Numa sessão marcada por versões tão díspares que levaram a juíza a lançar um aviso, o Ministério Público tentou provar que André Figueiredo, ex-deputado do PS e amigo próximo de José Sócrates, estava envolvido numa operação de compra maciça de livros para lançar o nome do ex-chefe do Governo para o top de bestsellers nacionais. A testemunha negou tudo e, confrontada com escutas, referiu que a operação em discussão era uma candidatura a Belém
Eram milhares? Eram livros? Ou eram os sintomas da máquina do Partido Socialista a mexer em torno de uma candidatura de José Sócrates a Presidente da República? André Figueiredo, ex-deputado do PS e um dos amigos mais próximos de Sócrates, foi chamado a testemunhar no Processo Marquês e jurou que as escutas em que foi apanhado a discutir com o antigo chefe do Governo alegadas remessas de dinheiro para fazer esgotar o livro que aquele ia publicar eram, na verdade, conversas sobre a preparação de uma candidatura presidencial.
André Figueiredo, deputado pelo PS entre 2011 e 2015, foi um dos principais envolvidos na campanha de lançamento de “A Confiança do Mundo”, lançado em 2013, por Sócrates. O livro - que era na prática a dissertação de mestrado do ex-PM na Sciences Po, em Paris - era também uma das rodas num projeto político em andamento, descreveu a testemunha que, para o Ministério Público, era o “influencer do sr. Eng. José Sócrates” e uma das pessoas da sua confiança política.
Esse sinal foi sendo dado pela testemunha ao ser confrontado com várias interceções telefónicas durante os últimos preparativos para o lançamento do livro, em outubro de 2013. Escutas essas que, para o Ministério Público, apontavam para o facto de André Figueiredo ter tido conhecimento direto de uma “operação de reserva” maciça de livros, combinada entre José Sócrates e Carlos Santos Silva, que utilizariam o dinheiro das alegadas ‘luvas’ pagas por favores do antigo primeiro-ministro ao grupo Lena e ao Grupo Espírito Santo, de forma a garantir que o manuscrito iria para o top de vendas.
Esta tese foi, no entanto, completamente negada por André Figueiredo que, ao longo da cerca de hora e meia em que testemunhou no Juízo Central Criminal de Lisboa, lançou farpas ao Ministério Público por, na acusação deduzida, ter salientado que Santos Silva e Sócrates falavam em código para se referirem a pagamentos e a entregas de dinheiro ilícitas. Um desses códigos seria: “alterações”.
Um desses momentos aconteceu, de forma intensa, quando o Ministério Público pediu ao coletivo de juízes, liderado por Susana Seca, a reprodução de duas escutas, separadas por uma hora de diferença, onde se ouvia uma conversa entre Sócrates e o na altura deputado do PS a conversar sobre alterações no seu livro. No último telefonema, é possível ouvir Sócrates a perguntar ao amigo sobre ‘“quantas alterações tinha naquele capítulo”, ao que André Figueiredo responde: “sete”. “Tá bem”, responde.
Logo a seguir, o procurador, salienta que as duas chamadas foram feitas com uma diferença de uma hora entre elas e pergunta a André Figueiredo “como é que conseguiu descobrir em tão pouco tempo as sete alterações”. “Ó, senhor procurador as alterações que eram feitas, eram feitas a outra cor”, responde num tom provocatório a testemunha. Aqui, a juíza Susana Seca intervém e pede que o magistrado esclareça por que está tão interessado nas sete correções.
“A nossa convicção é que seriam 7 mil euros”, responde Rómulo Mateus, reforçando logo a seguir após ser questionado pela testemunha: “A convicção da acusação são 7 mil euros.” “Mas não são”, protesta André Figueiredo, garantindo que recebera o manuscrito num envelope A5, e verificava a sua situação. “Eu explico-lhe (…), se fosse ele a organizar, o livro nunca mais estava pronto, era eu que tinha de meter ordem naquilo.”
Minutos depois, o procurador pede a reprodução de uma nova escuta. Nesta conversa, José Sócrates pergunta a André Figueiredo se “aquela operação já está em marcha”. Ao que Figueiredo destaca: “Acha que eu brinco em serviço?”. Depois, questiona a testemunha sobre se aquela troca estava relacionada com uma “operação de reserva” de livros. “Senhor procurador, o que ouvimos nesta conversa”, refere, pode ter sido o “início dos contactos para a recolha de assinaturas para a candidatura de José Sócrates a Presidente da República”.
O ‘brincar em serviço’ dito pelo ex-deputado leva-o a inclinar-se “claramente para o início da operação de candidatura a Presidente da República”, com o objetivo de “ter os presidentes de federação informados para montar a máquina para obtenção das proposituras”. “O senhor engenheiro queria apresentar 10 vezes mais o valor mínimo” dessas assinaturas para a formalização de uma candidatura.
Entre os preparativos para essa candidatura, estava também a necessidade de enviar postais festivos de Natal e Ano Novo, revelou André Figueiredo, acrescentando que o projeto assentava no slogan ‘Defender Portugal’.
Ainda nesse confronto de narrativas, o tribunal avança para mais uma escuta pedida pelo Ministério Público por nela estar evidente, como se lê na acusação, que Sócrates tentou mobilizar várias pessoas para fazerem uma reserva maciça, simultânea e ininterrupta, através da internet, para a reserva de livros”, gerando um “tal fenómeno” que a comunicação social fosse a correr atrás.
Isso acabou por não acontecer e o livro foi alvo de críticas medíocres pelos jornais e por várias plataformas especializadas. Mas, no dia 10 de outubro de 2013, segundo o MP, Sócrates tinha essa expectativa e terá telefonado ao amigo chateado por os livros não esgotaram em pré-venda. “Aquela merda ainda não entupiu”, disse. “Vamos entupir aquilo”, “Temos que entupir, estás a perceber?”.
Perante isso, o procurador vinca ainda mais: “A sequência de conversa que ouvimos tem a ver com reservas de livros na internet?”. “Não, claramente”, responde, garantindo que aquela conversa tinha a ver apenas com a distribuição de convites para a apresentação do livro de Sócrates no Museu da Eletricidade. “Não estava organizar pré-vendas?”, insiste o magistrado. “Não, de todo”, reitera André Figueiredo.
Na sequência destas versões tão díspares, o procurador volta à mesma estratégia e pede a Susana Seca que passe mais uma escuta. Mas a juíza desta vez barra a sua intenção, dando-lhe um raspanete: “As escutas são um meio subsidiário de prova, se o relato da testemunha não coincidir, nós temos de partir do depoimento para a interceção, e não o contrário.” “O conteúdo de uma interceção telefónica não é um facto, nos não construímos uma acusação com escutas telefónicas. A testemunha está a fazer uma descrição dos factos completamente distinta da acusação”, reforçou.
O tribunal ouviu ainda durante a parte da manhã Elisabete Bernardo que descreveu como Sócrates era cliente habitual no hotel Pine Cliffs, em Albufeira. Para a tarde, está prevista a audição da jornalista Fernanda Câncio, que pertenceu ao círculo pessoal do antigo primeiro-ministro à época dos factos em julgamento no processo Marquês.