A morte de um revolucionário

15 mar 2022, 21:30
Jorge Silva Melo em "Ah Q", na Cornucópia, 1978

Jorge Silva Melo (1948-2022) foi tudo o que podia ter sido no teatro, mesmo que, até ao fim, tudo continuasse por fazer. Era assim que ele gostava: ter razões para lutar pela utopia teatral

Nas fotografias das primeiras peças feitas no Teatro da Cornucópia, entre 1973 e 1979, vemos um jovem Jorge bufão, aterrador, aterrorizado, entusiasmado e transbordando o limite da imagem, como se em todas aqueles textos que finalmente podiam ser feitos, Silva Melo trouxesse a memória de tudo o que havia aprendido, em todo o tempo que esperara para o poder fazer. O seu teatro, então assinado ao lado de Luís Miguel Cintra, queria “decorrer perto dos espetadores” e “atravessar a cidade”, como escrevera no texto que acompanha a sua encenação de E não se pode exterminá-lo?, de Karl Valentim.

E não se pode exterminá-lo? – Cenas de Karl Valentin, co/r: Solveig Nordlund, 1979 (156’) [Cena do filme a partir do espectáculo com o mesmo nome do Teatro da Cornucópia; em cinco episódios]. Imagem: Arquivo fotográfico da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema

Ele era esse homem que atravessava a cidade, uma cidade certamente imaginada, provavelmente Lisboa, de onde ele sempre foi: “a luz das marquises de Lisboa depois do almoço, o folhetim da rádio ecoando nas traseiras, a subscrição nacional para a construção do Cristo-Rei, a propaganda do Exército Azul, a matinée de sábado no Royal ou no Jardim” (Combate,1989). A cidade onde pareceu querer sempre inscrever as múltiplas personagens de todos os autores que traduziu, editou, encenou e deu a conhecer, vindos da Irlanda rural, da Espanha republicana, da França resistente e boémia, da Itália seduzida e pecadora, da Alemanha dos dois lados do muro, da América palmilhada pelos idealistas, da Inglaterra mordaz, dos frios nórdicos, da Áustria culpada, da Europa do pós-guerra e dos novos mundos que o palco também imaginava.

Eram autores que queria trazer para, com eles, continuar a escrever a história das encenações que havia visto, lido ou ouvido falar, de todos aqueles de quem foi ou quis ser assistente, ou esperou horas nas filas de Londres, Berlim, Roma ou Paris, fossem elas dar a livrarias, cinemas ou teatros.

Jorge Silva Melo, que morreu na véspera de estrear mais uma peça, vinha dessa geração para quem o teatro não era uma profissão, mas um modo de relação, feito “de gente de teatro, habituada a ‘comentar o seguinte texto’, apaixonados todos por (e praticantes fortemente amadores de) pintura e cinema”, como descreveu Eduarda Dionísio (Vértice, 1992), uma das que, com ele, haveria de fazer uma viagem fundacional ao Festival d’Avignon, fotografia que Silva Melo há anos mantinha como “papel de parede” do seu perfil de Facebook. Nela, a esperança de um teatro de intervenção, porque queria mudar quem o fazia, de um e do outro lado do espelho. “Estou farto de, em finais do século XX, viver em pleno século XIX, esse século que inventou o maestro, o encenador e o crítico, os patrões, os capatazes e os intermediários”, escreveu em 1995, na esteira de António, rapaz de Lisboa, peça-manifesto geracional (que haveria de ser filme) assinado por quem já não fora a tempo, dedicado aqueles que ainda podiam vir a ser, no tempo, o que ele imaginara para os seus. “Devolver o teatro à polis (e que é a polis na Internet?) tem necessariamente de passar pelo brutal assassinato dessa divisão do trabalho – e devolver aos artistas a arte que lhes foi retirada pela circulação das mercadorias. Como seria o teatro outra vez, se outra vez só houvesse actores e autores? É porque do teatro só me interessa a ‘arte’ – e não o ‘espectáculo’ cénico, social ou político – que agora quero escrever”.

Silva Melo mantinha a fotografia da "viagem fundacional ao Festival d’Avignon" há anos como “papel de parede” do seu perfil de Facebook.

 

Esse teatro que foi inventando para nele caber todo o teatro que vira – e onde cabiam todos os filmes encenados e todas as encenações de ópera – era um teatro onde “os problemas são evocados e não representados”, como disse em entrevista ao PÚBLICO em 2012, uma das muitas que lhe fiz.

O que ele pretenderia defender, imagina-se, era a ideia de que o teatro, não resolvendo nem explicando a vida, nem daqueles que o fazem, nem dos que o veem, era lugar de identificação de problemas comuns que, pela palavra, perspetivavam possibilidades de encontro e de partilha.

Na última crónica das que reuniu no volume A mesa já está posta (edição Cotovia), escrita por entre os ensaios de Do alto da ponte, de Arthur Miller, escreveu: “o teatro é aquilo que nos ficou da adolescência, aquilo que eu queria ver quando galgava, dois a dois, os degraus para o segundo balcão do Tivoli, tinha eu dez anos e queria que aqueles segredos fossem meus? Não sei, ainda queria estar convosco, pois era.”

Silva Melo, como Joaquim Benite (1942-2012), morreu antes da estreia de um espetáculo, como se deixasse ainda um último testamento que era, afinal, uma continuação. No palco sala principal do São Luiz, no dia do anúncio da sua morte, o cenário de Vida de Artista, já está praticamente montado, misturando-se com detalhes técnicos que fazem do palco a extensão de um quotidiano e dos diálogos de Noël Coward uma continuação dos enganos da vida. O sofá amarelo numa base com dois degraus, a planta falsamente viçosa, uns cavaletes dispersos e umas cadeiras desirmanadas, uma grua para afinar projetores e um carrinho com ferramentas, como se tudo estivesse sempre por construir e, ao mesmo tempo, pronto para ser arrumado.

Esta ideia de permanente reinício dá bem conta de um percurso atravessado por uma ideia de teatro incompleto: a saída do Teatro da Cornucópia, poucos anos após o fulgurante início; a grande mágoa pelo fim do projeto A Capital, que haveria de fazer, no Bairro Alto, em Lisboa, o epicentro de um ideal e que, de promessa em adiamento, foi sendo emparedado, vendido e gentrificado; as limitações do Teatro da Politécnica, onde habitava o seu centro, Artistas Unidos, onde chovia tanto quanto estreavam peças e que, apesar da memória de lugar para as lutas estudantis na primavera marcelista, era, ainda solução provisória continuamente revalidada; os desejos por um teatro que fosse seu, e por isso ia, com um sucesso invejável, levando para teatros de outros, onde sempre pode estender, para os autores, os atores e os públicos, as ideias e as revoluções que imaginara.

A verdade é que Jorge Silva Melo foi, em toda a sua memória, aquele que tão bem representou a geração que viveu intensamente a transição entre a revolução em ditadura e a inovação em democracia.

Se, no teatro, foi praticamente tudo – ator, encenador, programador, autor, tradutor, editor, crítico e cronista, fez companhias e reabriu teatros –, foi em tudo isso, amante e apaixonado por tanto quanto podia contar e falar sobre o mundo, o que vira e vivera, mas também o que lhe contavam e imaginou.

 

Sabia tudo e conhecia todos, de todos foi próximo e, fez-se, sobretudo, no diálogo, na partilha, no prazer da tertúlia e na nostalgia da memória que cultivava na vontade de ser como os que admirava até se tornar naquele que todos admiravam.

Inventou atores e revelou autores, construindo uma constelação de nomes que respondiam, geracionalmente, a uma vontade inquieta de fixar o mundo como os livros, os filmes, as áreas de ópera e as pinturas que lhe diziam que podia ser.

Jorge Silva Melo foi brilhante tribuno e primeiro signatário de petições, cartas e abaixo-assinados, e imediato nome para evocar quem morria, lembrando, mais do que um espetáculo, certo encontro numa rua agora vendida a vistos gold, numa livraria entretanto desaparecida, num cinema demolido, na casa de quem já não lá morava, uma certa frase, escrito ou imagem, por demais reveladores de um universo que queria muito trazer para dentro dos palcos mas que, invariavelmente, dele já só relevava, como nas peças de Ibsen, caixotes e móveis desalinhados, sem se saber se estavam a chegar ou prestes a partir.  

Inconformista profissional, foi belicoso agente cultural, morteiro afinado no desencadear de paixões e alimento de ódios, como só as personagens de ficção sabiam ser. Encenou Goldoni como quem fazia das tabernas do Cais do Sodré as estalagens da Itália de Victor Emanuel. Imaginou Musset como quem recitava Caeiro e o Júlio Dinis. Fez Brecht, “o da juventude que não teve”, como se reescrevesse a história da modernização do país de Abril.  E Jean-Luc Lagarce e Bernard-Marie Koltés como os gémeos de uma França alimentada nas migalhas da Bastilha e na falência do amor. Fazia de Dimitris Dimitriadis o Pasolini do fim, depois do fim, da história. E devolveu a Tennessee Williams a Europa que ele imaginou, tanto quanto materializou para Pirandello o teatro que escreveu. E todos os pós-dramáticos alemães como se fossem os jovens que cresceram nas noites de Lisboa do final dos anos 1980 e chegassem aos anos 1990 enganando o envelhecimento. "O grande desejo de toda a gente que faz teatro é que o que está a acontecer entre o palco e a plateia saia do teatro, e o último desejo é que as paredes do teatro caiam como as muralhas de Jericó" (Público, 2012). E Danton e Robespierre como se fossem Sá Carneiro e Álvaro Cunhal, mas “se projetasse Cunhal em Robespierre e o pusesse nas noites solitárias, que deve ter tido, a ir à sede do partido dizer que a vida era sonho e nada disto tinha existido, as pessoas riam-se", confessou quando fez A Morte de Danton para o Teatro Nacional Dona Maria II, que havia ficado adiada no sonho da Cornucópia, e ele transformara em carta de amor no filme Passagem ou a meio do caminho (1980)

Era um filho do país que esperava a mudança, fez-se protagonista da revolução e tornou-se a memória da cidade dos artistas, dos filósofos, dos nostálgicos e dos vencidos da vida. “Eu queria estar preparado e recolher todas as informações para voltar. E eu queria voltar. Queria tentar em Portugal, construir uma outra coisa, diferente, mais racional, mais humana, menos abandonada” (Jornal de Negócios, 2015). Muitos anos antes havia escrito: “Todos os dias cruzo lugares da minha infância, sítios onde encontrei não sei quem. Ter uma pátria deverá ser isso: uma terra a que se sobrepõem imagens com os anos que passam, uma cidade palimpsesto da nossa memória. Ter pátria há-de ser isso: ter uma infância” (O Combate, 1989). E depois: “Sentimos sempre que isto podia ter sido melhor, que havia condições físicas e geográficas e humanas agradáveis e que não as soubemos pôr a render, que não as conseguimos pôr a florescer. Vimos várias hipóteses que perdemos.”  (2015). E antes: “Sou português porque tenho culpa de Portugal (‘meu remorso’, para o [Alexandre] O’Neill). Culpa de o fiambre não prestar na sandes que encomendo, culpa de a requisição estar na Câmara à espera de despacho há mais de dois anos, culpa de me terem posto fora da Escola de Cinema, onde eu tanto gosto de ensinar. Ter pátria é ter culpa?” (1989).

Mas a sua pátria, sua tão grande pátria, era o palco, habitado por autores e atores e técnicos, numa grande família pirandelliana que procurava corpos que fossem o mais próximo possível das personagens que deveriam servir. Personagens essas que, trazendo consigo as suas próprias dúvidas, faziam das biografias de todos a possibilidade da mesma evasão que ambicionava para os seus – porque os tratava como extensões de si – atores: “É nisso que trabalho, para isso que tento, todos os dias, forçar os poderes públicos – e a própria vontade adormecida dos actores, habituados a anos e anos de domínio, de submissão, de infantilização”. Isto escreveu-o em 2007, terminando assim um texto intitulado Teatro português: essa maldição: “Talvez fosse esse o sentido do que me interessava redescobrir depois de tudo o que vivemos desde 1974, ano da revolução esquecida. Não digo que todo o teatro seja assim mas queria, quero, tento que haja um teatro onde isso seja possível. Mesmo que depois da minha morte.”

A morte de Jorge Silva Melo pressupõe a morte do diálogo revolucionário, mas não a morte da utopia.

 

As crónicas de Jorge Silva Melo estão reunidas nos livros Século Passado (2007) e A mesa está posta (2019), editados pela Cotovia. O seu teatro está editado na coleção Livrinhos de Teatro (Artistas Unidos/Cotovia). Vida de Artista, de Noël Coward, estreia a 23 Março, no São Luiz (Lisboa), e apresenta-se até 10 Abril, sendo uma coprodução com o Teatro Nacional São João (Porto).
 

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