Ao som do Drill. "Não culpem a música" pelo crime. "É como em tudo: no futebol também há pessoas que chegam a matar"

10 jun, 22:00
Drill

O estilo musical drill teve direito a presença no Relatório de Segurança Interna de 2024. E não foi a primeira vez. Há muito que se faz uma ligação entre os gangues e estas batidas. Quem ouve esta música é um criminoso? "Não, evidentemente que não. Nem o contrário é verdade"

Gangues juvenis. O drill é a música que os une: as palavras violentas são o retrato das dinâmicas dos bairros mais pobres em redor das maiores cidades - Lisboa, Porto, Setúbal, Faro. “Há uma apologia da violência ou, no mínimo, as letras apelam a uma atitude de rebeldia contra a norma estabelecida”, afirma à CNN Portugal fonte da Polícia Judiciária. Mas não só.

Os jovens identificados pelas autoridades têm entre 15 e 25 anos e as rivalidades entre grupos de diferentes bairros é grande. Essa tensão é manifestada ao ritmo da batida, ao som do drill. “Esses conflitos costumam ser referidos em músicas e videoclipes de subculturas musicais que apresentam referências hiperlocais e hiperpessoais (especificamente a uma área geográfica, ocorrência em particular, indivíduo ou data específica)”, lê-se no Relatório Anual de Segurança Interna de 2024 (RASI).

“A música, o ritmo, os ruídos, a sonoridade, evidentemente que impacta muito. Tem um público muito jovem. Quem não gosta de música? É um ritmo que agrada aos mais novos”, acrescenta a mesma fonte da PJ. Apesar da ligação feita no RASI, da violência das letras, das armas, das máscaras, “eles não usam” a música “como uma fórmula de angariar pessoas”. “Quanto muito passam a ideologia. É um aproveitamento porque é um elemento unificador, congregador, agregador se quisermos.”

“Depois não é só isso”, acrescenta, “é isso também na envolvente”. “A dinâmica do bairro, as questões sociais ligadas a isto. A organização das respetivas estruturas familiares. Ou seja, nós não podemos culpar aquele estilo de música por nada, quando no fundo é um retrato do que eles veem.”

E os anos de experiência da Polícia Judiciária levam mesmo a afirmar que “o drill não é culpado de nada”. Ou seja, a música não é a causa. Portanto: à pergunta “quem ouve esta música é um criminoso?”, a resposta é “não, evidentemente que não”. Nem o contrário é verdade”. Na verdade, a criminalidade mais grave cometida pelos gangues, da competência da Polícia Judiciária, está um pouco “mais parada”.

No ano passado, Portugal registou 2062 casos de jovens entre os 12 e os 16 anos acusados de crimes, que resulta num aumento da criminalidade juvenil de 12,5% em relação a 2023. Todavia, este aumento não se espelhou numa subida da criminalidade mais grave, da competência da Polícia Judiciária, entre os mais jovens. Este aumentou refletiu-se em ambiente escolar, tendo aumentado as ocorrências registadas pela PSP e pela GNR.

José Mariño é considerado por muitos uma espécie de mentor do hip hop português por ter criado em 1992 um programa de rádio totalmente ligado a este género musical e só com grupos nacionais. Foi um dos fundadores da Antena 3 e chegou a ser diretor-adjunto da mesma. Acompanhou de perto" a génese" do hip hop nacional.

Rap, hip hop, drill. “Estamos a falar de uma cultura que nasceu nos Estados Unidos há muitos anos”, explica José Mariño. “Vem com o rap e com o hip-hop. Sempre houve essas ligações à violência. Nos Estados Unidos havia e continua a haver muito essa apologia das armas associada a bairros chamados 'problemáticos'.”

Sem ter uma escala mundial tão visível, o drill “é um fenómeno mais recente”. José Mariño deixa a onda musical para deixar claro que “é como em tudo: no futebol também há pessoas que são violentas, que praticam atos violentos, que chegam inclusive a matar”.

O antigo diretor-adjunto da Antena 3 assume que “o rap e o hip hop são muito competitivos”, sem que exista grande explicação para isso. E há situações que foram notícia e envolvem “nomes tão grandes como o Kendrick Lamar e o Drake com disputas - essas sim que chegam à escala planetária, devido aos nomes envolvidos”.

No meio dessa disputa entre Drake e Lamar está a canção “Not Like Us”, que faz parte de uma rixa de longa data entre ambos. Drake, de nacionalidade canadiana, apresentou uma ação judicial por difamação contra a Universal Music Group, afirmando que a falsa acusação da canção - de que ele é um pedófilo - o colocou em perigo.

O drill é essencialmente local porque “evidencia rivalidades que podem ser de um bairro para o outro”. Mas é algo que sempre houve. Agora apenas é “amplificado pelas redes sociais”.

Para José Mariño, as redes sociais não são necessariamente o problema. “As redes sociais são apenas um acrescento que a nossa realidade teve nos últimos anos. Ou seja, o que está a acontecer está em nós, não nasceu agora. Aquilo tudo está em nós, as redes só amplificaram, espalharam. Aquilo não passa a ser uma coisa nova, só aumenta aquilo que já existe.” 

Uma pequena pesquisa no Youtube proporciona muitos vídeos de drill ligados a grupos portugueses (alguns dos quais estão inseridos neste artigo). Há rostos tapados com máscaras, há armas – mas não em todos – e não se vê necessariamente violência. E a maioria é cantado em crioulo - e quem não o domina pouco entende das letras. E não é por acaso que assim seja.

“O crioulo é uma forma também de criar uma linguagem que não está acessível a todos e que acaba por funcionar quase também como uma espécie de código, restrito a um determinado grupo de pessoas - ou de jovens, essencialmente. Não serão todos cabo-verdianos. Muitos, se calhar, aprenderam a falar crioulo em contacto com pessoas que falavam crioulo.”

Por outro lado, José Mariño lembra que há um peso histórico porque “o crioulo foi uma língua que perdurou no tempo e que já na altura do 25 de Abril era reprimida”. “Em certa medida, essas pessoas vivem numa realidade que a maioria não conhece. O pai já abandonou a casa há não sei quanto tempo. Vivem e acabam por crescer entre pares. Têm o exemplo familiar no qual a mãe tem três empregos ou quatro e mal consegue pôr comida na mesa. Para quem está longe dessas realidades que são retratadas, é muito mais fácil colocar imediatamente uma etiqueta, não é? Não indo ao fundo da questão e não tentando perceber o porquê dessas situações acontecerem.”

Conhecedor da história do hip hop, José Mariño admite que o drill – variante mais recente – “é mais pesado”. “É sombria, explícita, pesada e muito mais reveladora de tensões, que são tensões sociais de verdade.” Mas o drill em Portugal é igual ao que se faz no mundo inteiro. Este não é um fenómeno nacional.

A importância que se dá ao drill é algo que José Mariño não percebe: “É música. Pronto. Há outros tipos. E também há música extrema, em termos de sonoridade e não só - no heavy metal, por exemplo. Há correntes que são satânicas ou que se aproximam disso”. Quem ouve drill “ouve porque ouve e porque gosta de música”.

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