"Celebremos o Jorge", o artista que viveu sempre com uma espécie de "Eu não abdico de ser feliz"

15 mar 2022, 15:49

Fundador do Teatro da Cornucópia antes do 25 de Abril, encenador, realizador, cronista, e "figura central da nossa cultura", Jorge Silva Melo dedicou-se nos últimos anos aos Artistas Unidos. Foi com eles que fez o seu último espetáculo, que tem estreia marcada para dia 23, no São Luiz.

Um cigarro numa mão, uma caneca de chá na outra. Assim o lembramos. Sentado na plateia, de pernas cruzadas, a dirigir os ensaios dos seus Artistas Unidos. Ou então à porta do teatro, a receber os espectadores e a conversar. Com aquela voz inconfundível. O Jorge tinha uma memória incrível e uma cultura imensa. E muitas histórias. Não se cansava de contá-las, não nos cansava ouvi-las. Ouvi-lo. Vê-lo.

Jorge Silva Melo morreu esta segunda-feira aos 73 anos. Foi ator, encenador, realizador, escritor, crítico, dramaturgo, editor, tradutor, cronista, fundador do Teatro da Cornucópia, em 1973, com Luís Miguel Cintra, e dos Artistas Unidos, em 1995, companhia que dirigia.

"Gostava de trabalhar sempre. Espero morrer trabalhando", disse numa entrevista ao Expresso, em 2019. "Como previsto e desejado pelo Jorge", a sua última encenação estreia na próxima quarta-feira, dia 23, no palco do Teatro São Luiz, em Lisboa: "Vida de Artistas", uma comédia de Noël Coward, autor de que gostava muito.

"Agora que estou doente, vou fazer uma comédia", comentou Jorge Silva Melo a propósito desta "Vida de Artistas". "O Jorge decidiu fazer este espetáculo sabendo que poderia ser o último e que poderia até não chegar ao fim porque dizia que tinha muita confiança neste grupo de atores e em toda a equipa, que conhecia muito bem", conta à CNN Portugal o ator João Meireles, um dos elementos fundadores dos Artistas Unidos. "E trabalhou até à última semana. Assistiu a ensaios sentado numa cadeira de rodas e, depois, já muito debilitado, mesmo depois de hospitalizado continuava a querer saber todos os dias como tinham corrido os ensaios e a dar indicações da cama do hospital."

"Vamos manter a estreia, como ele gostaria que acontecesse", justifica à CNN Portugal Aida Tavares, diretora artística do São Luiz. "O espetáculo está montado, o Jorge trabalhou nele até ao fim. Esta é a melhor homenagem que lhe podemos fazer", diz, recordando "uma figura central da nossa história e da nossa cultura". "Teve mil e uma vidas. Tinha uma paixão enorme pelo teatro, que era o seu chão, mas também pelo cinema, pela literatura, pelas artes visuais", recorda Aida Tavares. "O Jorge era um conversador extraordinário. Tínhamos longas conversas sobre tudo. Era cultíssimo e tinha uma curiosidade permanente."

“A intervenção artística de Jorge Silva Melo foi pautada por um espírito jovem. Fez parte da geração que renovou o teatro português no pós-25 de Abril, apostou permanentemente em jovens actores, revelou e pôs em cena autores contemporâneos. A sua morte deixa uma tristeza enorme”, escreveu o primeiro-ministro António Costa na mensagem que publicou no rede social Twitter.

“Ninguém como ele escreveu sobre os atores portugueses ainda poucos conhecidos, ou sobre os atores portugueses de quem nos tínhamos esquecido, ninguém como ele lembrou tempos antigos que não eram saudosos mas eram de acção e de esperança. Passou toda a vida fiel a esse propósito, entre impaciências, comoções e desencantos", afirmou o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, na sua mensagem de condolências.

Crescer entre livros, filmes e, por fim, o teatro

Nascido em Lisboa a 7 de Agosto de 1948, Jorge Silva Melo passou parte da infância em Angola, na então Silva Porto (actual Kuito) e voltou para Lisboa, onde cresceu entre livros e conversas com intelectuais, que conhecia através da irmã mais velha, a esgueirar-se para entrar nas salas de cinema e ver filmes que não eram para a sua idade. Aos 15 anos já escrevia crítica de filmes para o suplemento “Juvenil” do Diário de Lisboa, então dirigido por Mário Castrim. E depois para a revista “O Tempo e o Modo”, onde começou a publicar com apenas 16 anos.

Fez a licenciatura em Filologia Românica, na Faculdade de Letras de Lisboa. Foi aí que conheceu Luís Miguel Cintra, Eduarda Dionísio, Nuno Júdice e outros. “Naquela faculdade - no bar, não nas aulas -, pensámos que poderia haver um teatro diferente daqueles que víamos em salas”, contou. No Grupo de Teatro de Letras, fez com Cintra "O Anfitrião", de António José da Silva. 

O espetáculo deu nas vistas. A crítica de Carlos Porto, publicada na altura, sublinha a juventude dos responsáveis pelo espetáculo para o elogiar em todas as vertentes: “O espetáculo é uma lição, não poderá ser esquecido. As razões são simples: acreditou-se no poder da imaginação, trabalhou-se, e estudou-se de forma a encontrar as soluções mais adequadas (...). Os achados parecem ter nascido da própria descoberta do texto, a imaginação cénica liga-se perfeitamente, espantosamente com a própria linguagem do Judeu”.

Aos 20 anos foi para Londres com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para estudar na London Film School. No regresso, em 1973, surgiu o Teatro da Cornucópia como uma sociedade por quotas gerida por dois sócios: Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. "O Misantropo", de Molière, estreou a 13 de outubro. Nesta aventura, juntaram-se nesses primeiros anos Glicínia Quartim, Dalila Rocha, Filipe La Féria, Luís Lima Barreto, Raquel Maria, Orlando Costa, Márcia Breia e muitos outros. Fizeram uma pequena revolução no teatro português, antes mesmo da Revolução de Abril e, depois, fizeram Brecht e deram largas à imaginação em liberdade.  

Silva Melo ficou na Cornucópia até 1979, altura em que, mais uma vez com o apoio da Gulbenkian, decidiu ir aprender com os mestres: Peter Stein na Schaubühne, em Berlim, e Giorgio Strehler no Piccolo, em Milão.

Os Artistas Unidos: a paixão pelos atores

Em 1995 surgiram os Artistas Unidos. O primeiro espetáculo foi "António, um rapaz de Lisboa", texto de Silva Melo, que haveria também de ser filme. E que trazia consigo uma vontade assumida de fazer um teatro do presente, com as palavras do presente e com novos atores. Manuel Wiborg, Sylvie Rocha, Pedro Carraca, Ivo Canelas, Isabel Muñoz Cardoso, Miguel Borges, António Simão, Luís Gaspar, Paulo Claro, são alguns dos que se juntaram nesses primeiros tempos.

"Sou um vampiro", disse numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, referindo-se ao modo como se "alimentava" da juventude desses atores. "Encontrava-os: “O que é que faço, que peça é que hei-de fazer?”, “Eu quero escrever uma história para ti”. Eram as conversas. Se não houvesse um outro a quem queria dedicar o meu trabalho, não tinha feito nada."

Afinal, mais do que pelo texto ou pelo palco, Jorge Silva Melo tinha uma paixão enorme pelos atores. Ele, que foi ator mas interpretou pouquíssimos papéis. Guardava na gaveta as peças que queria fazer até encontrar os atores certos para aquelas personagens. Os espetáculos começavam sempre com os atores. Com Américo Silva, Ruben Gomes, João Pedro Mamede ou outros.  "O que eu quero ver é o esplendor da vossa humanidade, encanta-me ver os atores, posso ficar horas a vê-los a ensaiar", dizia.

Na plateia desse primeiro espetáculo estava Pedro Penim, atual diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II: “Acordar com a notícia da morte do Jorge Silva Melo é ver o teatro português perder uma das suas figuras incontornáveis. Encenador, dramaturgo, ator, fundador de duas companhias emblemáticas, o teatro da Cornucópia e os Artistas Unidos, indivíduo sábio, agente político… Em 1996, com 20 anos, vi pela primeira vez um dos seus espetáculos, com a consciência que estava a assistir a algo histórico. Era o António, um rapaz de Lisboa. O teatro português nunca mais foi o mesmo e eu também não. Obrigado, Jorge. Celebremos o Jorge."

Tiago Rodrigues, diretor artístico do Festival D'Avigon, que participou em 1998 na enorme aventura chamada "A Queda do Egoísta Joahnn Fatzer" - com 23 atores no palco do Variedades, entres eles António Pedro Cerdeira, Bruno Bravo, Joana Bárcia, Luís Esparteiro - recorda-o como "um incansável trabalhador do teatro, um obstinado construtor de outras maneiras de inventar espectáculos, um arquiteto de coletivos mais solidários, uma enciclopédia generosa ao serviço das novas gerações, um feroz defensor da sua e nossa liberdade de pensamento, uma locomotiva intelectual que transformou o teatro e a cultura de um país. É um mestre para tantas e tantos que com ele aprenderam, que com ele trabalharam, que se alimentaram do seu trabalho."

Com os Artistas Unidos, Jorge Silva Melo fez Harold Pinter e Beckett, trouxe-nos Enda Walsh, Tim Crouch, Joe Orton, revelou-nos Sarah Kane, Antonio Tarantino, Spiro Scimone, David Creig, David Harrower, Jon Fosse. No edifício de A Capital, no Bairro Alto, o grupo alimentou, durante dois anos e meio, o sonho de um teatro: o edifício estava a cair de podre, as cadeiras de estofo coçado de veludo tinham vindo da antiga plateia do Nacional, os espectadores eram convidados a subir por escadas apertadas e a verem espetáculos em espaços sujos, com os vidros das janelas partidos e as paredes esburacadas. E, no entanto, viveram-se ali momentos momentos muito felizes.

"O Jorge foi o mestre daqueles rapazes e raparigas", diz-nos Aida Tavares. Jorge Silva Melo garantia que nos Artistas Unidos todos faziam tudo, os atores podiam atender os telefone, produzir os espetáculos, limpar o chão e desenvolver as suas próprias criações. O diretor da companhia acompanhava todos os trabalhos, era exigente e implacável nas críticas, mas, no final, sentia um orgulho enorme a ver os seus atores crescerem e ganharem asas.

Para além do teatro, Jorge Silva Melo foi um homem do cinema. Começou como assistente de realização e diretor de produção, de João César Monteiro, Paulo Rocha, António-Pedro Vasconcelos ou Alberto Seixas Santos (com quem colaborou em "Brandos Costumes"), e, depois, também, foi realizador. Fez, entre outros, “Ninguém Duas Vezes”, “Agosto”, “Coitado do Jorge”, “António, Um Rapaz de Lisboa” e a curta-metragem “A Felicidade”, com Fernando Lopes a protagonizar. Realizou também vários documentários, sobretudo sobre os artistas que mais admirava. Tinha essa obsessão por fixar as memórias antes que se perdessem.

"Ainda não acabámos"

Silva Melo recusou o Prémio Almada 2003 para área do teatro, galardão atribuído pelo Instituto das Artes, alegando que “não compete ao Estado” distinguir o seu trabalho artístico: “A minha atividade não está a concurso e o Estado não tem o direito de conceder prémios. Deve, antes, concentrar-se em dar condições de trabalho aos artistas e promover o desenvolvimento das artes do espetáculo”, defendeu.

Anos mais tarde, em plena crise dos anos da ‘troika’, publicou um manifesto em defesa do financiamento público do teatro, nas redes sociais: “Gostamos também que gostem de nós. E gostamos também que não gostem de nós. Gostamos de apostar em espetáculos que não são de consumo rápido. Que fazem refletir. Gostamos de pensar e de fazer pensar na sociedade e no indivíduo. Porque gostamos da sociedade e do indivíduo”.

“Às vezes, temos poucos espectadores. Porque para pensar é preciso tempo e cada vez há menos tempo. Mas estes espetáculos que fazemos são imprescindíveis – até para aqueles que não os veem. Por isso não iremos desistir”, escreveu, então.

Em 2016, realizou e protagonizou "Ainda não acabámos", um filme de memórias em forma de carta aos mais novos. Encontramos ali um Jorge melancólico. "Aquilo que eu gostaria de deixar às pessoas mais novas era uma certa alegria. Apesar de tudo, consegui ter uma vida só a fazer teatro e cinema. Consegui chegar aos 67 anos fazendo mais ou menos o que queria, mas agora estou tão cinzento." E concluía, quase zangado consigo mesmo: "Não me apetecia nada morrer amargurado."

Num sofá, nas traseiras do Teatro da Politécnica, onde ficava o escritório que é cozinha e tudo o resto dos Artistas Unidos, com vista para o Jardim Botânico, Jorge Silva Melo não escondia que se sentia a envelhecer: "Não me interessam muitas coisas novas que vejo e chateia-me não gostar. Creio que não me interessa a sociedade que vejo começar. Já estou como o meu pai, que via a Brigitte Bardot e tinha saudades era da Barbara Stanwyck. Durante muito tempo tive idade para ser pai dos meus colaboradores, agora já tenho idade para ser avô. É natural que eles gostem de outras coisas, é saudável, e isso interessa-me, porque trazem outras visões do mundo. Acho é que não construí para eles a estrutura-mãe que os pudesse acolher num futuro mais ou menos próximo, que era o que queria. Falhei em não ter conseguido criar uma vida melhorzinha para pessoas de quem gosto e que vão ter as mesmas dificuldades em recomeçar, vai ser a mesma porcaria."

Durante a pandemia, descobriu que podia continuar a fazer tudo através do computador: tinha reuniões de trabalho todos os dias através de videoconferência, usava o Facebook para partihar pequenos vídeos-conferências em que dissertava sobre as suas memórias e as histórias do teatro, continuava a anunciar com alegria os espetáculos que os Artistas iriam fazer e os "livrinhos" que estavam a publicar. Só deixou de aparecer quando teve que ser sujeito a uma intervenção cirúrgica na anca, mudando-se então para a Casa do Artista. Morreu na segunda-feira, nos Hospital da Luz, vitima de doença oncológica.

Jorge Silva Melo tinha 73 anos. Gostava de passear pelas ruas do Príncipe Real, de sentar-se nos cafés. De conversar, claro. Tinha pena de não saber dançar. Na entrevista a Anabela Mota Ribeiro dizia: "Por muito doloroso, dorido, combativo e às vezes insultuoso que tenha sido o meu percurso, por muitas mentiras que me tenham feito, há uma espécie de “Eu não abdico de ser feliz”". 

"O maior ensinamento do Jorge foi a defesa absoluta da liberdade e da responsabilidade que vem com essa liberdade. Temos de ser exigentes connosco e responsáveis com os outros", diz João Meireles. "O Jorge gostava extraordinariamente de pessoas. Foi um homem que me ensinou a cuidar dos outros."

Na mensagem de despedida, os Artistas Unidos agradecem ao amigo e garantem: "Somos os seus herdeiros e é com honra que manteremos viva a sua obra e o seu legado". Como ele haveria de querer.

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