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Coordenador e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

“Conseguimos”, mas “nada é dogmático até que aconteça” …

27 jan 2023, 10:43

Cinco pontos num momento crucial para a JMJ

“Portugal, Lisboa, esperávamos, desejávamos, conseguimos, vitória”. Fazem eco as palavras do chefe de Estado, no Panamá – já lá vão quatro anos… -, quando reagiu efusivamente ao anúncio da escolha de Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude.

Lembro-me de, na altura, ter havido alguma hesitação e incompreensão nas redações. Havia quem não quisesse dar destaque à notícia, que fora avançada com antecipação de semanas numa televisão e num jornal digital. Como também recordo algum debate na interpretação do momento. “Isso é da Igreja, não é? Então temos de dizer Jornada Mundial da Juventude católica”. 

1. Quem já acompanhou outras jornadas – residente, participante, organizador, jornalista… –, tem a experiência para contar. É um acontecimento raro, difícil de comparar, na mobilização de recursos, na dimensão organizativa e logística, e, pelas características desta, nas verbas envolvidas, custos e mais valias. 
Numa única semana, vamos ter em Lisboa e arredores, segundo a expectativa agora revelada pela organização – cerca de um milhão de pessoas –, um aumento populacional equivalente a quase um terço de toda a área metropolitana, com tudo o que isso implica de alojamento, mobilidade, alimentação, segurança, cuidados de saúde…

2. A matriz motivacional da JMJ é inequivocamente religiosa, mas a dinâmica de envolvimento, até pela geração-alvo, pode e deve ser transversal, como outros grandes e impactantes acontecimentos que, não indo ao encontro de todas as sensibilidades, acabam por ser abrangentes. O investimento não é, ou não deve ser, apenas estrutural, mas prioritariamente humano. 

As últimas jornadas têm acentuado, umas mais do que outras, essa preocupação. A Igreja católica procura passar a ideia de que, embora de matriz religiosa, as jornadas são para toda uma geração e já supra geracionais, ecuménicas e inter-religiosas, sustentando inquietações, o despertar de consciências num mundo em metamorfose, uma oportunidade para as novas gerações se focarem no exercício da ética e da cidadania de participação. Na Jornada do Rio de Janeiro, em 2013, isto foi particularmente evidente. 

3. A polémica instalada com os custos financeiros era expectável. Aconteceu noutras jornadas – não se entendem, por isso, apesar da preocupação manifestada pelos organizadores, as precipitações ou hesitações na comunicação do evento – e noutros grandes investimentos que implicam grandes recursos financeiros, conjugação de vontades políticas e institucionais. Foi assim na Expo 98, nos estádios do Euro 2004, no CCB em 1992, construído para acolher as grandes reuniões da presidência portuguesa da União Europeia, ou, à dimensão eclesial, na nova igreja da Santíssima Trindade, em Fátima, isto para lembrar apenas alguns casos que nos são mais próximos.

Ninguém esperaria que fosse um acontecimento sem elevados investimentos, como, quando Igreja católica, governo e autarquias se empenharam entusiasticamente na candidatura, ninguém esperava que uma pandemia e depois uma guerra na Europa alterassem tanto o contexto, com tremendas consequências na previsibilidade e nos custos.

Não é de estranhar que os valores envolvidos nas obras conhecidas e os orçamentos revelados, sejam acolhidos como murros no estômago – que “magoam”, nas palavras do presidente da Fundação JMJ – de um país a viver numa crise das instituições e com os índices de pobreza ou risco de pobreza que apresenta.  Há que admitir que, à primeira vista, são sinais paradoxais se confrontados com o exemplo e as palavras da figura que vai ser acolhida em Lisboa – o papa Francisco, que reclamou “uma Igreja pobre e para os pobres”. São aparentes contradições que entram facilmente na narrativa mediática, escrutinadora, radicalizada na espiral dos casos e dos escândalos, tantas vezes refém do ambiente incontrolável, irracional, demagógico e descontextualizado das redes sociais. 

4. Convém alargar a leitura. Se é elevado o custo financeiro na JMJ, também se esperam consequências económicas, sociais e, é evidente, religiosas e políticas:

- A consequência económica não é difícil de prever. Quem vem, investe para participar, seja nas inscrições, seja nos gastos diários, com impacto na economia. Pelas previsões mais otimistas, as inscrições na JMJ superam os custos diretamente relacionados com os participantes e as estruturas edificadas ficam para a cidade. O altar-palco uma das parcelas, nem é a mais relevante nos custos, mas é também a mais sensível, a imagem que vai correr pelo mundo, a partir da qual o Papa, a Igreja, o país e a multidão se projetam. Aconselhava-se e exigia-se parcimónia no projeto e nas exigências. 
- A consequência social advém da natureza intercultural do acontecimento, juntando jovens de todo o mundo, católicos na esmagadora maioria, mas com diversas e dispersas expressões culturais. 

A consequência religiosa é óbvia. O fenómeno religioso está agregado a vivências e experiências concretas, que fazem memoria e deixam marcas. As jornadas da juventude resultaram da intuição do papa João Paulo II para terem precisamente este fim ambicioso, serem uma espécie de semente motivacional nas gerações que descobrem a fé e tudo o que esta implica. 

- Quanto às consequências políticas, há que vê-las no imediato e no longo prazo. No imediato, podem trazer dissabores ou louvores aos atores políticos. No longo prazo, e este é talvez o mais relevante aspeto, podem passar pela maior consciencialização da cidadania participativa, despertando para o sentido da corresponsabilidade e da ética, da importância de fazer encontro entre diferentes e diferenças, do debate sobre a sustentabilidade e a ecologia – que, a cumprir-se a promessa da organização, estará entre os principais debates propostos aos jovens participantes –,  quebrando “barreiras” e “alargando horizontes”, como dizia há dias o papa Francisco, preocupado com a reabilitação de um exercício político capaz de contrariar populismos e nacionalismos que ameaçam a democracia participativa. 

5. A polémica com os custos, expectável, exige dos organizadores uma maior transparência e celeridade na comunicação e no esclarecimento sobre a natureza deste acontecimento.  Marcelo Rebelo de Sousa gritou: “conseguimos”. No bom jeito português, vamos conseguir, mas é difícil de entender que a poucos meses do acontecimento, 4 anos após o anúncio da JMJ Lisboa e do entusiasmo do presidente da República, a JMJ ainda não seja ainda encarada como um acontecimento de “Portugal”, amplamente “esperado” e “desejado”, como defende o presidente da república. 

Antes mesmo de o ser, o acontecimento está a falhar neste objetivo. Não é a circulação pelas dioceses dos “símbolos” da JMJ – uma cruz e um ícone mariano – que vão mobilizar para lá da fronteira devocional católica. Esperava-se mais ambição nesta altura. Não se vislumbra um caminho para ampliar o desafio da JMJ, tornando-o transversal. Assim, arrisca-se a ser, de facto, pouco mais do que uma espécie de Woodstock católico. Os “ventos” não são agora favoráveis a este trabalho de fundo. 

A polémica instalada com o preço do altar-palco dificulta ainda mais a sensibilização da opinião pública. Ao dar a entender que o projeto pode sofrer alterações, para que “o que não for essencial possa ser eliminado” e no final seja menos dispendioso, o presidente da Fundação JMJ, bispo Américo Aguiar, procura uma saída da polémica. Esteve bem. “Nada é dogmático até que aconteça”, mas episódios como este podem “ferir” a JMJ, disse. Pode ser difícil recuperar deste embate mediático, logo numa fase crucial: a necessidade de ampliar as inscrições, de dar amplitude social e solidificar uma boa imagem, de captar mais parceiros, voluntários portugueses e famílias de acolhimento. 

Vejamos ainda o exemplo do propósito ecuménico da JMJ. Há um trabalho em curso para o envolvimento de jovens de outras religiões e, sobretudo, de outras igrejas cristãs, evangélicas e protestantes, que pode também ser prejudicado. É ler as reações negativas de muitos cristãos não-católicos, entre eles, líderes e pastores, que não compreendem a dimensão do envolvimento do Estado quando, no dia a dia das suas comunidades, cada vez que precisam de apoio para uma obra, enfrentam dificuldades financeiras, recorrendo exclusivamente a meios e contribuições dos próprios. 

Para memória futura, valerá o trunfo da laicidade que assegura a Liberdade Religiosa. A JMJ será importante também para as minorias religiosas. Após o encontro internacional, têm um forte argumento para reivindicar mais apoios do Estado e vão contar com a ajuda da Igreja católica nessa demanda.

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