Ricardo Salgado, Vale do Lobo e Grupo Lena: a rota dos 34 milhões de euros que terão chegado a José Sócrates

3 jul, 07:30
José Sócrates (Lusa/António Pedro Santos)

Antigo primeiro-ministro enfrenta esta quinta-feira o primeiro dia de julgamento do processo Marquês, onde é acusado de 22 crimes, incluindo três de corrupção. Na decisão da Relação que o leva dez anos depois a tribunal foi crucial um método de investigação: "Seguir o rasto do dinheiro"

Trinta e quatro milhões de euros. É este um dos números-chave do julgamento do Processo Marquês, que arranca esta quinta-feira e que, mais de uma década depois, leva José Sócrates ao banco dos réus como principal arguido, acusado de vários crimes de corrupção. Cabe agora ao Ministério Público conseguir provar à juíza Susana Seca que este montante pertenceu ao antigo primeiro-ministro e que foi recebido como contrapartida por ter favorecido os interesses do Grupo Espírito Santo, do Grupo Lena e do empreendimento Vale do Lobo, enquanto esteve no governo.

Para isso, o Ministério Público pode vir a seguir a mesma linha de raciocínio que o Tribunal da Relação tomou quando decidiu ir totalmente contra a decisão instrutória de Ivo Rosa - que ilibou Sócrates e grande parte dos envolvidos no processo de crimes de corrupção - e determinar que o antigo primeiro-ministro fosse julgado nos moldes da acusação original. Isto é, por 31 crimes, incluindo corrupção. Na altura, a estratégia da Relação para sustentar foi esta: "Seguir o rasto ao dinheiro".

E esse caminho levou-os a operações e manobras feitas por Ricardo Salgado há 20 anos com o intuito de reforçar o controlo do Grupo Espírito Santo na Portugal Telecom (PT), uma das maiores financiadoras do BES, banco que detinha em 2005 cerca de 8,3% da companhia de telecomunicações.

E fê-lo colocando pessoas da sua confiança em cargos de topo - Henrique Granadeiro foi escolhido pelo próprio dono do BES para liderar a PT -, mas também utilizando sociedades ocultas que controlava para comprar mais ações na empresa. Era o caso da Telexpress, que lhe permitiu contornar o limite estatutário de 10% nos direitos de voto e garantir a nomeação de administradores alinhados com os seus interesses.

Há, no entanto, em meados de 2006, um acontecimento que, como descreve a acusação, “colocou em causa o monopólio” de Ricardo Salgado na PT: uma Oferta Pública de Aquisição (OPA) por parte da Sonae, controlada, na altura, por Belmiro de Azevedo. Para a travar, Ricardo Salgado terá agido em dois lados.

Por um lado, alegadamente influenciando o primeiro-ministro à data, José Sócrates, a caso necessário fazer-se valer do uso da ‘Golden Share’ que lhe dava direito de veto conferido ao Estado nas operações que viessem a desencadear a OPA da Sonae, em contrapartida do “pagamento de uma quantia avultada”. 

Por outro, recorrendo a dois homens da sua confiança dentro da PT: Henrique Granadeiro e Zeinal Bava, ambos acusados de crimes de corrupção, branqueamento e fraude fiscal. Os dois terão aceitado, a troco de pagamentos vindos do ‘saco azul’ do BES, pressionar os acionistas a oporem-se à OPA, nomeadamente lançando um pacote de remunerações no valor de 5,3 milhões de euros caso votassem ao lado de Salgado. Também Armando Vara, acusado de um cirme de corrupção e um crime de branqueamento de capitais, terá sido influenciado por Sócrates a usar a sua posição como vice-presidente da Caixa Geral de Depósitos para travar este negócio, que acabou chumbado em 2007. 

O 'monopólio' em causa

Segundo o Ministério Público, a relação de interajuda entre Sócrates e Salgado não ficaria por aqui, tendo o antigo primeiro-ministro sido uma peça fundamental para influenciar a PT a vender, em 2010, a sua participação na Vivo e a investir na brasileira Oi, num negócio que permitira ao Grupo Espírito Santo, já a deparar-se com graves dificuldades financeiras, alcançar um balão de oxigénio.

Por tudo isto, a acusação relata que o Grupo Espírito Santo, através de um elaborado esquema de offshores, transferiu, entre maio de 2006 e dezembro de 2010, cerca de 29 milhões de euros para contas na Suíça. Não sendo detidas pelo antigo primeiro-ministro, eram, na prática, controladas por ele. “Temos como certo que esse valor pertencia ao arguido José Sócrates”, segundo escreveu o coletivo de juízes da Relação que determinou o julgamento por corrupção.

Esses 29 milhões de euros continuam hoje a ser exigidos de volta pelos credores da Espírito Santo International, a dona do saco azul do GES de onde veio o dinheiro que alegadamente chegou a José Sócrates. A antiga holding de Salgado, hoje falida, tem um processo cível em curso em que pretende ser indemnizada em cerca de 70 milhões de euros por vários dos nomes que constam na acusação do processo Marquês. 

O dinheiro que vinha do GES chegou, inicialmente, a contas que pertenciam ao primo de José Sócrates, José Paulo - também arguido no processo - e, posteriormente, quando o nome deste se viu envolvido no caso Freeport, o dinheiro foi movido para contas do amigo de longa data de Sócrates, Carlos Santos Silva. Segundo o Ministério Público, cuja tese foi confirmada pelo Tribunal da Relação, estes fundos eram na realidade de José Sócrates, que terá utilizado os restantes arguidos como testas de ferro. Como exemplo, citado no acórdão da Relação, o antigo primeiro-ministro recebeu, entre 2008 e 2014, milhões de euros, usados, entre outras coisas, para a compra de milhares de exemplares do seu livro e de obras de artistas como Almada Negreiros e Uwe Lindau.

Acredita a acusação que a maior parte dos 34 milhões de euros que Sócrates alegadamente recebeu resultaram de esquemas que favoreciam os interesses de Ricardo Salgado. No entanto, também segundo a acusação, o antigo primeiro-ministro ainda recebeu contrapartidas relacionadas com outros negócios suspeitos, relacionados nomeadamente com o grupo de construção civil Lena e do empreendimento turístico de Vale do Lobo, no Algarve.

Um dos pontos essenciais para o julgamento que começa esta quinta-feira é a quantidade de contratos públicos firmados entre o governo de Sócrates e o Grupo Lena, nomeadamente para obras da Parque Escolar, projetos para um novo aeroporto em Lisboa ou a construção do troço Poceirão-Caia do TGV - que foi atribuído a um consórcio do qual a empresa que Joaquim Barroca - também acusado de crimes de corrupção - controlava. Estima o Ministério Público que, como contrapartida para a alegada facilitação destes e de outros negócios, José Sócrates tenha recebido mais de 2,8 milhões de euros deste grupo. 

Já no que diz respeito ao empreendimento Vale do Lobo, os factos imputados na acusação envolvem Armando Vara, José Sócrates; o ex-administrador do empreendimento imobiliário de luxo Rui Horta e Costa; e o ex-diretor Gaspar Ferreira. No cerne desta questão está uma alegada influência dos dois dirigentes políticos para que a Caixa-Geral de Depósitos financiasse um empréstimo de 300 milhões de euros para que Gaspar Ferreira conseguisse adquirir o luxuoso empreendimento no Algarve. Em troca, alega o MP, Sócrates e Vara terão recebido ‘luvas’ no valor de dois milhões de euros.

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