Os "queijinhos", o saldo negativo e os pedidos de dinheiro. O último mês de Sócrates antes de ser detido

21 nov, 08:00
José Sócrates (Lusa/António Pedro Santos)

Dez anos depois de o antigo primeiro-ministro ter sido detido no âmbito da Operação Marquês, ainda não há qualquer data para o julgamento. Entre as acusações, José Sócrates terá de explicar em tribunal como beneficiou, até ser detido, de milhares de euros vindos do amigo Carlos Santos Silva, tido pelo Ministério Público como o seu "testa de ferro"

José Sócrates tinha encarregado a sua gestora de conta de “investigar” como era possível que ele não conseguisse levantar dinheiro no multibanco. Dois dias depois, a funcionária da Caixa Geral de Depósitos telefonava ao antigo primeiro-ministro para lhe explicar que só em custos fixos - como prestações, carro, renda e outros gastos - Sócrates tinha despesas no valor de cerca de 15 mil euros mensais e “não possuía fundos suficientes para fazer face a elas”. Segundo a acusação do Ministério Público (MP), o alerta deixou o ex-governante preocupado e durante aquele mês de novembro de 2014 José Sócrates desencadeou um plano - o último antes de ser detido - para conseguir acesso a milhares de euros em numerário através de Carlos Santos Silva, o amigo tido como “testa de ferro”.

As movimentações de Sócrates culminaram na noite de 21 de novembro de 2014, quando foi detido à chegada ao aeroporto de Lisboa. Ao longo dos dez anos que passaram desde esse momento, o antigo primeiro-ministro viu as acusações contra si no âmbito da Operação Marquês ziguezaguearem. Primeiro, foi acusado de 31 crimes em 2017, depois Ivo Rosa ilibou-o da maior parte deles antes de, este ano, o Tribunal da Relação ir contra a decisão anterior e pronunciá-lo para julgamento por 22 crimes, incluindo três de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal.

Esse julgamento, contudo, continua sem data marcada e nas últimas horas o Tribunal da Relação veio dar uma explicação sobre isso mesmo: a culpa é da defesa do antigo primeiro-ministro que se encontra “a protelar de forma manifestamente abusiva e ostensiva o trânsito do despacho de pronúncia e, consequentemente, da sua submissão a julgamento”. “Os tribunais não podem aceitar a adoção de tal comportamento processual”, sublinha a Relação. 

Entre as acusações a José Sócrates está a de que o antigo primeiro-ministro recebeu entre 2006 e 2015 mais de 34 milhões de euros como contrapartida para beneficiar, enquanto governante, Ricardo Salgado e o GES, mas também os grupos Vale do Lobo e Lena. O caminho desse dinheiro, segundo o MP, haveria de cair nas contas de Carlos Santos Silva, o amigo a quem Sócrates recorria de cada vez que precisava de dinheiro e que também está acusado de sete crimes, incluindo corrupção. 

E naquele novembro de 2014, segundo as várias escutas em que foi apanhado, José Sócrates precisava muito de dinheiro. Na altura em que a gestora de conta lhe ligou, o próprio ordenado que recebia como intermediário de várias empresas, incluindo a Octapharma, estava consumido por “bastantes transferências” para Paris, prestações de empréstimos à ex-mulher Sofia Fava, um leasing de um Mercedes que tinha comprado recentemente e ainda mesadas a terceiros. 

Quando a gestora de conta desligou o telefone, Sócrates apressou-se a telefonar a Carlos Santos Silva, pode ler-se na acusação. Não atendeu. Ligou novamente, percebeu que o amigo estava em Leiria e prometeu que quando chegasse a Lisboa avisava. O encontro foi em casa de Sócrates na Rua Braancamp, no Marquês de Pombal. Eram 16:30 quando os dois se reuniram. Nessa conversa, Sócrates terá indicado ao amigo que precisava de ter acesso a mais dinheiro em numerário, mas ouviu uma nega. É que Carlos Santos Silva, como estava a regressar de viagem, não tinha o valor suficiente consigo para lhe dar.

Era urgente. Sócrates tinha combinado com a companheira na altura, Lígia Correia, viajar para a Suíça e encontrar-se com Sandra Santos, uma amiga do casal a quem costumava também emprestar dinheiro. Carlos Santos Silva e José Sócrates tinham a suspeita de que estavam a ser escutados pelo que utilizavam códigos que o Ministério Público entendeu serem outros nomes para as quantias que viria a receber. Poucos dias depois daquele encontro, Carlos Santos Silva recebeu uma chamada do antigo primeiro-ministro a insistir que precisava “daqueles livros” antes de marcar a viagem para a Suíça. 

A questão é que esses “livros” não eram fáceis de obter, pelo menos com a rapidez que Sócrates queria. “É porque tenho os livros noutra casa... era só porque às vezes… No domingo eles vão pr'a casa e era só por causa ... Mas tás a pensar sair de manhã?”, questionou Carlos Santos Silva, ao que Sócrates lhe respondeu que se pudesse passar em sua casa ainda naquele dia “era bom”.

Queijinhos e testes: os últimos códigos que Sócrates terá usado

Dez anos depois, julgamento de Sócrates ainda não está marcado/ LUSA

Naquela ocasião, ficou acordado que Carlos Santos Silva iria entregar-lhe em numerário 10 mil euros, mas esse não seria o único pedido naquele mês. No dia 3 de novembro de 2014, Sócrates voltava a conversar ao telefone com a sua gestora de conta e mais uma vez era informado que “já não possuía fundos suficientes para fazer face às despesas com que se deparava nessa data” e que a sua conta tinha um valor negativo de 12 mil euros. Ao mesmo tempo, Sócrates estava a ser “pressionado na sequência dos pedidos de dinheiro que lhe eram dirigidos” - pedidos esses que vinham da ex-mulher, mas também de outras pessoas a quem tinha prometido ajuda.

Após essa conversa, ainda durante a manhã, Sócrates telefonou a pedir a Carlos Santos Silva que viesse a sua casa e às 11 da manhã terá dito que precisava de um “reforço suplementar”, combinando mais uma entrega de dinheiro - desta vez 5 mil euros. Depois disso, terá enviado uma mensagem a Sofia Fava a garantir-lhe que o pagamento iria ser feito pelo motorista João Perna. “Amanhã o João leva-te aí ... os testes do explicador do Duda.” 

Dias depois, José Sócrates viria a receber novos pedidos de dinheiro. Primeiro de uma amiga, Célia Tavares, que lhe pedia ajuda para pagar o seguro do carro e, depois, da sua secretária para lhe pagar o seu vencimento. "Lembre-se de mim!...”, pedia. É também neste contexto que Sócrates volta a telefonar à sua gestora de conta na Caixa Geral de Depósitos, no dia 5 de novembro, mas desta vez tinha um motivo diferente. É que o ex-primeiro-ministro tinha sido contactado pela PT Comunicações porque não tinha sido paga a fatura da MEO e do telefone. 

Segundo descreve a acusação, nesse telefonema, “José Sócrates, incrédulo, perguntou se era possível terem recusado o pagamento de tal fatura”, sendo que a gestora terá retorquido: "Não se recusa... o sistema de débito direto é, agora, automatizado e não passa sequer por nós.” 

Cerca de uma semana depois, Sócrates voltou a telefonar a Carlos Santos Silva, ordenando-lhe que fosse ter consigo a casa. Nesse encontro, o antigo primeiro-ministro recebeu do amigo, em numerário, 7.500 euros. E dois dias depois, num telefonema escutado pelo Ministério Público, contactou a mãe para combinar a entrega de dinheiro. Nessa conversa, disse-lhe que ia mandar-lhe “coisas” que ela lhe tinha pedido. E a mãe terá respondido que “já tinha mandado reservar o casaco”, um código que o MP entende ser para dinheiro.

Outra palavra-código viria a aparecer no dia em que alegadamente planeava entregar o dinheiro à mãe. Num telefonema com Inês do Rosário, também arguida e uma das pessoas que seria responsável pela entrega de dinheiro, explicou-lhe que estava “a ligar por causa dos queijinhos, que lhe mandaram” e do outro lado ouviu que “já tinham chegado” e que “os podia ir buscar quando quisesse”.

O último telefonema a envolver entregas de dinheiro foi feito por Sandra Santos, a amiga a quem Sócrates prometeu emprestar 2.500 euros. Aconteceu no dia 21 de novembro de 2014 e tinha o intuito de perceber se a transferência já tinha sido realizada. Mas o telefone acabou por nunca ser atendido. Nessa noite, José Sócrates tinha apanhado um voo de Paris em direção a Lisboa. Quando aterrou, foi detido na manga do avião. Acabou preso 288 dias. 

Dez anos depois, o ex-governante aguarda em liberdade pela marcação do julgamento. Ao longo do tempo, tem defendido que “nunca recebeu dinheiro de ninguém” e negado alguma vez ter sido corrompido. Já Carlos Santos Silva, na sua versão dos factos, contou que emprestou dinheiro ao antigo primeiro-ministro para que este pudesse manter o nível de vida a que estava habituado.

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