Presidente da Assembleia da República defende que a advertência por injúria ou ofensa só se aplica se esta for dirigida a um deputado ou membro do Governo. Quem ocupou esse cargo no passado discorda: é ainda mais importante defender quem não está no hemiciclo
“O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”.
Ponto três do artigo 89º. “A minha interpretação da norma invocada é que serve para que não se permita o condicionamento do debate” e para “assegurar a igualdade de armas entre os senhores deputados”, afirmou José Pedro Aguiar-Branco.
Em resumo, o presidente da Assembleia da República (PAR) entende que a interrupção do debate, para advertir um deputado ou membro do governo, só deve acontecer se o alvo da ofensa ou da injúria for outro deputado ou membro do governo. “Quando fala em injúria ou difamação, tem a ver com a injúria ou difamação que seja praticada em relação a um outro senhor deputado”, reforçou.
Contudo, não é essa a interpretação feita por antigos presidentes da Assembleia da República ouvidos pela CNN Portugal. Nenhum quis comentar a nova polémica: Aguiar-Branco não fez uma advertência a André Ventura por ter associado os turcos à preguiça, para vincar que se esta nacionalidade conseguiu erguer um novo aeroporto em cinco anos, os portugueses também conseguiriam. “Os turcos não são conhecidos por serem os mais trabalhadores do mundo”, disse o presidente do Chega.
Ainda assim, a interpretação da norma abre porta à avaliação da situação por antigos PAR. “A minha interpretação era exatamente ao contrário. É mais grave o registo agressivo ou insultuoso perante quem não está na Assembleia. Esses não se podem defender. Os deputados sempre podem pedir a figura da defesa da honra. O regime obriga-nos a intervir, independentemente de quem é ofendido”, diz um. “A minha prática enquanto PAR fala por mim”, completa outro, que alinha na mesma interpretação.
Essa advertência, refere, pode chegar no imediato ou só no fim da intervenção.
Enquanto “representante dos portugueses”, devia sinalizar que a maioria não se revê na “ofensa”
Pode uma bancada dizer que “determinada raça, ou uma determinada etnia, é mais burra, mais preguiçosa, ou menos digna”? A pergunta foi da socialista Alexandra Leitão. E esta foi a resposta de Aguiar-Branco: “no meu entender, pode”.
“Não é a mesa que é o Ministério Público, que é a esquadra da polícia, que é o tribunal popular. Tenho é de garantir, da esquerda à direita, que não há condicionamento à liberdade de expressão. Não posso ser eu a qualificar uma determinada expressão, opinião”, havia de referir depois, à tarde, aos jornalistas.
A politóloga Paula do Espírito Santo lembra que o PAR é a segunda figura do estado. E que, como tal, é esperado dele que represente a posição do povo português. Neste caso, com uma rejeição de uma generalização sobre outro povo. “Tem o papel de, enquanto representante de todos nós, mostrar que a maioria não se revê nessas declarações. Esse papel devia ser demarcado”, afirma à CNN Portugal.
A especialista avisa que, sem uma condenação, a declaração de Ventura acaba por qualificar “não só o partido”, mas também “as nossas instituições”.
“Foi surpreendente, por parte do PAR, ter normalizado este tipo de linguagem. Aqui está-se a falar de uma outra nação, de um outro povo, de uma ofensa, no sentido de lhe dar uma conotação que não é positiva”, classifica a politóloga, lembrando potenciais impactos no que respeita às relações diplomáticas.
“Está a fazer uma interpretação muito pouco pedagógica para quem está em funções institucionais”, resume.
Exemplos do passado recente
No passado, foram várias as ocasiões em que André Ventura foi advertido pelo PAR por abusos de linguagem.
Em abril de 2022, Augusto Santos Silva interrompeu o discurso, quando Ventura falava da comunidade cigana, para dizer que “não há atribuições coletivas de culpa em Portugal”.
Um exemplo de uma relação tensa entre o presidente do Chega e a segunda figura do Estado, que já se tinha verificado também com Eduardo Ferro Rodrigues.
Em dezembro de 2019, o uso repetido da palavra “vergonha” levou à interrupção de Ventura por Ferro Rodrigues. “Isso ofende-o também a si”, argumentou o socialista.