“Eu não conseguia parar.” A pandemia está a provocar distúrbios alimentares nos nossos filhos

CNN , Sandee LaMotte
13 fev 2022, 14:00
Os distúrbios alimentares entre os jovens aumentaram durante a pandemia. Foto: CandyRetriever/Adobe Stock

As estatísticas mostram que os telefonemas de jovens – e de adultos - para as linhas de apoio a distúrbios alimentares dispararam durante a pandemia. O aumento é ainda mais acentuado quando se olha especificamente para as raparigas

Como muitas raparigas do ensino secundário, Ella (nome fictício) teve dias em que se debateu com a autoestima.

“Consegui lidar com isso porque praticava desporto, tinha amigos e tinha a escola. Depois, chegou a pandemia em março (2020) e perdi isso tudo”, disse Ella, que parece mais nova do que os seus 15 anos.

“Queria fazer algo proativo para me ajudar a lidar com a situação, então, comecei a fazer exercício. Corria quase todos os dias. Dava passeios de bicicleta e fazia caminhadas de uma hora.”

Também ela amante de correr, a mãe de Ella, Alice (também um nome fictício) ficou satisfeita ao ver a filha a adotar hábitos tão saudáveis durante os tristes meses de confinamento na cidade natal de ambas, Otava, no Canadá. Mas não demorou muito a perceber que, se a Ella não estivesse a fazer exercício, parecia ficar nervosa e agitada.

“Ela não conseguia estar sentada. Já não apreciava coisas como ver um filme porque achava que tinha de estar sempre a mexer-se”, disse Alice.

“Eu não conseguia parar. Não sei porquê. Simplesmente, não conseguia”, disse Ella. “A dada altura, já nem gostava do exercício, apenas sentia que tinha de fazê-lo.”

Ella disse que a necessidade de fazer exercício aumentou. Em junho de 2020, ela disse à mãe que estava a perder peso.

“Era quase como se ela fosse controlada por um extraterrestre”, disse Alice. “Num momento, estava bem, mas se tentássemos fazê-la comer ou parar de fazer exercício, podíamos ver nos olhos dela que ficava muito intensa.”

“Eu já não falava com a Ella. Eu falava com esse extraterrestre ou fosse lá o que fosse.” A crescente preocupação de Alice transformou-se em receio. Ela e o marido começaram a procurar um nutricionista, aconselhamento ou algum tipo de serviço de apoio. “Demorámos meses até termos acesso a esses serviços naquela fase da pandemia.”

Um problema crescente

Do outro lado da cidade, no Hospital Pediátrico do Leste de Ontário, o Dr. Mark Norris estava mais ocupado do que nunca. Como especialista em distúrbios alimentares pediátricos, Norris estava habituado a ser chamado às Urgências para avaliar um paciente jovem.

No início do verão, “eu fui mais vezes chamado às Urgências do que em toda a minha carreira”, disse Norris. Os pedidos de consultas urgentes por parte de pais preocupados também dispararam, disse ele.

O aumento da procura por esses serviços começou “quase imediatamente” depois do alívio do confinamento, em junho, disse ele, e a sua equipa “teve logo mais pacientes no hospital do que eu alguma vez tinha visto”.

Os distúrbios alimentares são muitas vezes desencadeados ou exacerbados pelo stresse, portanto, como muitos especialistas, Norris temia que a perturbação causada pela pandemia fizesse entrar em recaída jovens (e adultos) que estavam a recuperar de distúrbios alimentares conhecidos.

Embora isso tivesse acontecido, Norris disse que ficou surpreendido ao descobrir que muitos dos jovens que apareciam nas Urgências nunca tinham mostrado sinais anteriores de um distúrbio alimentar.

Ele fez parte de uma equipa que avaliou 48 adolescentes em meados de 2020 sobre as suas experiências com um distúrbio alimentar. Quando questionados sobre o que achavam que tinha ativado a doença, 40% das crianças atribuíram a culpa aos efeitos da pandemia, disse Norris.

Também houve outras descobertas surpreendentes.

“Nos primeiros seis meses da pandemia, especialmente, notámos que os pacientes apresentavam pesos mais baixos do que estávamos habituados a ver regularmente antes da pandemia, e que esses pacientes estavam a adoecer muito depressa”, disse Norris.

"Os nossos dados sugeriram que, além do peso mais baixo, os pacientes também apresentavam maiores insuficiências e tinham maior probabilidade de precisarem de ser internados por motivos médicos.” Norris e a sua equipa publicaram depois esses resultados no “Journal of Eating Disorders”, em junho de 2021.

Inquéritos feitos em outros hospitais pediátricos do Canadá e dos EUA encontraram um semelhante aumento de jovens a serem avaliados e hospitalizados por distúrbios alimentares durante o verão e o outono de 2020. Um médico de família que Norris contactou, o Dr. David Little, trabalhou como informático clínico na Epic Health Research Network, que produz registos médicos eletrónicos.

“O Dr. Norris sugeriu que olhássemos para os dados da base da EPIC, que conta com mais de 100 milhões de pacientes nos EUA”, disse Little, um médico de família em Verona, no Wisconsin.

“Em 80 hospitais, encontrámos um aumento de 25% nos internamentos por distúrbios alimentares, após o início da pandemia em março (2020), em comparação com as tendências pré-pandemia”, disse Little.

O aumento é ainda mais acentuado quando se olha especificamente para as raparigas – 30%, disse Little. “O que é realmente interessante é que, quando analisámos outros diagnósticos de saúde mental – ansiedade, depressão e até tentativas de suicídio – vimos pequenos aumentos. Mas nada tão drástico como os 30% a mais de raparigas a serem hospitalizadas com anorexia ou outros distúrbios alimentares.”

As estatísticas mostram que os telefonemas de jovens – e de adultos - para as linhas de apoio a distúrbios alimentares dispararam durante a pandemia.

Chelsea Kronengold, diretora de comunicações da Associação Nacional de Distúrbios Alimentares, disse que a linha de ajuda da associação verificou “um aumento de 107% nos contactos desde o início da pandemia de covid-19.”

“Apesar de terem passado dois anos desde o início da pandemia, o volume das linhas de ajuda continua a aumentar”, disse Kronengold à CNN por e-mail. Com base em contactos de pessoas que revelaram a sua idade, ela disse que a maioria das pessoas que pediram ajuda em 2021 tinha entre 13 e 24 anos.

Não é culpa da criança

Após vários reagendamentos, Ella foi finalmente avaliada em setembro de 2020. Mas, segundo a mãe, o especialista considerou a perda de peso da jovem “limítrofe”, e decidiu pedir à família que fizesse regularmente análises ao sangue e outros exames médicos, até que houvesse uma cama disponível na unidade de distúrbios alimentares.

“Nessa altura, ela fazia meias maratonas sozinha”, disse Alice. “Estava descontrolada. Eu não sabia como mantê-la em casa. Eu andava de bicicleta ao lado dela com medo que algo acontecesse, com medo que ela não tivesse energia suficiente para fazer aquilo."

O peso por si só é um critério imperfeito para o tratamento, dizem os especialistas, mas havia um limiar necessário para que Ella pudesse ser considerada para o serviço de internamento.

Passaram-se meses sem que Ella cumprisse os critérios e, por fim, em janeiro, “foi o nosso médico de família que disse: 'Tem de ir às urgências'. Fomos naquela manhã e, passadas algumas horas, eles internaram a Ella”, disse Alice.

“Disseram que as análises ao sangue não eram seguras e os sinais vitais dela estavam numa situação difícil. Lembro-me de sentir uma grande culpa e pensar: 'Como pude deixar isto acontecer?'”

“Mas disseram-nos que (a Ella) estava, no fundo, a ser controlada por uma doença”, continuou Alice. “Não está a raciocinar. É como falarem com alguém que é incapaz de processar informações como fazia antes.”

Em Outubro, a UNICEF chamou a atenção para a deterioriação da saúde mental dos mais jovens durante a pandemia. Na imagem, uma unidade pediátrica do hospital Robert Debre, em França. Foto: arquivo/Christophe Ena/AP

Norris era o médico de Ella. Ele disse à família para exteriorizar a doença – para ver o distúrbio alimentar como uma entidade externa ou um “rufia” que estava a ameaçar a filha: “É uma doença, não algo que esteja mal com a criança e, sem dúvida, não é culpa da criança.”

No caso das crianças e dos adolescentes, explicou, esse “rufia” vai querer controlar.

“Vai tentar isolar a criança, limitar o apoio que o distúrbio alimentar pode ver como ameaçador”, disse ele. “E, assim, o distúrbio alimentar vai passando despercebido, se quisermos, porque a pessoa encontrou formas de poder ter alguns sintomas sem alarmar o cuidador da casa.”

“Embora possa haver uma parte do cérebro que reconhece que precisam de ajuda, há outra parte que pode não estar interessada em obter ajuda ou não ver sequer a necessidade de ajuda”, disse Norris.

“O meu trabalho é ajudar a criança a entender que, embora certamente grande parte do cérebro dela sinta que o distúrbio alimentar está lá para ajudar, na realidade, não ajuda.”

Hoje em dia, Ella diz que está bem, a terminar o último ano do secundário e ansiosa pela universidade. Continua a ter consultas externas com o Dr. Norris e a equipa dele.

“O Dr. Norris garantiu-me que a recuperação total é possível, mas pode demorar”, disse Ella. “Mantemos um registo semana a semana de tudo o que vai melhorando e, olhando para trás, sinto que percorri um longo caminho. Mas ainda falta um bocado.”

Stresse pandémico

Os distúrbios alimentares geralmente aparecem quando aumenta a angústia interna, explicou Norris. Embora não haja uma causa única, os especialistas dizem que a insegurança alimentar, os traumas e os abusos na infância, as preocupações com os papéis sociais de género e eventos stressantes na vida podem todos contribuir. Pesquisas recentes indicam que a genética também pode desempenhar um papel.

Agora, parece que as consequências da covid-19 podem ser um dos principais exemplos desse stresse.
“Estão a aparecer evidências que sugerem que a própria pandemia está a agir como um gatilho importante”, disse Norris.

Durante a pandemia, as crianças muitas vezes recorrem a outras atividades que aumentam a sua vulnerabilidade e suscetibilidade aos distúrbios alimentares, disse ele. “Muito do que ouvimos por parte dos jovens fala de isolamento social ou de subnutrição social, se preferirmos.”

Isso inclui a participação em atividades mais solitárias, “como fazerem exercício sozinhos em vez de terem atividades de grupo”, explicou Norris. “Para outros, é passar mais tempo online, a visitar sites e a ver as redes sociais que podem não ser o melhor para eles em termos de desenvolvimento geral.”

Uma procura esmagadora pelos serviços de apoio significa, provavelmente, que casos como o de Ella não são analisados tão depressa quanto o necessário, facto que preocupa os especialistas como Norris.

“É importante tentarmos chegar aos pacientes o mais depressa possível, porque quanto mais tempo durar um distúrbio alimentar, mais difícil é tratá-lo”, disse Norris.

“A consciencialização é a principal mensagem”, disse Little, “não apenas para os profissionais de saúde, mas para as famílias, para os pais, para os jovens, para os sistemas educativos e para a comunidade em geral. Porque, quando estes miúdos chegam à ajuda médica, já estão muito doentes.”

Há ainda outra questão: a maioria dos pacientes internados no hospital de Norris foi hospitalizada devido à anorexia nervosa, um tipo de distúrbio alimentar que se manifesta com um medo intenso de engordar devido a uma imagem corporal distorcida. Muitas pessoas sofrem uma perda de peso tão extrema que se tornam pacientes em estado crítico e, frequentemente, conseguem ser internadas, disse Norris.

No entanto, existem muitos outros tipos de distúrbios alimentares, - incluindo a bulimia, em que as pessoas comem compulsivamente e depois vomitam, - que podem não estar a receber a ajuda especializada de que precisam, disse ele.

“É um verdadeiro desafio. Apesar de sabermos que há tantas pessoas a sofrer, o número de profissionais com experiência para tratar um distúrbio alimentar é limitado”, disse Norris. “Obviamente, fazemos o nosso melhor pelos pacientes que precisam de ser internados por correrem risco de vida, mas por cada paciente que é internado no hospital, há vários pacientes que não são.”

“Será que esses pacientes poderão ter acesso a um nível de cuidado que os porá no caminho da recuperação?"

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