"Ninguém quer um reencontro entre Biden e Trump" (entrevista)

29 abr 2023, 22:00

Nos Estados Unidos, a corrida à presidência voltou a aquecer. Depois do anúncio de candidatura de Donald Trump, foi a vez de Joe Biden. Os dois políticos poderão voltar a encontrar-se no final do próximo ano, mesmo que os americanos não queiram um reencontro, como garantiram em exclusivo à CNN Portugal dois dos mais respeitados correspondentes na Casa Branca

Peter Baker e Susan Glasser frequentam há décadas os corredores do poder nos Estados Unidos. Jornalistas do New York Times e da revista New Yorker, os dois conhecem muito bem as qualidades e defeitos dos dois homens que poderão voltar a encontrar-se em novembro de 2024.

Numa longa entrevista à CNN Portugal, falaram sobre o estado de saúde dos dois candidatos, mas também sobre Vladmir Putin e a guerra na Ucrânia.

Vocês publicaram um novo livro que saiu no ano passado, “The Divider”. É sobre Trump, os dias na Casa Branca. E agora Trump regressou à cena mediática. Ele tem possibilidades de concorrer outra vez à Casa Branca e até vencer?

Peter Baker - Sim, definitivamente está outra vez na corrida e tem algumas possibilidades de vencer. Nunca vimos nada assim na história americana, onde temos um ex-presidente a concorrer para recuperar o seu antigo cargo depois de se recusar a aceitar os resultados da eleição anterior e agora com acusações criminais por tentar enganar na sua primeira eleição em 2016 e enfrentando possivelmente mais acusações pelo seu papel no ataque de 6 de janeiro ao Capitólio e outras questões. Portanto, é um momento muito volátil na política americana. Ele é uma personagem volátil. Ele está a tentar, é claro, dividir o país porque esse tem sido o seu sucesso político. É por isso que chamamos o livro de “The Divider”. A polarização é o seu modus operandi político. É a sua técnica, a sua estratégia. E ele está a usar a acusação de que foi alvo recentemente como forma de galvanizar os seus apoiantes. É, por isso, um momento muito, muito incerto. Aumentou a sua popularidade ou pelo menos o seu apoio, não a popularidade talvez, mas o seu apoio entre os republicanos e colocou-se numa posição muito boa, neste momento, para receber novamente a nomeação de candidato à presidência.

A propósito de Joe Biden, Susan, você conhece bem Joe Biden, porque escreveu muito sobre ele. Ele é o presidente mais velho da história dos Estados Unidos e ao candidatar-se novamente, caso vença, ultrapassará em muito os 80 anos. Acha que ele é capaz de concorrer novamente contra Donald Trump?

Susan Glasser - Bem, em primeiro lugar, ele já está com 80 anos e, como disse e bem, é o presidente mais velho da história americana. Se ele concorrer novamente para outro mandato e servir em tempo integral, terá 86 anos no final do mandato. Esse é um fator realmente significativo e será um grande problema na campanha. Acho que é a razão pela qual muitos americanos, incluindo democratas, preocupados com a possibilidade de Biden concorrer novamente. Há um consenso real sobre uma coisa na América atualmente, entre democratas e republicanos, que é ninguém querer um reencontro entre Donald Trump e Joe Biden. E, no entanto, é muito provável que isso possa acontecer. E devo realçar, a propósito, que Donald Trump não é exatamente muito mais novo do que Joe Biden. A questão da aptidão mental de Donald Trump para o cargo foi um grande fator em 2020. E foi uma vantagem para Joe Biden, essa questão da aptidão mental para servir como presidente. Trump não fala com a clareza de antes, não parece absorver informações da maneira que fazia quando era mais jovem. Joe Biden não parece ter esse tipo de problemas. Biden certamente caminha mais devagar, parece ser mais velho, a sua voz parece diferente de quando ele era, digamos, o vice-presidente. Portanto, acho que é um fator significativo para estes dois candidatos. E esse é o desafio aqui. Não é uma escolha, como Joe Biden costumava dizer, entre ele e Deus. É uma escolha entre ele e outro candidato, entre ele e Donald Trump. Nesse sentido, é uma escolha muito difícil para os americanos porque olham para dois candidatos que são indiscutivelmente mais velhos do que os americanos gostariam.

O Peter tem estado a trabalhar nos últimos anos como correspondente do New York Times na Casa Branca. Existe uma palavra para caracterizar aqueles tempos de Trump como presidente? Ser jornalista naquela sala com tantos episódios?

Peter Baker - Bem, foram anos loucos. Já cobri cinco presidentes até agora e não há dúvida de que os quatro anos em que Trump esteve no cargo foram muito diferentes de qualquer uma das outras presidências, republicanas ou democratas. Não é sobre o lado festivo, mas sobre a forma como ele lidou com o cargo. Ele passou quatro anos basicamente numa guerra contínua contra as tradições, normas e instituições da democracia americana. E vimos isso a culminar no 6 de janeiro. Não começou a 6 de janeiro. Tudo começou no primeiro dia em que ele assumiu o cargo e em todos os dias do seu mandato. Ele não acreditava nas tradições que tínhamos de um sistema de justiça que deveria ser justo e imparcial, queria usá-lo contra os seus inimigos. Ele não acreditava que os militares deveriam ser apolíticos, queria usá-los contra os seus inimigos. Ele não acreditava que os tribunais tivessem a oportunidade de enfrentá-lo se ele cometesse um erro. Portanto, a sua visão da presidência era muito diferente. E a outra grande diferença entre ele e os outros presidentes era o seu desejo de dividir o país, polarizar o país. É por isso que chamamos o livro “The Divider”. Todos os outros presidentes que conheci e todos os outros presidentes que cobri pensaram que em algum momento o seu trabalho era maior do que o cargo, que o seu trabalho era unir o país. Às vezes também eram divisores à sua maneira, como George W. Bush gostava de dizer, acreditavam que o trabalho era ser um unificador, não um divisor. Bill Clinton disse que queria reparar a brecha entre as partes. Cada um deles tinha o seu próprio desejo, pelo menos expresso, de fazer isso. Donald Trump nunca sentiu que esse era o seu trabalho. Queria governar a América vermelha (republicana) e não acreditava que a América azul (democrata) fosse digna da sua liderança e fizesse parte dos seus cálculos políticos.

Mas Donald Trump foi um presidente que surgiu numa época de novos líderes populistas, como vimos em Itália com Matteo Salvini, no Brasil com Jair Bolsonaro, ou Viktor Orbán na Hungria. Foi como uma tendência que veio ao mundo. E hoje estamos a enfrentar a situação não de um populista, mas de uma ditadura na Rússia, que infligiu uma guerra, uma guerra de desgaste que nunca pensámos que seria possível neste século. No seu ponto de vista, é diferente ter Joe Biden na Casa Branca em vez de Donald Trump?

Susan Glasser - Com certeza, com certeza. Joe Biden é muito mais consistente com a tradição do que se pode chamar de internacionalismo liberal americano, como as pessoas dos nossos partidos políticos americanos, democratas e republicanos, basicamente o viram. Uma das coisas que é radicalmente diferente em Donald Trump comparando com qualquer outro presidente que eu já vi é a sua admiração pelos ditadores e criminosos do mundo. Donald Trump admira os autocratas e não gosta dos aliados da América. E este tem sido um tema consistente ao longo de toda a sua vida pública. É realmente muito chocante. Há alguns dias, aliás, deu a primeira entrevista desde a acusação em Nova Iorque e grande parte da conversa com Tucker Carlson na Fox News foi sobre política externa. Tivemos um espetáculo incrível, mais uma vez, de Trump a falar com muita admiração de Vladimir Putin, de Xi Jinping, de Kim Jong-un, da Coreia do Norte. E, mais uma vez, apenas críticas aos aliados e parceiros da América. Como é sabido ele disse que Vladimir Putin era um génio estratégico. Dias antes do início da invasão da Ucrânia, disse constantemente acreditar que era provável a Rússia vencer a guerra com a Ucrânia e que não achava um bom investimento para os Estados Unidos gastar biliões de dólares em assistência militar à Ucrânia. Foi contra, de facto, o grande pacote de ajuda de 40 biliões de dólares dos EUA que foi votado pelo Congresso na primavera passada. E há outras pessoas no Partido Republicano que concordam com Trump. Ainda não é a maioria dos republicanos no Congresso, mas é onde está o ímpeto político do partido.

Sobre a estratégia de guerra, de apoiar a Ucrânia, com o envio de dinheiro e armas, pode haver uma queda no apoio do Partido Republicano?

Peter Baker - Sim, essa é uma boa pergunta. É a questão do momento em termos de política externa em Washington, quando até agora havia um consenso bastante bipartidário. Há algum desgaste à esquerda e à direita, especialmente à direita, devido a Donald Trump, mas até mesmo vindo do seu maior opositor interno, Ron DeSantis, que agora diz que esta é apenas uma disputa territorial com a qual não devemos preocupar-nos. Isso sugere o início de uma nova fase neste debate nos Estados Unidos em que pelo menos as pessoas mais importantes do Partido Republicano vão questionar a ideia de apoiar a Ucrânia. Claro que ainda há Mitch McConnell, líder republicano no Senado que tem apoiado sempre a Ucrânia - aliás, ele acha que Joe Biden não foi forte o suficiente. Mas no próximo ano vamos ter um candidato republicano, ao que parece, que assumirá a posição oposta. Em vez de haver um consenso, haverá uma grande divisão sobre esse tema, enquanto no Kremlin Vladimir Putin aguarda pelo que pode acontecer. Talvez diga que se esperar até 2025 venha a ter campo livre, porque se houver um presidente diferente as suas possibilidades na Ucrânia serão outras, sem que os Estados Unidos desempenhem o mesmo papel que desempenharam até agora.

Do meu ponto de vista, neste momento, há um conflito congelado na Ucrânia. Talvez Putin esteja à espera de mudanças no campo internacional. Vemos o que Lavrov fez na América do Sul, para além do trabalho em África. Portanto, há uma outra narrativa a ser trabalhada em Moscovo, no Kremlin. O que é que a Susan acha disso, conhecendo a estrutura mental do ministro dos Negócios Estrangeiros e do próprio Putin, claro?

Susan Glasser - Peter está correto ao dizer que Vladimir Putin está à espera do Ocidente e do que pode acontecer nos Estados Unidos, enquanto tenta tornar a Ucrânia um estado inviável. Lembre-se de que estamos a fornecer uma assistência militar sem precedentes à Ucrânia, mas a única coisa que a NATO e os Estados Unidos não podem fornecer à Ucrânia é mais ucranianos. E, infelizmente, a estratégia de Putin de drenar a Ucrânia enquanto também ataca a sua infraestrutura civil, tentando quebrar a vontade do povo ucraniano enquanto espera que os americanos percam a sua fé e compromisso de mudar a sua política. Essa é uma estratégia que pode funcionar. Um dos modelos que Vladimir Putin tem é o que aconteceu na Síria, onde ele ajudou um assassino brutal a permanecer no poder, Assad, apesar de todo o Ocidente, a NATO e os Estados Unidos dizerem que a sua política oficial era ajudar Assad a sair do poder. Aqui está ele, tantos anos depois. A disposição de atacar a sua própria população combinada com o apoio da Rússia permitiu que se mantivesse no poder na Síria. E temo que esse seja um dos modelos que Putin observa e diz que talvez pudesse acontecer o mesmo na Ucrânia. O facto é que Putin tem poder de ataque e agora enfrentamos possivelmente uma mudança de presidência nos Estados Unidos, não sabemos. Isso vai mudar toda a política de relações externas.

Acham que existe uma forma de combater diplomaticamente essa estratégia da Rússia? Porque sabemos que a guerra pode ser vencida no campo de batalha ou através da solução diplomática...

Peter Baker - Uma das vantagens da ditadura é que não tem limites de mandato, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e no Ocidente. Haverá uma rotatividade na Alemanha, como acabámos de ver recentemente, e houve rotatividade na Grã-Bretanha e, obviamente, na América. Portanto, a questão é: as instituições desses países mantêm a mesma política, independentemente de quem esteja no cargo? Em termos de diplomacia, atualmente não parece haver uma oportunidade de voltar à mesa de negociações porque nenhum dos lados está pronto para fazê-lo. Porque é que ucranianos haveriam de negociar parte do seu território, especialmente quando tiveram sucesso em recuperá-lo? O presidente Zelensky não está disponível para abdicar de parte do seu país, quando a Rússia é que é a invasora. E Putin claramente também não vê nenhum interesse em negociar. Nunca o viu, francamente. Para começar, não respeitou os Acordos de Minsk e nunca, como a Susan acabou de dizer, deixou de cumprir os compromissos da Rússia com a soberania ucraniana no passado. Portanto, pode chegar um momento em que esta guerra tenha de terminar na mesa de negociações, mas este não parece ser o momento.

Susan Glasser - Acho que é realmente importante enfatizar que Putin considerou que esta era uma guerra sobre se a Ucrânia tinha ou não direito de existir como país. E nesse tipo de circunstâncias é difícil ver qualquer resolução que não seja um resultado militar definitivo de uma forma ou de outra. Porque é que se haveria de fazer um acordo com a Rússia quando a Rússia quebra a sua palavra? Que garantia haveria de que a Rússia não usaria simplesmente esse período negocial para se reagrupar e depois lançar outro ataque à Ucrânia? É muito, muito difícil confiar na palavra da Rússia

O facto é que com Biden há um regresso ao multilateralismo e os Estados Unidos voltaram a trabalhar com os aliados naturais, como a União Europeia. Para além disso, a NATO é agora muito mais forte, embora possamos observar o surgimento de um outro bloco, como o aparentemente liderado pelo Brasil, que está a tentar trazer os BRICs para a mesa para negociar a paz. Não é fácil de vislumbrar uma solução para o conflito, mas se tivesse de apostar numa qual seria?

Susan Glasser - A Ucrânia precisa de encontrar uma forma de recapturar mais território e especificamente partes estrategicamente importantes da Ucrânia que a tornem viável como um Estado independente. Neste momento, a Rússia tem algumas partes importantes da Ucrânia que fazem com que a Rússia realmente possa manter uma Ucrânia frágil e essencialmente não independente. Acho que no campo de batalha, esse claramente será o objetivo de uma contraofensiva ucraniana. Uma outra possibilidade seria se a Ucrânia tentasse avançar e cortar as linhas de abastecimento para a Crimeia. Isso certamente poderia colocá-los numa posição mais forte para negociar. É um conflito terrível, que matou milhares e milhares de pessoas, inocentes e civis ucranianos, bem como militares. É claro que as pessoas querem que isto acabe, mas acho que no futuro temos de aguardar para ver o que acontece no campo de batalha.

Peter Baker - A Rússia ao longo dos anos tem apostado em conflitos congelados. É por isso que há um conflito congelado no Cáucaso, há um conflito congelado com a Transnístria, há um conflito congelado no Médio Oriente. E acho que eles não veem razão para declarar o fim do conflito, principalmente depois de terem anexado várias partes do território. A menos que consigam empurrá-los para fora desses territórios, eles vão simplesmente ficar e não têm interesse em negociar. Eles podem resistir e esperar para recuperar forças e reagrupar. Têm um país imenso, industrialmente poderoso e quanto mais se aproximarem da China mais capacidade vão ter de se reabastecer. Para além disso, acreditam no fator fadiga no Ocidente, que o Ocidente ficará impaciente e cansado e eventualmente desistirá de alguma forma ou pelo menos enfraquecerá o seu apoio.

Uma última pergunta, sobre Putin, porque muito tem sido dito sobre a sua condição de saúde. Sem oposição interna, há alguma forma de o parar?

Peter Baker - Acho que os relatos sobre a sua condição física provavelmente foram exagerados. Pelo menos os serviços secretos americanos garantiram à Casa Branca que não há, de facto, nenhum tipo de problema médico que possa mudar a situação. O diretor da CIA, Bill Burns, disse mesmo que Putin infelizmente é muito saudável. Para além disso, não parece haver qualquer dado que aponte para o surgimento de oposição interna a Putin que pudesse mudar o governo. A única ameaça real a Putin internamente podia ser os serviços secretos, mas também não há nenhum momento nesse sentido, pelo que acho que o cálculo no Ocidente é que tem mesmo de contar com Putin.

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