Ganhar medalhas depois da maternidade? "É possível retomar ou até superar o pico de forma de antes da gravidez"

22 jul 2024, 09:00

São cada vez mais as atletas que voltam à competição ao mais alto nível depois de serem mães. Os médicos alertam para os cuidados a ter durante os treinos mas acreditam que, com o devido acompanhamento médico, não há riscos. Só sorrisos, depois de conquistados os resultados

Mãe do Lourenço há cerca de três meses, a atleta portuguesa Ana Cabecinha parte para os Jogos Olímpicos de Paris com um misto de emoções. Apesar de ter conseguido treinar durante quase toda a gravidez e de ter adaptado todo o treino à nova condição de mãe, a atleta, que vai participar na prova dos 20 quilómetros marcha, sabe que não vai estar na luta por grandes marcas. “A minha preparação não foi de todo a ideal para fazer um grande resultado. Mas estou a fazê-la de uma forma mais motivada, porque sei que no final vou ter a minha medalha deste ano, que vai ser o meu filho no final, na linha de meta”, afirmou à Lusa antes da competição.

Paulo Murta, treinador de Ana Cabecinha, explicou na mesma entrevista que, desde que foi conhecida a gravidez da atleta, “tudo foi diferente” e foi necessário adaptar o treino no período pré-parto, com uma equipa de fisiologia que lhe permitiu trabalhar até perto do nascimento do bebé, mas também no pós-parto, sem realizar o habitual estágio em altitude e garantindo uma recuperação o mais rápida possível da cesariana. 

Três meses é de facto muito pouco para poder sonhar alto, mas a verdade é que um número cada vez maior de atletas femininas mantém-se no desporto de elite depois de ser mãe. Lembramo-nos imediatamente da tenista americana Serena Williams, que voltou a competir ao mais alto nível após o nascimento da sua filha. Outro exemplo é a corredora americana Allyson Felix, que conquistou medalhas de ouro, prata e bronze nos Jogos Olímpicos, pouco mais de um ano após dar à luz. Helen Glover, bicampeã olímpica britânica de remo e mãe de três filhos, competirá pela quarta vez nas Olimpíadas deste verão. A queniana Faith Kipyegon conquistou o ouro olímpico de 1.500 metros em Tóquio, em 2021, três anos depois de dar à luz a filha Alyn, quando tinha 24 anos.

“No passado, presumia-se que as mulheres que tinham filhos não voltariam a competir a este nível”, admite a ultramaratonista australiana e mãe Natalie Dau, atualmente com 52 anos e autora do livro "Run Like a Woman". Por esse motivo, muitas atletas adiavam uma gravidez até terem passado o pico da sua carreira. Outras optavam por terminar a carreira depois de serem mães. Em parte porque se acreditava que era difícil voltar à boa forma anterior, mas também porque sofriam muita pressão social. "Tinham medo de ser julgadas ou de não serem escolhidas para uma equipa. Isso mudou. Nas qualificações para as Olimpíadas, nos EUA, as crianças estavam na pista a comemorar com as mães. Isso normaliza ser mãe no desporto e capacita outras mulheres a pensarem que não há problema em ter um filho." Hoje em dia, já sabemos que ser mãe "não significa o fim de uma carreira desportiva". Dependendo da idade da atleta, da modalidade que pratica e da sua vontade, "ainda pode conquistar muitas coisas", afirma Natalie Dau.

"Existem casos notáveis de atletas que ganharam medalhas olímpicas pouco mais de um ano após darem à luz, demonstrando que é possível que o corpo recupere totalmente com o devido cuidado e acompanhamento do respetivo treino", explica à CNN Portugal Hugo Pombo, fisiologista do exercício. "Esses exemplos mostram que, com um plano de recuperação bem estruturado e suporte médico adequado, e acima de tudo com resiliência e o querer da própria atleta, foi (é) possível retomar ou até superar o pico de forma de antes da gravidez."

Treinar durante a gravidez

"Todas as pessoas deviam fazer exercício e, mesmo durante a gravidez, todas as mulheres devem manter a atividade, a não ser que exista alguma contra-indicação", explica à CNN Portugal Luís Cerca, professor investigador do CIDEFES - Centro de Investigação em Desporto, Educação Física, Exercício e Saúde, da Universidade Lusófona. "Há uma série de mitos que felizmente estão a desaparecer e esse de que as mulheres grávidas não podem fazer exercício é um deles."

Os especialistas sublinham que "cada situação é uma situação", portanto, aquilo que resulta para uma grávida pode não resultar para outra. Além disso, é indispensável o acompanhamento médico para garantir que todo o exercício é praticado sem pôr em risco a saúde da mãe ou do bebé. Mas todos concordam que "se for uma gravidez sem risco, se não houver risco de deslocação da placenta ou qualquer outra condição médica, a indicação é para manter o exercício físico", como esclarece à CNN Portugal o obstetra Pedro Faustino.

"No caso de uma atleta, que tem um treino habitualmente muito mais intenso, inevitavelmente ao longo da gravidez vai ter de reduzir a intensidade do treino. A partir das 20 semanas, quando a barriga começa a ficar mais preponderante, há movimentos que ficam impossibilitados, podem surgir problemas de postura e também é preciso ter alguma atenção à parte circulatória", explica o obstetra.

Que exercícios são mais aconselhados nesta fase?

Hugo Pombo, fisiologista do exercício, aconselha "exercícios de baixo impacto, como caminhada, natação, ciclismo (indoor) e pilates. Estes tipos de exercícios ajudam a manter a forma física sem sobrecarregar o corpo". Por outro lado, "alguns exercícios são desaconselhados durante a gravidez, como qualquer um que envolva risco de queda (por exemplo, o ski e equitação), desportes de contato (como futebol, basquetebol e luta) e atividades que exigem muito esforço abdominal". "É crucial saber ouvir o próprio corpo e ajustar a rotina de exercícios e treino conforme necessário, sempre sob a orientação de um profissional de saúde", sublinha Hugo Pombo.

"Fisiologicamente o corpo vai-se adaptando à nova condição. É altura para fazer o chamado smart training, não é o momento para procurar grandes performances", como diz Luís Cerca.

Para manter a forma durante a gravidez e garantir um rápido regresso aos treinos mais intensos, Hugo Pombo explica que "é importante o trabalho de reforço muscular e o trabalho cardiovascular de forma leve a moderado. Manter um trabalho regular de exercícios adequados vai ajudar a melhorar a circulação, aliviar as dores, principalmente das costas, reduz o inchaço e o cansaço e prepara o corpo para o momento do parto, contribuindo para uma gravidez mais saudável e confortável".

Quais são os principais riscos?

Os principais riscos de treinar durante a gravidez são essencialmente a desidratação, o aquecimento excessivo, o aumento exponencial da frequência cardíaca e os traumatismos físicos, avisa o fisiologista.

Além disso, diz, a gravidez traz sempre muitas alterações fisiológicas, como mudanças no centro de gravidade (e maior propensão a quedas) e a hiper-flexibilidade articular devido ao aumento hormonal da relaxina durante a gravidez, que pode aumentar o risco de lesões. A relaxina é a hormona que faz com que as articulações e os ligamentos fiquem mais maleáveis e alonguem durante a gravidez, permitindo que os ossos pélvicos se expandam mais facilmente durante o trabalho de parto e a fase de expulsão. 

Além disso é importante também manter a monitorização da frequência cardíaca sempre controlada.

E depois do parto, como e quando voltar aos treinos?

De volta à competição apenas 14 meses após ter sido mãe, a saltadora espanhola Ana Peleteiro, de 28 anos, conquistou o bronze no Campeonato Mundial de Atletismo Indoor, em março deste ano, com o segundo salto mais longo da sua carreira. “Estou super emocionada porque foi uma grande luta voltar depois da gravidez. Só eu e o meu treinador sabemos o quanto trabalhei e como lutei para chegar aqui em boa forma", disse a atleta do triplo salto, que vai estar a competir por uma medalha em Paris.

As atletas femininas de elite regressam aos treinos muito mais cedo do que a maioria das mães, que muitas vezes só regressam ao desporto ou a exercícios mais exigentes perto dos seis meses após o nascimento. Isso pode ser devido ao desejo de regressar ao desporto, mas também porque sabem que a sua carreira tem curta duração e não podem perder tempo. Pode haver também exigências de entidades desportivas ou patrocinadores, pressões financeiras ou apenas a pressão que advém do conhecimento de que outras atletas mais jovens estão a ocupar a sua posição. E, por isso, é importante que haja o devido acompanhamento médico para evitar que, com o desejo de não ficar para trás, essas atletas ponham em risco a sua saúde.

No pós-parto, o tempo de espera para retomar a atividade física varia dependendo do tipo de parto e da recuperação individual de cada mulher. Para partos vaginais sem complicações, geralmente é recomendado uma espera de pelo menos 6 semanas antes de retomar exercícios mais intensos, dizem os especialistas, enquanto para cesarianas ou partos complicados esses períodos são sempre mais longos, e poderá ter de se esperar 8 semanas ou mais, conforme orientação médica, para não correr risco de rutura do útero. "Durante esse período, é aconselhável focar mais em atividades leves, como caminhadas e outros, para ajudar a estimular a circulação e ajudar na recuperação física", aconselha Hugo Pombo.

O regresso à atividade física deve ser gradual e sempre acompanhado. O obstetra Pedro Faustino chama a atenção para a importância de fazer desde logo exercícios de fortalecimento do soalho pélvico, como os exercícios de Kegel, para prevenir problemas de incontinência urinária ou prolapsos uterinos. 

"Dependendo da gestação e do ganho de peso, as atletas recuperam rapidamente. O ideal é que o ganho de peso seja entre os 9 e os 12 quilos. Se forem 15 ou 20 quilos é mais complicado remover o tecido adiposo. As atletas de alta competição são geralmente muito determinadas, têm muito cuidado com o consumo calórico e têm corpos em excelente forma", lembra Luís Cerca. "Após uma gravidez, o corpo tem uma capacidade de recuperação e de regenaração fascinante, é assim com qualquer mulher, ainda mais com estas mulheres que estão muito preparadas. O corpo é uma máquina."

Após o parto, há uma maior propensão para sofrer lesões devido às mudanças que o corpo da mulher sofre durante a gravidez e o parto. De acordo com o fisiologista, as lesões mais comuns são: diástase abdominal, que é a separação dos músculos abdominais (aumento da linha alba), fraqueza do soalho pélvico que muitas vezes pode levar à incontinência urinária, e dores nas costas devido ao alongamento e enfraquecimento da musculatura principalmente das costas. Além disso, as articulações estão mais móveis e instáveis por causa do aumento da hormona da relaxina e da progesterona, que continuam elevadas durante algum tempo após o parto.

"À medida que o corpo se adapta e a força retoma, deve-se ir aumentando a intensidade e a duração dos exercícios de forma progressiva", aconselha Hugo Pombo. "É igualmente importante saber ouvir o próprio corpo e evitar qualquer atividade que cause desconforto ou dor, pois os atletas estão habituados a treinar com dor e o seu limiar de dor é muito superior às pessoas comuns."

Conciliar a maternidade e os treinos

“O mais difícil no início foram as noites sem dormir com dois bebés. Ter de treinar depois de não ter dormido é muito difícil! Se eu não tivesse o meu círculo de apoio, a minha família, uma estrutura ao meu redor seria ainda mais difícil", desabafou a corredora francesa Orlann Oliere, que tem um filho de 10 anos e dois gémeos atualmente com dois anos. “Também é preciso ter uma certa força vontade, acreditar em nós mesmas e trabalhar mais dos que os outros.”

A marchadora portuguesa Ana Cabecinha reconheceu que “é um desafio enorme” cuidar do filho e reformular todo o treino em função das suas necessidades, mas frisou que tem “um bebé tranquilo”, que a “deixa treinar”, assim como “um suporte e um apoio” que lhe permitem trabalhar “descansada”, sabendo que o recém-nascido fica “bem cuidado”. “Mas, claro, que no treino estou sempre desejando que acabe para ir para perto do meu filhote”, reconheceu, revelando que em Paris terá a ajuda do marido, “que vai ficar com o filho” enquanto treina e faz a prova. "O meu treinador entende que às vezes chego ao treino um pouco cansada porque talvez o meu bebé tenha tido uma noite má ou esteja doente", contou a saltadora Ana Peleteiro. "Muitas coisas diferentes podem acontecer no dia de uma mãe, é uma luta. Se estamos cansadas temos de treinar cansadas."

Luís Cerca admite que os primeiros tempos após o parto são desafiantes para qualquer mulher, quanto mais para uma que sinta a pressão de regressar rapidamente à sua atividade normal. Durante a amamentação é normal que haja algumas desregulação hormonal, há o cansaço associado às noites mal dormidas e todas as emoções da maternidade - incluindo a culpa quando têm de deixar o bebé entregue aos cuidados de outros quando vão treinar ou competir. Por isso, é importante relativizar. A competição é importante, ganhar medalhas pode ser um objetivo a médio prazo, mas é preciso que cada mulher caminhe ao seu ritmo.

"É importante ressalvar que a recuperação total depende de vários fatores, incluindo a saúde geral da atleta, o tipo de parto, a ausência de complicações, o acesso a todos os recursos necessários, como médicos, fisiologistas, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos. É essencial que o regresso aos treinos seja feito de forma gradual e individualizado, respeitando e sabendo ouvir os sinais que o nosso corpo nos vai enviando de forma a evitar sobrecargas", conclui Hugo Pombo. "Embora estas histórias sejam notáveis e inspiradoras, cada mulher é única, e o tempo de recuperação pode variar. O apoio de uma equipa multidisciplinar, incluindo médicos, fisioterapeutas e fisiologistas, é crucial para garantir uma recuperação saudável e eficaz."

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