No dia em que foi descomposto pela juíza, que o acusou de querer fazer passar a ideia de que ela tem "um défice cognitivo", José Sócrates procurou desmentir em tribunal a tese de que era amigo do antigo dono do BES, e que as interceções telefónicas em que foi apanhado provavam isso. Quando as escutas foram reproduzidas, ouviu-se algo que deixou a magistrada intrigada
E ao segundo dia de julgamento do Processo Marquês, a presidente do coletivo de juízes perdeu a paciência com José Sócrates. Após horas de apartes, como “está a perceber?” ou “achava que já tinha compreendido” e vários “vai deixar-me acabar?”, a magistrada Susana Seca interrompeu e desferiu ao ex-primeiro-ministro uma descompostura de minutos. "Geralmente, quando se faz cursos de formação comportamental nunca dizemos que a outra pessoa não está a compreender. Porque as pessoas ao princípio têm o mesmo nível de inteligência", disse, levando logo a protestos do principal arguido.
Enquanto José Sócrates dizia que se tinha “certamente” “expressado mal”, a juíza continuou com o raspanete. “Muito menos fazer crer que eu tenho um défice cognitivo.” Nesta altura, ouve-se o ex-governante a exprimir um “por amor de deus”. Cortando-lhe a palavra novamente, a juíza advertiu-o num tom mais combativo. “Não vai voltar a dizer que pensava que eu já tinha entendido ou que achava que o tribunal já tinha conhecimento. Isso é desrespeitoso com o tribunal. Não vai continuar nesse tom, nem usar expressões irónicas”, ordenou.
Sócrates ergueu os ombros e olhou em volta da sala. “A senhora juíza desculpe-me mas nunca tive a intenção de a diminuir intelectualmente”, afirmou, acrescentando que a única coisa que não entendia era como o tribunal poderia tratar de forma diferente o principal arguido do processo e o Ministério Público. Esta perplexidade, assumida pelo antigo primeiro-ministro, foi gerando tensão ao longo do dia e teve o seu auge uns momentos antes quando o tema passou para as escutas telefónicas que o apanharam a conversar com Ricardo Salgado.
Foi, aliás, Sócrates que trouxe o tema das escutas para o centro da sala de audiências. Pouco depois do intervalo para almoço, o antigo primeiro-ministro perguntou a uma funcionária do tribunal se haveria condições para exibir algumas das interceções telefónicas que constam do extenso leque de provas contra o ex-governante. Foi informado que sim, embora isso dependa da autorização da juíza. E, enquanto argumentava que a sua relação com o antigo líder do BES era “cerimoniosa”, que não tinham “amigos em comum” e que as escutas provariam exatamente isso, Sócrates ouviu do outro lado da sala o procurador Rui Real a pedir à juíza que passasse as escutas sobre este tema.
"Não é 'ele' é 'o senhor'!"
Nesse momento, Sócrates aproximou-se da barra e, de dedo em riste, exaltou-se com Rui Real. "O senhor procurador se quer usar a palavra, pede à juíza! Eu estou no uso da palavra, quero acabar!”. Audível foi também o comentário do magistrado que, à juíza, referiu “não é ele que dita as regras”, o que fez com que Sócrates se irritasse ainda mais: ”É o senhor, não é ele”, disse, pedindo deferência.
Sempre sublinhando que não tinha qualquer relação de amizade com Ricardo Salgado, Sócrates ouviu pouco depois a juíza a dar a ordem para que se transmitisse as escutas. Imediatamente, ouviu-se a voz do ex-primeiro-ministro numa chamada gravada no final de 2013. “Meu amigo”, diz Sócrates a Salgado. “Tenho simpatia por estes seis anos em que fui primeiro-ministro, tenho ideia que sempre foi competente e capaz e queria deixar-lhe uma palavra de ânimo." Ouve-se do outro lado Ricardo Salgado a agradecer e a sublinhar que não iria “baixar os braços” e que iria “continuar a lutar” - a chamada foi gravada num momento em que já era público as graves dificuldades financeiras do BES, que já estava tecnicamente falido.
Sócrates é ouvido logo a seguir, numa diferente escuta apanhada em 2014. “Meu caro amigo”, dirige-se novamente a Salgado. “É um dos grandes banqueiros deste país. Quis dar-lhe uma palavra de amizade e de consideração. Lembro-me muitas vezes da gentileza e da simpatia que tiveram comigo." Depois, são ouvidas outras duas escutas, sendo que numa delas Salgado, a deparar-se com uma Comissão de Inquérito à queda do BES, ouve de José Sócrates que é “inacreditável” e “destrutivo” ver Passos Coelho - à época primeiro-ministro - “a dançar em cima da campa de um enorme grupo português”. Noutra interceção telefónica são ouvidos a marcar um jantar com a presença “de um amigo em comum” - que será Henrique Granadeiro, ex-administrador da PT.
"Meu caro amigo"...
Quando se fez novamente silêncio na sala, a juíza mostrou-se intrigada, já que as conversas entre os dois indicavam alguma relação de proximidade. "Destes contactos poderá ressaltar alguma familiaridade”, nomeadamente pela “combinação de jantares, pelo contacto com familiares próximos, dando a entender que até já tinham tido contactos mais próximos”. Sócrates mostrou-se indignado. "Nestas conversas, fica patente que eu não tinha o telefone de Ricardo Salgado nem nunca tive, eu não sabia onde morava Ricardo Salgado, estava a combinar um jantar que não chegou a acontecer.”
A juíza insistiu na incongruência de tratar com amizade Salgado nos telefonemas e depois dizer que não tinha uma relação de proximidade. "Não é incongruência, é grandeza da minha parte. Essas conversas têm dois momentos. É o momento em que liguei por simpatia e, depois, da parte dele, ele liga por engano e eu tratei-o com a cordialidade de uma pessoa que sabe que está naquela situação trata a outra. É uma grandeza recíproca." Já fora do Campus de Justiça, Sócrates viria a insistir nesta tese: “Tratar alguém por ‘Oh, meu caro amigo’ não significa amizade”. “É assim tão difícil compreender?”.
O nível de tensão continuou ao longo de todo o dia, com Sócrates a irritar-se ou a provocar a juíza em grande parte das perguntas que lhe eram dirigidas. Especialmente depois de, no início da sessão, Sócrates ter tentado usar o seu tempo para ler depoimentos que constavam da decisão instrutória de Ivo Rosa, em 2021, o que levou a juíza a adverti-lo já que esses depoimentos serão ouvidos na fase de interrogação das testemunhas e, expressos agora, podem levar o tribunal a fazer um pré-juízo sobre elas. "A prova produz-se em audiência de julgamento e quem avalia a prova é o tribunal. (...) Basta dizer os senhores tais e tais votaram contra, porque estas pessoas estão arroladas como testemunhas e é nesse momento que vêm explicar aquilo que disseram.”
O protesto de Sócrates sobre esta advertência foi quase imediato. "Desculpe", disse Sócrates, fitando diretamente a juíza, "eu não vou seguir a sua orientação". "Vai", ordenou a juíza". "Quer cortar a minha palavra", criticou Sócrates. "Não, mas os depoimentos têm regras. Se o senhor for ler todos os depoimentos não saímos daqui."
A juíza viria, mais tarde, a advertir novamente José Sócrates - mas desta vez pela forma como classificou a investigação do Ministério Público. Aconteceu quando Sócrates apelidou pela terceira vez a acusação de “amalucada”, tendo ouvido da juíza um pedido para que evite tais expressões. Aí, o ex-primeiro-ministro tentou outro adjetivo: “estapafúrdia”. Também foi barrado, com Susana Seca a sublinhar que o arguido "está a poder manifestar a sua discordância", mas "adjetivos devem ser evitados o máximo possível".
Sócrates exaltou-se novamente: "Quando não se tem fundamento e se inventa, isso é uma violação grande das regras do Estado Democrático". E vociferou "SEM NENHUM FUNDAMENTO" antes de regressar a um tom de voz neutro e pedir desculpa. "Se acha que isto não é justificação para adjetivar, então lamento."
No fim, Sócrates acabou por comentar o estado das relações com a presidente do Coletivo de Juízes. “Achei muito lamentável esta hostilidade. Acho que ambos temos a culpa."
O ex-primeiro-ministro vai voltar a tribunal esta quarta-feira para uma sessão dedicada a esclarecimentos dos restantes advogados relativamente àquilo que José Sócrates disse sobre o Grupo Espírito Santo e sobre a sua alegada influência em decisões da Portugal Telecom. “Estou a prestar declarações com a maior das boas-fés, porque poderia ter-me recusado, e quero que isso seja creditado a meu favor. Eu responderei a tudo”, prometeu.