Antigo primeiro-ministro diz compreender a decisão do advogado, que renunciou por “razões deontológicas”, e acusa o tribunal de o “privar de direitos” e “desrespeitar o princípio da ampla defesa”
José Sócrates reagiu esta segunda-feira à renúncia do advogado Pedro Delille, que o representava há 11 anos no processo Operação Marquês. O antigo primeiro-ministro lamentou a saída de quem descreve como “um grande advogado, um grande companheiro e um grande amigo”, e apontou críticas duras à juíza-presidente do tribunal, a quem acusa de ter “destratado” a defesa.
“Vejo com tristeza, como calcula, e lamento muito o ponto a que chegamos”, começou por dizer José Sócrates, sublinhando que “o tribunal desenvolveu uma tamanha hostilidade à minha defesa e ao meu advogado, que ele achou que tinha chegado a um ponto em que isso ofendia a sua dignidade profissional e também a capacidade para exercer convenientemente a minha defesa”.
A decisão de Pedro Delille foi formalizada na manhã desta terça-feira, através de uma carta enviada ao tribunal. No documento, a que a CNN Portugal teve acesso, o advogado invoca “razões deontológicas”, afirmando ter ficado “definitiva e absolutamente convencido” de que continuar no julgamento “violenta em termos insuportáveis a minha consciência e a ética que me imponho, a minha independência, integridade e dignidade profissional e pessoal”.
“Repudio e recuso participar e validar, um minuto mais que seja, neste simulacro de julgamento, neste ‘julgamento de brincar’”, lê-se ainda na carta, onde Delille informa que a renúncia tem “efeitos imediatos”.
Segundo apurou a CNN Portugal, o conflito entre o advogado e o coletivo de juízes, especialmente com a juíza-presidente, intensificou-se na última sessão, após um incidente relacionado com o depoimento da mãe de José Sócrates.
Sobre este episódio, o antigo governante explicou que a sua mãe, atualmente com 94 anos, não compareceu ao tribunal por recomendação médica. “Nós perguntámos ao médico se a minha mãe estava em condições de poder depor e o médico recomendou que não o fizesse”, sublinhou, acrescentando que “achei que era suficiente comunicar isso ao tribunal, porque a minha mãe tem o direito de não prestar declarações e não tem condições de saúde para enfrentar toda a carga que naturalmente envolve uma testemunha como a minha mãe”.
Foi assim que, na semana passada, o advogado apresentou um atestado médico, tendo a juíza considerado a justificação uma “brincadeira”. Sócrates contesta a versão. “Aquilo que a senhora juíza fez ao destratar o meu advogado e considerar que ele estava a incitar uma qualquer espécie de brincadeira a propósito do depoimento da minha mãe, pura e simplesmente não é verdadeiro.”
Segundo o ex-primeiro-ministro, a magistrada “equivocou-se e maltratou as pessoas sem nenhuma razão”, o que levou Delille a entender que “isso ia para lá do limite aceitável, porque pôs em causa a sua dignidade pessoal e as condições para o exercício da sua função”.
“As juízas foram tão hostis, ou mais propriamente a juíza-presidente, que achou que devia construir um título para os jornais com o ‘Acabou a brincadeira’. E ofendeu com isso as pessoas”, acusou Sócrates, considerando o episódio “a gota de água”.
O antigo chefe do Governo também criticou a reação do tribunal à saída do advogado: “A reação do tribunal diz tudo. Achou que devia continuar sem que nada acontecesse e, para isso, nomeou um defensor oficioso, apesar deste ter dito que precisava ao menos de 48 horas para se inteirar do processo. A senhora juíza achou que não.”
“Para a senhora juíza, o direito da defesa é irrelevante, não conta. Na prática, para a Justiça portuguesa, eu perdi todos os meus direitos há mais de 11 anos”, afirmou, lembrando que o processo se arrasta desde 2014.
Sobre a possibilidade de esta decisão fragilizar a sua posição em tribunal, Sócrates respondeu de forma direta: “O tribunal tem o que quer.”
Atualmente ainda sem advogado, como o próprio fez questão de confirmar aos jornalistas, José Sócrates reiterou que “o meu advogado é completamente inocente, nunca fez nada que desrespeitasse o tribunal” e que “aquilo não foi nenhuma brincadeira”. “Eu estava a defender a minha mãe, como é o meu dever. Se fosse a mãe de algum deles, compreenderiam. Como é a mãe do Sócrates, não tem direitos.”
Pedro Delille representava Sócrates há 11 anos, desde que o antigo governante foi detido à chegada a Lisboa, mal aterrou de um voo proveniente de Paris.