Ainda os ouviremos dizer que quem criticar a prescrição do caso Sócrates está do lado do Chega

26 abr 2023, 19:40
José Sócrates

Costa culpa a comunicação social pela visibilidade do Chega e Santos Silva ajuda o partido de extrema-direita a vitimizar-se, mas a nenhum parece ocorrer que estão a replicar o mesmo populismo de quem denigre e nada constrói. Podem começar por perceber o impacto da prescrição de Sócrates. E anunciar a necessidade de uma reforma da justiça

A IMENSA TRAGÉDIA SÓCRATES
ANÁLISE | POR PEDRO SANTOS GUERREIRO

Conhece a equação “Comédia igual a tragédia mais tempo”? Pois bem, dez anos e meio não é tempo que chegue para rirmos de termos Sócrates acusado de crimes em funções – mas é tempo que baste para eles prescreverem. A babélica, famélica, crudelíssima Operação Marquês tem afinal extinção anunciada. Depois queixamo-nos do tropel eleitoral da extrema-direita. Afinal, em Portugal a equação é outra: prescrição igual a escândalo mais tempo. Perda de tempo.

Não tragam montanhas nem parideiras nem ratos, este processo não se cede a lugar-comum. Até àquela noite de novembro de 2014 nunca o país tinha visto daquilo, um ex-primeiro-ministro detido à chegada a um aeroporto, com jornalistas de plantão, suspeito de crimes medonhos, seriam 31. O que hoje se nos aloja como quotidiano foi então um choque, pusemos as mãos na cabeça e perguntámos “o que será deste país agora?”. Um ex-primeiro-ministro detido. Depois, preso.

Cito de memória Daniel Oliveira, que naqueles dias escreveu no Expresso sobre o pavor de não saber o que seria pior: se um dia Sócrates ser condenado e confirmarmos que tínhamos tido um bandido com maioria absoluta no cume do poder executivo democrático; ou se um dia Sócrates ser inocentado e confirmarmos que tínhamos um sistema de justiça vorazmente enlouquecido por intuições conspirativas. Se me lembro bem, Daniel Oliveira esqueceu-se de um terceiro cenário também pior.

Este.

A prescrição.

A prescrição deixa para sempre a doença da suspeita e transforma a suspeita em doença. A suspeita sobre José Sócrates – que poderá aliás acabar por processar o Estado – mas também a suspeita sobre o sistema.

Dirão que é justiça dos ricos. Questionarão as competências, os meios, as nomeações, as leis, quem as faz e quem as executa. Especularão que houve um pacto de regime para nunca julgar Sócrates. Citarão “As Bruxas de Salém”, de Arthur Miller, “agora são todos santos os que acusam?”.

A prescrição serve a cobardia da parte do sistema que tem medo, que faz cálculos, que prefere pôr pedras nos assuntos em vez de as levantar. A prescrição é inaceitável num caso como este. Porque ela não condena, não absolve, nem sequer arquiva por falta de provas, a prescrição fica como uma suspensão, uma fantasmagoria - cito da mesma peça, “a bruxaria é um crime invisível, não é verdade?”.

Comunicado de imprensa da PGR anunciando a detenção de José Sócrates, a 22 de novembro de 2014.

Não é possível ter um ex-primeiro-ministro detido, preso, acusado e depois ele não ser julgado, não ser condenado nem inocentado. Não é justiça, nem para o país nem para José Sócrates. É o sistema a esgotar o plafond do cartão de crédito no banco da confiança dos cidadãos. É aceitar o erro de que os escândalos bastam como dreno coletivo e que a penitência social serve como sentença individual.

O tempo cura tudo?

Os receios de prescrição não são novos, mas são de agora as notícias que a delimitam. Será, na mais longeva hipótese, em maio de 2025. É quase certo: os dois anos pela frente não dão para julgar e sentenciar. Ainda nem há decisão para julgamento, saber qual a “versão” que o Tribunal da Relação vai “escolher”, se a de Ivo Rosa ou de Rosário Teixeira. Depois disso, Sócrates ainda poderá contestar a decisão. E a areia da ampulheta escorrerá até esvaziar o calendário possível.

Claro que isto só é possível quando há bons advogados, mas este nem parece ser daqueles casos de uso abusivo de expedientes dilatórios. As demoras estiveram do lado do Estado, começando pelos quatro anos para sair a acusação. Depois, o despacho de Ivo Rosa, que destruiu essa mesma acusação, levou ao recurso do Ministério Público. E o tempo a passar.

Houve um erro claro no processo, o de ser tão "mega" e megalómano. O tempo foi mostrando que não havia provas inequívocas sobre vários dos tentáculos: quanto a Vale de Lobo; quanto às casas da Venezuela; mesmo quanto ao BES/PT. E nisto a areia a escorrer, num Estado que insiste em não fazer na justiça o que fez noutras áreas, reformar, atrever-se, dar meios de investigação a sério.

Será fácil falar pelo retrovisor, mas hoje parece evidente que o caso deveria ter sido simplificado em vez de densificado. Dois dos ramos do processo eram mais concretos: na suspeita de que a casa de Paris pertencia de facto a José Sócrates; e na de que ele recebeu dinheiros que nunca declarou ao fisco. Se a investigação se tivesse furtado ao calor que dilata os corpos, talvez tivesse já chegado a julgamento. Como teria chegado a julgamento se o despacho de Ivo Rosa fosse de pronúncia dos 31 crimes.

Todos perdem menos um: ele, esse

Se alguém pensa que a prescrição é melhor para não dar espaço ao crescimento dos antissistema que cavalgariam tanto uma condenação quanto uma absolvição de Sócrates, engana-se. A prescrição preanunciada só alimentará, como n’ “As Bruxas de Salém”, todas as “fúrias do fanatismo e da paranoia”.

António Costa pode expiar a responsabilidade de três poderes culpando o quarto, os extremistas rebolam com isso. É do incêndio, do oportunismo e da destruição que a extrema-direita alimenta os seus estômagos eleitorais, com os dedos a esgravatar feridas e fazendo biópsias ao pus. O ardil é tão competente que o próprio André Ventura já se apropriou da crítica: ainda ouviremos o mesmo governo que se enrodilha na TAP, o mesmo presidente da Assembleia que ajuda o Chega a vitimizar-se e o mesmo primeiro-ministro que é incapaz de anunciar uma reforma da justiça, ainda os ouviremos dizer que quem criticar a prescrição do caso Marquês está do lado do Chega.

À política o que é da política, à justiça o que é da injustiça?

O PS descobriu há um ano a eficácia de fazer campanha eleitoral através do contraste com o Chega. Engana-se quanto ao antídoto para a sua decrepitude, mas isso é assunto para outros textos. Aqui interessa frisar que estão a querer fazer de outros os causadores das consequências que o sistema contra si mesmo está a provocar. “Hoje, infelizmente, até à hora da nossa queda, ainda acreditamos que somos a mais bela figura das nossas vidas. E, quando chega a hora de cair, mais depressa nos precipitamos numa história da carochinha que preserve essa crença do que nos esforçamos por verdadeiramente nos encararmos”, escreveu o encenador Nuno Cardoso: “Bruxas. Dão um jeito desgraçado”.

Memorize: maio de 2025. Dez anos e meio. José Sócrates. Prescrição. Quatro meses antes da detenção do ex-PM no aeroporto, outro poderoso foi detido: Ricardo Salgado. E também o processo GES é tão complexo que provavelmente acabaremos por repetir este texto.

Citando de novo Miller, “Somos o que sempre fomos, mas estamos despidos agora”.

 

Notas:
1. “Comédia igual a tragédia mais tempo” é uma frase frequentemente atribuída a vários autores. Não consegui confirmar quem é o autor original.

2. “As Bruxas de Salém” é uma peça de teatro de Arthur Miller (de 1953), que está agora a ser encenada por Nuno Cardoso numa produção do Teatro Nacional São João. Estreou-se há mês e meio no Porto, estará a 6 de maio em Vila Real e a 29 e 30 de junho em Lisboa e deve absolutamente deve ser vista.

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