobre género, política e cultura, escreve no The New York Times que “ninguém ganha no Veredicto Depp-Heard”.

“As vítimas de violência doméstica assistiram a este caso com horror”, declara. “Parece que não ficámos mais sábios sobre as realidades complicadas e por vezes confusas dos abusos de parceiros íntimos”.

“Mesmo depois de todas as nossas proclamações sobre sermos melhores agora, de termos aprendido com o tratamento de mulheres como Monica Lewinsky ou Britney Spears, não estamos mais perto de ser o tipo de cultura que não transmite tais acontecimentos, que não capitaliza a desgraça das celebridades, que não saliva ao ver uma mulher a ser diminuída”.

Jessica Bennett critica comportamentos das redes sociais, e o facto de que “todos, ao que parece, pensam que são peritos sobre o que aconteceu à porta fechada entre duas pessoas”.

No início do julgamento, Bennett já escrevera também no The New Tork Times sobre como o este tribunal “parece ter exposto as nossas mais profundas tendências misóginas” e “suportou o que é essencialmente um bom e antiquado pelourinho público – só que os memes [da Internet] substituíram as pedras”.

Mas os dois saem mal, daí que ninguém ganhe. Nem Depp, que viu a sua história de abuso de substâncias e explosões violentas serem dragadas em tribunal. “As suas mensagens sobre a sua ex-mulher, lidas em voz alta, eram tão grosseiras que não podem ser impressas aqui”.

No fim de contas, conclui Jessica Bennett, “trata-se de mais do que Johnny Depp e Amber Heard. Isto é sobre nós”.

E.U.A.

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