Foi o último discurso do presidente norte-americano perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, após ter desistido da recandidatura à Casa Branca - porque "há coisas mais importantes do que ficar no poder", disse. Em tom de despedida, destacou os diversos desafios que o mundo enfrenta, num tom muito diferente do discurso que proferiu no arranque do seu mandato perante uma plateia cheia de diplomatas
Tinham passado duas semanas desde a sua chegada à Casa Branca, em fevereiro de 2021, quando Joe Biden lembrou os diplomatas norte-americanos que a sua grande promessa de campanha em matéria de política externa era restaurar a liderança mundial dos Estados Unidos. Num discurso no Departamento de Estado, o presidente resumiu a sua vitória eleitoral com a curta frase: “A América está de volta.”
Mais de três anos depois, no púlpito da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, essas palavras voltaram para assombrar Biden. No seu quarto e último discurso aos Estados-membros da ONU enquanto presidente dos EUA – a meses de passar o testemunho à sua vice, Kamala Harris, ou ao republicano Donald Trump – o chefe de Estado focou a necessidade de o mundo trabalhar em conjunto para acabar com as guerras e os vários desafios globais que enfrenta, incluindo as alterações climáticas e os riscos dos avanços da Inteligência Artificial (IA). Como referiu o New York Times quando Biden saiu de cena: "O último discurso de Biden na Assembleia Geral a defender a sua política externa não foi propriamente uma volta da vitória."
Foi sobretudo um discurso de despedida, no qual destacou a "difícil decisão" de não se recandidatar à presidência porque "algumas coisas são mais importantes do que ficar no poder". Antes, a Casa Branca tinha adiantado que Biden ia mostrar como a sua “visão de um mundo em que os países se unem para resolver grandes problemas” produziu “verdadeiras conquistas para o povo americano e para o mundo”. Mas os problemas que persistem são óbvios e muitos continuam sem solução à vista.
Num momento de tensões acrescidas no Médio Oriente, sem um acordo de cessar-fogo para a Faixa de Gaza e com os piores confrontos em curso entre Israel e o Hezbollah desde 2006, já havia quem destacasse antes do discurso de Biden que o seu mandato deixou a descoberto as “limitações” do poderio norte-americano no século XXI.
“A América está de volta, sim – [Biden] pode argumentar isso – mas com severas limitações na sua capacidade de liderança”, diz Aaron David Miller, negociador de longa data para a paz no Médio Oriente que aconselhou presidentes dos dois partidos ao longo de décadas, citado pelo New York Times horas antes. “Penso que a administração Biden é um conto de precaução sobre quão complicado e surpreendente é o ambiente internacional, e as limitações do poder americano.”
Isso ficou patente nas palavras do presidente dos Estados Unidos perante os representantes dos outros 192 países que compõem atualmente a ONU. Biden escolheu arrancar o discurso com uma piada sobre a sua idade. “Eu sei que só pareço ter 40 anos”, disse – com direito a gargalhadas da audiência – ao referir que, desde que foi eleito senador pela primeira vez, em 1972, num “ponto de inflexão” mundial, assistiu a “notáveis mudanças históricas”, transformações que, diria mais tarde, marcam todas as gerações, sobretudo agora que o mundo se encontra num "novo ponto de inflexão”.
"Um caminho a percorrer..."
“As coisas podem melhorar, nunca devemos esquecer-nos disso, vi isso ao longo da minha carreira”, ressaltou Biden. Se quando se tornou senador os Estados Unidos travavam a sua mais longa guerra de sempre no Vietname, hoje os dois países são aliados, destacou. Quando chegou à vice-presidência ao lado de Barack Obama, o Afeganistão já tinha ultrapassado essa como a mais longa guerra travada pelos norte-americanos e foi ele a assumir a “decisão difícil mas certa” de pôr fim ao conflito.
Após assumir a presidência em 2020, continuou, a sua administração focou-se em “reconstruir as alianças e parcerias do país a um nível nunca antes visto” – “algo que conseguimos”. “Eu sei que muitos olham hoje para o mundo e veem dificuldades, desespero, mas eu não – nós, líderes, não podemos dar-nos a esse luxo. A guerra, a fome, o terrorismo, a brutalidade, a deslocação forçada de pessoas, a crise climática, a democracia em risco, as promessas da IA e os seus riscos significativos – a lista continua… Por tudo o que vi e tudo o que fiz ao longo de décadas, sei que há um caminho a percorrer.”
Antes de Biden, o secretário-geral da ONU já tinha destacado no seu discurso que vivemos “uma era de transformação épica” em que o mundo “se encaminha para o inimaginável” – no ano em que mais de metade da população mundial foi e será chamada às urnas, sublinhou António Guterres, o mundo assiste a “níveis de impunidade, desigualdade e incerteza” sem igual, e essa impunidade de atores estatais e não-estatais por todo o mundo é “politicamente indefensável e moralmente intolerável”.
Foi o que disse Biden sobre a guerra na Ucrânia, apontando o dedo ao presidente russo, Vladimir Putin, que queria “dominar a Ucrânia, mas a Ucrânia continua livre, queria enfraquecer a NATO, mas a NATO está mais forte do que antes, com dois novos membros”.
“Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, podíamos ter ficado de braços cruzados e condenado isso, mas eu e a vice-presidente Harris tomámos outra decisão. Os aliados da NATO e os seus parceiros, mais de 50 nações, também se ergueram e, mais importante, o povo da Ucrânia ergueu-se – peço aos membros desta assembleia que também se ergam com eles. O mundo tem uma nova escolha a fazer – manter o apoio ou afastar-se e deixar uma nação ser destruída. Não podemos ficar cansados, não podemos desviar o olhar, não vamos abandonar a Ucrânia.”
Também falou sobre o Médio Oriente, voltando a defender o direito de Israel a responder ao ataque “horroroso” de 7 de outubro. “Qualquer país tem o direito de garantir que um ataque destes não volta a acontecer, um ataque em que mais de 1.200 pessoas foram chacinadas e assassinadas, incluindo cidadãos americanos”, disse Biden. “Já me encontrei com as famílias dos reféns [levados pelo Hamas] e elas estão a passar pelo inferno. Civis inocentes em Gaza também estão a passar pelo inferno, há demasiadas famílias deslocadas, a situação humanitária é terrível, eles não pediram esta guerra que o Hamas começou. É altura de aprovar a proposta de cessar-fogo.”
Aqui, Biden deixou recados ao Irão e aos seus “proxies” na região, nomeadamente o Hezbollah no Líbano, na fronteira com Israel, onde “a situação está a escalar” mas onde “ainda é possível uma solução diplomática”.
“É o único caminho, e é para isso que estamos a trabalhar”, assegurou o líder norte-americano. “Estamos empenhados em prevenir uma guerra alargada que engula toda a região.” E acrescentou: “Olhando para o futuro, é preciso lidar com o aumento da violência contra palestinianos na Cisjordânia e lutar pela solução de dois Estados, normalizar as relações com os palestinianos, que têm direito à autodeterminação e ao seu próprio Estado.”
"... se trabalharmos em conjunto"
Citando um poema de Yeats – “things fall apart, the center cannot hold, mere anarchy is loosed upon the world” – Joe Biden disse que, ao contrário dos que veem nestes versos um reflexo do presente, em pleno 2024, ele vê "as coisas de forma diferente", partilhando uma visão em que os líderes mundiais de todo o espectro político se uniram para fazer frente a uma pandemia sem precedentes, se uniram para “garantir a sobrevivência da Ucrânia” e em que os EUA fizeram “o maior investimento da história em energia limpa”.
O discurso teve ainda direito a recados a Pequim quanto aos desafios que se travam no Mar do Sul da China e no Estreito de Taiwan, com o presidente a defender que EUA e a China têm de “retomar a cooperação” de forma “responsável”. Também incluiu uma referência à guerra no Sudão, onde “há 8 milhões de pessoas à beira da fome extrema”, e aos diferentes investimentos feitos pelos EUA para combater as alterações climáticas e os riscos que a evolução tecnológica acarreta.
“Acredito que vamos ver mais mudanças tecnológicas nos próximos anos do que aquelas a que assistimos nos últimos 50 – muitas vão melhorar as nossas vidas, mas a IA também traz profundos riscos, desde as deep fakes às armas biológicas”, referiu Biden, congratulando-se com a primeira resolução aprovada pela Assembleia Geral da ONU este ano para enfrentar estes desafios – ainda que seja apenas “a ponta do icebergue”.
Biden também anunciou que os EUA vão doar “de imediato” 500 milhões de dólares para “ajudar os países africanos a prevenir e a responder à mpox” e também um milhão de doses da vacina contra a doença – lembrando que os países mais ricos devem manter vivas “as iniciativas ambiciosas” iniciadas recentemente pelos EUA, o G7 e os seus parceiros para ajudar os países menos desenvolvidos.
Alinhando com o presidente brasileiro Lula da Silva, que no seu discurso antes de Biden pediu uma reforma da organização e uma revisão da Carta Fundadora da ONU, que completa 80 anos em 2025, o líder norte-americano defendeu que é preciso “reformar e expandir o Conselho de Segurança das Nações Unidas”, referindo que a embaixadora dos EUA na organização acabou de apresentar uma proposta detalhada nesse sentido. “O Conselho de Segurança tem de retomar o seu trabalho de garantir a paz, de acabar com as guerras, de travar a proliferação das mais perigosas armas, de inverter a maré.”
“Uma coisa não deve mudar”, referiu na reta final do discurso. “Não devemos esquecer-nos de quem estamos aqui a representar – o povo. O poder do povo faz-me estar mais otimista quanto ao futuro do que algum dia estive. Somos mais fortes do que julgamos, mais fortes juntos do que sozinhos, e aquilo que as pessoas dizem ser impossível é só uma ilusão”, concluiu Biden. “Nelson Mandela disse que ‘parece sempre impossível até ser feito’ – caros líderes, não há nada que esteja para lá das nossas capacidades se trabalharmos em conjunto.”