Houve "mais um acontecimento" que coloca o julgamento de Sócrates "nos Anais de História" - e estes são os benefícios e prejuízos para o arguido

4 nov, 22:26
José Sócrates

O ex-primeiro-ministro perdeu o seu advogado: depois de 11 anos, Pedro Delille deixou de representar José Sócrates. A juíza nomeou um advogado oficioso, advogado esse que afirmou que não se sentia “habilitado” para defender o principal arguido - e por isso pediu 48 horas, a juíza não aceitou. Mas no meio de novo turbilhão há um aspeto "positivo" que pode beneficiar José Sócrates

"Não é muito comum haver uma renúncia a meio de um julgamento e, quando acontece, a razão mais comum é ter havido uma perda de confiança entre o advogado e o cliente - problemas na passagem de informação, uma mudança de estratégia, etc.. Invocar a dinâmica com o tribunal é algo muito mais raro", explica à CNN Portugal o advogado Pedro Duro, especialista em Direito Penal.

Sem querer comentar a atuação do seu colega Pedro Delille - que esta terça-feira renunciou ao mandato da defesa de José Sócrates na Operação Marquês, deixando assim o antigo primeiro-ministro sem advogado no julgamento em que responde por 28 crimes, entre os quais corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal -, Pedro Duro limita-se a concluir que Pedro Delille fez o que o considerava ser mais acertado: "Alegou razões deontológicas, diz que se sente constrangido na sua dignidade. O advogado pode sentir que a sua continuação no caso pode ser prejudicial para o seu cliente".

Delille explicou os seus motivos numa carta que enviou ao coletivo de juízes: "Fiquei definitiva e absolutamente convencido, após o episódio da passada quinta-feira, que soma a tudo o resto oportunamente denunciado, de que continuar neste julgamento violenta em termos insuportáveis a minha consciência e a ética que me imponho, a minha independência, integridade e dignidade profissional e pessoal - repudio e recuso participar e validar, um minuto mais que seja, neste simulacro de julgamento."

O advogado António Raposo Subtíl explica que "a questão deontológica pode ter duas leituras - pode ser incompatibilidade com o cliente ou pode ter tido conhecimento de alguma informação que provoca a sua incompatibilidade". Já incompatibilidade com o tribunal parece-lhe algo mais difícil de aceitar: "O advogado é obrigado a suportar todos os incómodos para defender o cliente".

João Massano, bastonário da Ordem dos Advogados, também se recusa a fazer qualquer avaliação dos motivos de Pedro Delille: "O advogado sente que não tem condições para continuar. Foi o juízo que ele fez".

O que se ganha e o que se perde com uma mudança destas

Pedro Delille acompanha José Sócrates neste processo há 11 anos. À CNN Portugal, João Massano afirma que a saída de Pedro Delille tem, à partida "uma consequência que é clara": "Não há outro advogado que tenha o conhecimento do processo da defesa que tem o advogado Pedro Delille, ele está com o processo desde o início". E explica: "Em abstrato, é sempre prejudicial haver uma substituição a meio de um julgamento. Neste caso, que estamos perante um processo muito complexo, isso é ainda mais verdade. Estamos a falar de teras e teras de informação. Não há ninguém que consiga entrar a meio num processo desta dimensão e fazer o mesmo que estava a ser feito."

O jurista António Raposo Subtil concorda. "Em termos técnicos, a mudança de advogado não tem de afetar o processo. Não há nenhum prejuízo. É nomeado outro advogado, que, naturalmente, necessita de obter todas as informações e prossegue com o caso. Dado que já estamos numa fase de julgamento, o advogado limitar-se-á a contraditar as testemunhas." António Raposo Subtil realça que, dada a complexidade deste processo, o novo advogado "poderá ter dificuldades no domínio dos temas - inclui analises financeiras, análise jurídicas, documentos estrangeiros, é de facto um processo complexo".

Pedro Duro concorda que a mudança de advogado provoca sempre um "problema de histórico e falta de informação". "O novo advogado vai ter de recuperar toda a informação que perdeu. Existe a obrigação de os advogados anteriores passarem a informação aos novos. E o próprio cliente, que neste caso é conhecedor do processo, também pode colaborar nesse processo. Isto tem um impacto no imediato, mas penso que é recuperável porque este é um julgamento longo. Estamos a falar de um julgamento que ainda vai demorar muito tempo."

Mas há um ponto que até pode ser positivo para o arguido: "Por um lado perde-se o lastro, por outro lado alguém vai olhar para o processo com uma visão diferente. E isso pode ser positivo".

"A perceção de que esta manobra podia ser dilatória"

Uma primeira consequência ficou imediatamente clara: o defensor oficioso nomeado pelo tribunal para representar José Sócrates afirmou que não se sentia “habilitado” para defender o principal arguido. José Manuel Ramos pediu 48 horas para se inteirar do processo, mas a juíza não aceitou - e o resultado ficou à vista na sessão desta terça-feira de manhã, quando o advogado foi incapaz de contrainterrogar Luís Campos e Cunha, antigo ministro das Finanças de José Sócrates.

João Massano explica que "um advogado tem o dever de assegurar a defesa pelo menos durante 20 dias e terá de assegurá-la até à substituição". "Isto é o que costuma acontecer. Pedro Delille entendeu que não tinha condições para fazê-lo, não nos cabe a nós questionar isso-"

Por seu lado, aponta o bastonário, "o engenheiro Sócrates entendeu que precisava de tempo para substituir o seu advogado". "A magistrada terá analisado a situação e não concordou, portanto nomeou um advogado oficioso, também é legítimo fazê-lo."

Pedro Duro diz que “pode ter havido uma perceção de que esta manobra podia ser dilatória”, ou seja, uma  estratégia para adiar ou atrasar o andamento do processo judicial. “Se houvesse uma dinâmica delatória das denúncias, o juiz não podia aceitar, o processo não pode ficar parado. Em regra, dependendo da dimensão do processo, deve ser dado algum tempo para que os advogados se possam inteirar do processo. Isso pode ser meia hora, uma hora, no caso de processos simples. Neste caso, pedir um prazo de 48 horas não é exagerado", afirma Pedro Duro.

António Raposo Subtil concorda: "Não é razoável obrigar a um advogado que assuma a defesa sem preparação. Se um advogado oficioso pede tempo para estudar o processo, em regra isso deve ser-lhe concedido".

Pedro Duro considera que "o risco para o tribunal é terem de se repetir os atos realizados nestas sessões". "O novo advogado pode invocar a invalidade dos atos praticados e, se tal for recusado, recorre para um tribunal superior. A circunstância de não ter sido dado tempo pode traduzir-se na prática numa inexistência de patrocínio, o que é inadmissível", explica Pedro Duro. "A consequência seria inutilização dos atos ou a sua repetição. Pode acontecer, é um risco." Ou seja, levaria a que se perdesse muito mais tempo do que se tivesse havido um adiamento.

João Massano considera que "este processo não é um processo normal, vai seguramente para os Anais de História - não só por ser o primeiro ex-primeiro-ministro a ser julgado, mas por todas as situações processuais que têm acontecido durante o julgamento. Esta é apenas mais uma", diz. "Isto não pode ser isolado das circunstâncias que o rodeiam. É um julgamento com uma pressão mediática muito grande e isso não deixa de ter efeitos. Todos os atos estão permanentemente debaixo de escrutínio. Este julgamento é único."

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